Quando eu era criança, estudei,
dos seis aos oito anos, num colégio chamado Dr. Celso da Gama, em Santo André.
Um colégio cujas lembranças sempre estão presentes e que me trazem o cheiro da
minha infância.
Lá, tive uma professora que, além
de ensinar muito bem, como os outros que tive, me ensinou algo muito especial
que carrego para a minha vida: a
valorização dos meus riscados, dos riscados da minha vida.
Até os oito anos, não usei caneta
na vida, apenas lápis. Em sala, no Celso da Gama, apenas podíamos usar lápis, e
este era o combinado entre nós e a professora: “caneta só quando vocês forem
grandes, ela dizia”. Obviamente um entre nós perguntava a ela: “e quando
seremos grandes, professora?”. E ela, com paciência e um sorriso no rosto,
respondia: “no ano que vem, a partir da terceira série, vocês já serão grandes.
Aí, sim, vocês poderão usar a caneta.” Quando ela dizia isso, crescia um
sentimento de responsabilidade dentro de mim. Uma mistura de ansiedade boa,
aquela que estimula, e um sentimento de importância: afinal, no ano que vem eu
seria grande e poderia usar a caneta.
O combinado de usarmos apenas
lápis até esta idade era porque errávamos bastante, corrigíamos muitas coisas e
não tínhamos, ainda, aquela destreza nas mãos que nos possibilitaria, um dia,
escrevermos com firmeza e linearidade. Portanto, a borracha, era uma amiga
diária e constante. Se escrevêssemos com canetas, os cadernos ficariam
terríveis devido a tantas correções. Então, a forma que a escola encontrou foi
determinar esta regra, vamos dizer assim, de utilizarmos lápis até os oito, e
após esta idade, maiores, iniciarmos
os nossos estudos podendo usar as canetas. Certamente continuaríamos a errar
bastante a partir dos nove anos também, mas foi esta a regra adotada pela
escola.
E assim seguimos. Errando e
apagando bastante. Usando os nossos lápis até os oito anos. Vivíamos e
estávamos num contexto no qual o erro era bem-vindo, aceito. Nunca levei uma
bronca, sequer, porque eu havia errado. Nem mesmo meus colegas. Também nunca
fomos repreendidos por ficarmos com as folhas dos nossos cadernos bem marcadas
de tanto usarmos as borrachas. Algumas folhas dos meus cadernos chegavam a
ficar escuras de tanto apagar. E como escrevíamos com força e apertávamos muito
o lápis no papel, mesmo utilizando a borracha, as marcas ficavam. E ao
escrevermos por cima, pareciam pequenos borrões nos cadernos. Bonito não
ficava. Mas o significado de tudo aquilo já começava a se desenhar naquelas
pequenas folhas escritas por mãos tão pequenas.
Lembro-me da professora passando
de carteira em carteira. Eu era uma das que apertava muito o lápis no papel. E
na hora de apagar, que eram muitas, os borrões ficavam marcados e manchados. Aí
eu apertava mais ainda a borracha para ver se os borrões diminuíam. Apenas
ouvia a professora dizer para mim: “não faz mal que você escreveu errado, é só apagar com calma e reescrever na mesma
linha o certo, agora. Está tudo bem.”
Esta atitude, mesmo sem
percebermos na hora e talvez sem intenções dirigidas por parte da professora,
nos fazia ver o erro como parte do processo, e não como algo a ser camuflado e
odiado. Não tínhamos a preocupação com o erro. De forma espontânea, aprendíamos
que ele fazia parte da nossa construção, como uma etapa fundamental para nos
levar adiante. A todos.
Nossas marcas, a lápis, nas
folhas do caderno, mesmo apagadas, ficavam ali. Nossa história estava sendo
respeitada e preservada.
A intenção da escola e dos
professores, talvez, tenha sido, nas questões práticas, poupar um pouco a
estética dos nossos materiais até que tivéssemos mais condições, domínio e
autonomia para conquistarmos o direito de usarmos canetas. Mas também, mesmo
sem propósitos previamente delimitados, nos fizeram crescer e estudar num ambiente
no qual os erros, os borrões, as manchas que os grafites deixavam não eram
vistos como problemas, mas sim como etapas da nossa construção cognitiva e
social. Como o medo não fazia parte, tínhamos tempo de fazer o que era
importante: nos conhecer por meio da nossa escrita, dos nossos erros e da nossa
produção.
Com a ausência do medo,
enxergávamos os nossos riscados, borrados e manchados, nos nossos cadernos, de
forma espontânea.
imagem tirada da internet
O que aquela professora talvez
não soubesse, na época, é que ela estava ajudando a construir a nossa
autoestima. Víamos os nossos borrões, mas não nos envergonhávamos deles. Ela
estava ajudando a construir a noção de trajetória e de caminhada, dentro de
cada um de nós. Quando enxergávamos os nossos riscados e borrados na folha de
papel, sabíamos que já tínhamos passado ali. E isto fazia e faz toda a
diferença. Ela estava nos ajudando a valorizar a nossa própria história: uma
história de riscados, borrões, manchas, acertos e consertos que estávamos
iniciando, naquela época. Com oito anos de idade, os borrões, manchas, acertos
e erros ainda são pequenos. Mas existem. E os riscados nas folhas do caderno
darão conta de nos mostrar que a nossa caminhada foi iniciada.
Quando sabemos que passamos ali, o medo recua e a nossa coragem se
anuncia. Quando sabemos que passamos ali, e os nossos riscados e borrões não
deixam dúvidas, o caminho de volta fica mais fácil.
Os riscados, os borrões, as
manchas, os acertos e os erros são as marcas dos nossos pés no chão. Reescrever
sobre eles os outros passos que damos, também deverão ser feitos com os nossos
pés no chão. Mas para que nossos pés caminhem mais firmes, será preciso ter
acesso e enxergar os nossos riscados, os nossos borrões, as nossas manchas. E
isto somente escrevendo a lápis e, de preferência, com professores que enxergam
valor nisso e que não se importam com a falta de estética que terá o nosso
caderno, após apagar algo escrito.
O tempo passou, fui para o ano
seguinte e conquistei o direito de usar canetas. Mas confesso que nunca
abandonei o uso do lápis. Minhas memórias sentem a falta dele, e ele sempre
está ao alcance das minhas mãos. Ele me faz lembrar que a construção é
possível, e que o erro é só uma etapa imprescindível para acerto. Gosto de
escrever a lápis para lembrar que, mesmo eu errando e apagando, é preciso
valorizar o traçado borrado e manchado, e saber, acima de tudo, que passei ali
e que minha trajetória vem de longe.
Quando valorizamos os traçados
tortos, errados e manchados, o próximo passo é sempre mais fácil. E ter tido,
inclusive, professores que valorizaram estes traçados tortos e borrados, com
manchas aparentes mesmo eu escrevendo por cima, fizeram toda a diferença.
Assistindo a um programa de
televisão anos atrás, comecei a acompanhar a entrevista de um artista plástico
que desenhava algo muito bonito. Como minha habilidade para desenho é
inexistente, a habilidade e a rapidez com que ele desenhava me chamaram a
atenção. Foi isto o que prendeu a minha atenção. O nome dele era Amílcar de
Castro. Durante a entrevista, ele começou a dizer que trabalhava a superfície das coisas. E que somente desta
maneira, chegaria à forma. Neste
momento, parei de prestar atenção ao que ele desenhava, para prestar atenção ao
que ele dizia. Enquanto desenhava, disse, também: “você tem que sempre trabalhar com um lápis e escrever
bem forte, para ter riscados fortes. Porque se você errar e tentar apagar, você deixará a marca do lápis, do riscado no papel, para saber e se
conscientizar de que você passou por aqui.” Acho que ele também escreveu
muito a lápis, quando criança.
Lembrei-me, imediatamente,
daquela professora. Uma pessoa simples, mas que nos trouxe aprendizados
profundos. Ouvindo aquela entrevista, o famoso lápis e seu contexto me vieram à
mente. Um sentimento de gratidão me preencheu por ter podido conhecê-la e mais
que isto: desfrutado de seu conhecimento que carrego até hoje, nas escritas com
os meus lápis. Como disse Amílcar de Castro, “...se você errar e tentar apagar, você deixará a marca do lápis no papel,
para saber e se conscientizar de que você passou por aqui.” Foi o que ela
fez conosco, talvez sem perceber: nos permitia apagar os nossos “erros”. Mas
como eram escritos a lápis, nunca mais podíamos dizer que não havíamos passado
por ali. E isto fez toda a diferença. Ajudou-nos a construir a nossa forma trabalhando na nossa superfície, como disse o
artista plástico. Gratidão.
Com a tecnologia e a facilidade
de escrevermos tudo diretamente no computador, inclusive as correções são
feitas imediatamente, os ganhos existem, claro. Mas algo de muito valioso se
perdeu: a memória dos nossos erros. Tão importantes quanto os nossos acertos.
Fazemos de tudo para evidenciarmos os
nossos acertos, mas fazemos de tudo, também, para apagarmos a história dos nossos erros. É uma pena. Os nossos erros
são vistos por meio das marcas. E como deixar marcas escrevendo apenas com
canetas? Nossas memórias nos constroem.
O lápis respeita a nossa
trajetória, nos relembra que passamos ali e nos mostra, com marcas, nos
riscados: os riscados da nossa vida.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento antigo, que diz:
“Quando você pensar em desistir, se
lembre do trabalho que deu chegar até aqui.”
Desistir é uma das conquistas da
maturidade. É importante desistir daquilo que não nos faz grandes, e que
insiste em nos remodelar com moldes retrógrados. Uma desistência calculada e
consciente porque sabemos que aquela rota deve ser desprezada. Mas nunca
desistir por falta de crença de que podemos, conseguimos e devemos. Na dúvida, vamos
olhar para os Riscados da nossa Vida. Eles não nos permitirão abandonar o
caminho. Mas para isso, deveríamos ter escrito bastante a lápis quando criança,
o que certamente ocorreu.
Um lápis e uma borracha:
instrumentos de Vida. Para os Riscados e para os Acertos. Instrumentos
solidários, atemporais, úteis e, particularmente,
descortinadores de horizontes, como disse o poeta Manoel de Barros.
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