terça-feira, 1 de maio de 2018

Nossas folhas secas

Cuidar do nosso jardim nem sempre é uma tarefa fácil e simples. Para quem tem, sabe que uma simples planta requer atenção, dedicação e cuidados. Que dirá um jardim. Por conta da correria diária, o que não poderia ser desculpa, deixamos nosso jardim ou nosso pequeno vaso de plantas aquém do merecido. E no final de semana, com mais tempo, regamos e, se lembrarmos, colocamos um pouquinho a planta ao sol. O nosso jardim recebe uma visitinha nossa, meio apressada, e tiramos algumas folhinhas secas e amareladas, caídas ali.

imagem tirada da internet

Cuidar do nosso jardim, e de tudo o que há nele, é tarefa fundamental e intransferível. Podemos até contratar um jardineiro. Mas ele imprimirá a identidade dele lá, e não a nossa. Ele até pode nos ajudar a cuidar, mas o principal trabalho deve ser feito por nós, por nossas mãos. Um trabalho pessoal, diário e intransferível.

Quando nós mesmos cuidamos do que é da nossa responsabilidade, tudo flui e parece estar no lugar. Com o nosso jardim não é diferente. Cuidado e sendo atendido como se deve, floresce. Marginalizado e demandado a terceiros, empobrece e entristece.

Ao visitar o nosso jardim com frequência, e cuidar dele, as folhas secas caídas são facilmente percebidas por nós. E se neste momento, a maturidade estiver sendo uma de nossas principais companheiras de jornada, abriremos um bom e velho saco e as colocaremos lá, tendo o cuidado de abaixarmos, com toda a humildade que ainda não temos, para pegá-las no chão. Outras, mais rápidas, se deixam guiar pelo vento, e vão mais longe. Apressar o nosso passo será preciso se quisermos alcançar as que estão distantes. Outras vão para debaixo do banco do jardim, e ali, se não percebermos, ficarão um bom tempo. Após, juntamos todas elas dentro do saco e ouvimos aquele barulhinho característico das folhas secas: um ruído incômodo nos lembrando da limpeza ainda não realizada por nós e do trabalho a ser feito.

Trabalho árduo, nossas mãos ficam doloridas e machucadas. Mesmo colocando luvas. A preguiça e a procrastinação são duas grandes aliadas do amanhã. É preciso tomar cuidado com elas. Possuem discursos mansos e convincentes.

Enchemos um saco, e percebemos que vamos precisar de outros para acomodar todas as folhas secas e matinhos do nosso jardim. E aquele barulhinho seco da planta dizendo que “há algum tempo você não passa aqui” faz eco em nossos ouvidos.

Aquele que frequentemente visita o seu jardim não abre espaço para que folhas secas se acumulem. A limpeza diária é uma grande aliada daquele que já compreendeu que o jardim é de responsabilidade dele. É até prazeroso, se souber enxergar isto.

Aquele que não frequenta o próprio jardim ou vai até ele esporadicamente, corre o risco de não mais reconhecê-lo ao vê-lo. E não reconhecer algo é abrir mão de tudo aquilo que foi construído. Um abrir de mãos da relação com a gente mesmo que favorece o enorme acúmulo de folhas secas e barulhentas.

É preciso, portanto, conhecer, reconhecer e compreender o nosso jardim, assim como a nossa relação com ele. Quando desta forma fazemos, continuamos íntimos de nosso jardim e sustentada em bases sólidas a nossa relação com ele, mesmo que algumas folhas secas estejam perdidas e esquecidas. A solidez da relação que temos com o nosso jardim nos fará irmos em busca de nossas folhas secas e darmos o devido destino a elas.

Que a intensidade e a constância sejam as armas contra a preguiça e a procrastinação no momento de limparmos o nosso jardim e de, mais importante, mantermos a frequência de limpá-lo e de visitá-lo.  Sem desculpas. Sem culpar o outro pelas nossas folhas secas. Sem jogá-las para o quintal do nosso vizinho. Podem nunca enxergarem os nossos avessos. Mas eles existem.

O cuidado que temos para com o nosso jardim está ligado ao compromisso que mantemos com ele. A solidez se firma no cuidado. Um não se dá sem o outro.

Cuidar, cuidado e compromisso criam uma relação de confiança e nos dão a condição para Ser. O contrário cria o vazio e a solidão.

Folhas secas representam a ausência. Folhas saudáveis representam a vida.

Folhas secas representam a falta de cuidado consigo, com o jardim e com a própria vida. Folhas saudáveis representam o acordo sendo seguido. As respostas sendo dadas. A atenção sendo dispensada.

Folhas secas representam o descaso, o esquecimento, o depois, a vergonha, a vaidade. Folhas saudáveis representam a plenitude, a dimensão do espaço que ocupamos no mundo, as nossas bases muito bem estruturadas.

Folhas secas. Folhas saudáveis. Possuímos as duas. De forma frequente e abundante. As secas nos chamam a atenção para o que não está sendo feito. As saudáveis nos parabenizam por termos acessado o caminho certo. Soubemos ler as placas corretamente. As secas fazem barulho porque somente assim elas serão ouvidas. As saudáveis não fazem barulho porque já conquistaram seu lugar ao sol.

As folhas secas possuem muito a dizer, se soubermos ouvi-las. Talvez, desta forma, elas se afastarão dos nossos jardins. E se afastando, é como se as tirássemos das margens da vida aonde as colocamos durante todo o tempo da nossa ausência, em nosso jardim. Uma ausência notada pelas folhas.

Um tempo de relevante ausência que foi capaz de torná-las secas.

Secas, somente nos resta recolhê-las e, jamais, jogá-las para o quintal do nosso vizinho. A maturidade não nos permitirá fazer isso, não é mesmo? De qualquer forma, somente na hora de limparmos os nossos jardins é que saberemos como, verdadeiramente, agiremos. Afinal, nos conhecemos mais observando as nossas reações do que as nossas ações. Na ação, estamos impregnados pelo estatus, pela vaidade, pelo querer aparecer. Queremos mostrar um belo jardim. Mas na reação, quando nossas folhas secas nos acusam, não temos tempo de pensar.  E, infelizmente, o quintal do nosso vizinho pode se oferecer como uma solução eficiente. Quem vai dizer que aquelas folhas não são do jardim dele?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Millôr Fernandes, que diz:

“Viver é desenhar sem borracha.”

Estejamos firmes no recolhimento de nossas folhas secas e no cuidado do nosso jardim. Durante a vida, receberemos, apenas, sacos para recolhermos as nossas folhas secas, e méritos pelas saudáveis que construímos.

Mas nunca borrachas, para apagarmos o que quer que seja. Viver é, em uma análise possível, ter atenção ao caminho que se constrói.

Um caminho que não permite voltas e nem ensaios.

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