O título deste texto foi uma
frase dita por uma Gerente de uma multinacional ao se referir à Copa do Mundo.
Questionada sobre como seriam as escalas neste período dos jogos do Brasil, para
a liberação das pessoas, ela disse: “Começou a palhaçada.”
É preciso cuidado e atenção na
utilização das palavras. Saber o que dizemos para não ficarmos reféns de nossa
linguagem. Palavras mal colocadas e mal escolhidas demonstram o nível de cada
um de nós, inclusive o moral. Principalmente, se estas mesmas palavras
perderam, ao longo do tempo, o seu real significado e foram ganhando,
injustamente, teores pejorativos, desconexos e preconceituosos. É o caso da
palavra palhaçada.
Para compreendermos o significado
de palhaçada, precisamos, antes, dar uma passadinha no sentido de palhaço.
Palhaço, uma palavra italiana, vem de pagliaccio,
que deriva de paglia, que significa
palha. Palhaço é o resultado daquele que possui a palha como elemento principal
de sua constituição, colocada nas roupas divertidas e coloridas que veste para o
deixar engraçado e, consequentemente, nos fazer rir. Acrescido do sufixo aço (palhaço) que significa e dá uma ideia de intensidade.
Palhaçada, este ato do palhaço,
possui o sufixo ada, em sua
composição, que significa “ideias do conjunto”, aquilo que é realizado por um
grupo de pessoas. Para resumirmos, então, palhaço é, no sentido literal, aquele
personagem que é feito de muita palha, intenso (sufixo aço = intensidade) e que
faz palhaçadas (sufixo ada = conjunto), ou seja, que trabalha em conjunto com
outras pessoas. O Palhaço é divertido por
causa da palha e do colorido, mas intenso por causa do aço que carrega nele.
Conhecer o significado das coisas nos coloca em outro patamar de reflexão.
E de onde vem o sentido pejorativo que esta palavra ganhou, que diz que
palhaço é uma pessoa sem senso crítico, bobo, e que palhaçada é uma situação
ridícula e sem importância? Da livre associação que fazemos, sem pudores, do
real significado das palavras versus o
sentido distorcido que ganharam. Como uma
das missões do palhaço é nos fazer rir e trazer leveza para as nossas
vidas, acabamos distorcendo o seu verdadeiro sentido. Por serem personagens
“aparentemente” inocentes, ingênuas e divertidas, tudo aquilo que é feito por
elas acabou, indevidamente, sendo interpretado como sem importância, ridículo,
bobagem, desperdício.
Mas acho que estamos enganados. O
palhaço tem muitas outras missões. E talvez a mais importante delas, que não
percebemos, seja o de chamar a nossa atenção para coisas importantes,
relevantes, sérias, porém sem alardes. Por meio da leveza da atuação dos
palhaços, da sutileza que carregam na alma, dão os seus recados. Falam sobre
assuntos críticos, porém se utilizando de recursos altamente inteligentes que
são a ironia e o humor. Mas compreendê-los é para poucos. A maioria,
infelizmente, caminha para o lado mais fácil que é o da depredação,
conhecimento raso, curto e fácil.
Quando escolhemos o lado pejorativo das coisas, e também o das
palavras, perdemos excelentes oportunidades de sairmos do raso, do comum e do
igual. Ficamos parados e estagnados em nossas mediocridades, ignorâncias e
atrasos escolhidos.
Chamar a Copa do Mundo de palhaçada
é um exemplo de escolha da mediocridade, do lado pejorativo da vida e das
palavras. É optar pelo atraso e pelo raso. E os palhaços, com suas palhaçadas,
nada têm a ver com isso. Quando nos referimos a alguém ou a alguma situação por
meio de termos distorcidos pelo sentido, reforçamos e engrossamos a fila dos
desavisados, dos preconceituosos. Perpetuamos modelos falidos pelo mau uso que
fizemos.
A Copa do Mundo é apenas um
evento social que nos traz excelentes chances de reflexão e de mudanças. Como
vamos enxergar a Copa? De forma pejorativa, como uma bagunça sem sentido, um
evento ridículo, um atrapalho em nossas agendas recheadas de compromissos
desnecessários, ou olharemos para ela como um espaço de avanços e de
interrupções de nossos abismos? Tudo dependerá de como estaremos vestidos.
A nossa roupagem determina nossa atuação na vida. Estes eventos e estas
oportunidades apenas evidenciam e mostram o quão grandes somos e o quão
pequenos somos.
A Copa tem discutido, duramente,
temas críticos em boa parte do mundo: a democracia, a homofobia, a intolerância
religiosa, o machismo e a submissão da mulher, e outros mais. São temas sempre
debatidos. Mas a Copa reforça a necessidade do debate. A democracia, para boa
parte dos Russos, é sinônimo de bagunça. Boa reflexão a se fazer.
Há pessoas que atribuem à Copa ou
a estes eventos mundiais e grandiosos a responsabilidade da nossa alienação. E
isto não é verdadeiro. Por isso, talvez, chamem estes eventos de palhaçada, no
sentido pejorativo. O fato de acompanharmos e de nos divertirmos na Copa, por
exemplo, não nos isenta das nossas responsabilidades. Aquele que se isenta da
responsabilidade por causa da Copa, na
verdade, sempre esteve ausente. Aquele que se diverte, acompanha e
respeita, sabe que cada coisa cabe em seu devido lugar.
Divertir-se com uma das grandes
alegrias do povo não significa ausentar-se dos noticiários e das atitudes. Uma
coisa independe da outra. É preciso
distinguir diversão de alienação.
Torcer para o Brasil não nos
torna alheios ao nosso redor e sobre o que vai nele, nem mesmo no nosso
entorno. Não me faço alheio frente as
minhas necessidades e frente as necessidades daquele que vai comigo, que vai
conosco.
A Copa do Mundo traz um
descortinar do nosso olhar para, se quisermos, ver a beleza que há por trás de
cada detalhe, de cada situação.
Uma reunião de povos distintos
que se abraçam no momento do gol. Em situações outras, este abraço jamais
existiria. Uma felicidade a cada passe acertado, que talvez nos faça refletir
sobre os muitos passes infelizes dados, na vida. Um passe certo, um pensamento
no coletivo. Uma reflexão necessária trazida pela Copa. Não é, portanto, uma
palhaçada.
Aliás, os palhaços estão logo
ali, nas arquibancadas dos estádios. Vestidos com suas roupas coloridas,
repletas de palhas. São muitos os que vão ali, trabalham juntos e de forma
intensa. Vibram a cada passe certo, a
cada jogo coletivo, e verdadeiro, que
fazemos. Uma verdadeira palhaçada que se observa ali, realizada por palhaços
que de bobos, não têm nada. O que eles têm é intensidade na ação, vigor e
verdade. Falam do que precisam. Talvez por isso nos façam rir. Rimos porque nos
identificamos. Porque o riso nos faz leves. Porque não queremos nos apropriar
dos nossos problemas. Porque somos debochados. Porque o choro nos espreita.
A Copa que reúne estrangeiros na
mesma Seleção. E são estes estrangeiros que dizem, silenciosamente que, sem
eles, não haveria Seleção. Negros e loiros são filhos do mesmo País.
A Copa que mostra os Brasileiros
que não querem mais ser brasileiros. Naturalizaram-se estrangeiros em outros
Países. A Copa que evidencia nossas identidades trocadas, resumidas.
A Copa que evidencia a nossa
covardia ao puxar a camisa do outro para que ele não faça o gol. Se não for
para mim, não será para ninguém. “Começou a palhaçada”. De quem falamos e sobre
o quê? Por que insistimos em nos montarmos sobre significados menores das
palavras? Por que o dicionário ainda não se tornou o nosso melhor amigo?
A Copa que o País-sede tenta
camuflar e disfarçar seus problemas. Tenta nos convencer de que é um País
vigoroso e justo. Mas a gente faz questão de lembrá-los de que a história não é
bem assim. A Copa, portanto, não é uma palhaçada.
Enxergar a verdadeira palhaçada
seria ver o volume da palha em nós, o rústico, o campestre, o importante
revestido de engraçado. O urgente pintado de riso frouxo. Enxergar a verdadeira
palhaçada é deixar o palhaço que há em nós atuar sem muros, e compreender, de
uma ver por todas, que o sufixo aço
significa intensidade e não bobagem. Aceitar que o sufixo ada nos convida para o conjunto, o que é bem diferente de
isolamento e individualismo. Coisas assim os palhaços nos mostram. E eles acenam
para nós, do alto das arquibancadas aonde estão. Mas quem os enxerga? Afinal, são apenas palhaços...e palhaços não
são dignos de atenção.
A Copa que mostra uma mulher usando
uma blusa sem mangas, proibido no País dela. E mulheres sauditas que podem,
pela primeira vez, assistirem a uma partida de futebol. Elas se emocionaram.
Por que será? A copa, portanto, não é uma palhaçada. Não esta que os
desavisados conhecem. É uma festa comemorativa na qual se evidencia apenas o
que vai em nós. Damos a esta festa o resumo que nos preenche.
A Copa que nos relembra os refugiados,
porque parece que nos esquecemos deles. A Copa que relembra Pelé e seu time,
capazes de interromperem uma guerra, há 48 anos, pelo Santos. Mas também a Copa
que mostra aqueles infelizes brasileiros, pequenos e medíocres, que gravaram um
vídeo com observações machistas e baixas, com uma torcedora russa. A Copa que
mostra que adversário é só o adversário, e não um inimigo. Os palhaços já
compreenderam, há tempos, isso.
Abraços foram vistos, mas
baixezas também. Isto só nos mostra que a copa, em si, é apenas um evento
social. Mas ao se diferenciar o olhar, seremos companhias para os palhaços e
elevados em nossas próprias réguas. Não é alienação e nem ilusão. Apenas uma
oportunidade de mostrarmos o nosso tamanho, seja ele qual for.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento que consta no Talmude, uma coletânea de livros sagrados dos judeus, que diz:
“não vemos as coisas como elas
são. Vemos as coisas como nós somos.”
Que possamos enxergar a beleza
deste convite que é a Copa, e visitarmos um lugar há bastante tempo esquecido:
nós mesmos. Esta é uma excelente oportunidade para isso. Talvez nesta visita,
no silêncio dos nossos interiores, encontraremos os nossos palhaços, há tempos
esquecidos. E que, felizes por este reencontro, eles nos saudarão por termos,
enfim, compreendido a necessidade do olhar coletivo, da intensidade e do
trabalho em conjunto, sem nos esquecer das palhas nas nossas roupas que nos
darão duas grandes ferramentas para um viver melhor: a leveza e a alegria.
Olhar coletivo, intensidade e trabalho em conjunto. Roupas de palha
para dar leveza e alegria. Lições da Copa. Lições dos Palhaços. Uma palhaçada
verdadeira, com aprendizados que eles sabem e que nos mostram, do alto de suas
moradas, porque moram lá há bastante tempo.
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