sábado, 28 de julho de 2018

A arte de não se sentir pronto

Temos uma relação, no mínimo, tendenciosa com o tempo: quando achamos que ele nos favorece, o reverenciamos; quando achamos que ele nos desfavorece, o marginalizamos. Quando queremos demonstrar experiência e conhecimento, mesmo quando não os temos de verdade, elevamos a nossa voz e reafirmamos nossa condição de experiente. Nesta hora, o tempo é o nosso amigo. Estamos em paz com ele.

Demonstrar que temos um tempo percorrido, um calendário avançado e os poucos cabelos brancos (nunca são muitos) ocupam lugares de destaque na nossa vida que, muitas vezes, é de pura aparência. Sendo ou não eficientes, o que queremos é demonstrar que estamos aqui há bastante tempo e que, portanto, o saber e o conhecer nos pertencem. Apoiamo-nos num espaço cronológico ora para provar que somos relevantes, ora para disfarçar nossos buracos e imperfeições. O fato de estarmos aqui há tanto tempo dificulta e camufla os nossos espaçamentos. Torna árduo o trabalho daquele que observa.

Dizia a placa: “desde junho de 2018”. Nesta hora percebi o nosso tom tendencioso ao lidarmos com a temporalidade. Quando nos interessa, o tempo nos é aliado. Junho de 2018 é agora. Por que colocamos este “desde” para dar um ar de antigo, longo, experiente? Porque nos interessa. Além de uma esperança de que, um dia, este “desde” volte a ser representado pelo significado real que possui: tempo longo percorrido. Quanto mais o tempo caminhar e se tornar antigo, mais nosso amigo se tornará. Ainda mais se este percorrer de tempo contribuir para que louros nos sejam dados.

Podemos concluir, então, que envelhecer é trazer uma bagagem de antigo, uma carga de passado que nos fará fortes perante o outro. Que envelhecer é traduzir a nossa história de passos, é contar os caminhos pelos quais passamos. Envelhecer é assinar a nossa carta de permissão para atuar, para estar, para ser. Envelhecer é se apropriar de um “desde” e justificar a nossa estada aqui. É um apropriar-se da própria trajetória, com o perdão da redundância.

O antigo que nos interessa. O velho que não nos ofende e que nos traz aquilo que sempre buscamos. Envelhecer como uma arte: a de saber que não se está pronto. Somos seres inacabados e gostamos de saber disso. Ganhamos mais tempo da vida para reafirmarmos e para escrevermos as nossas criações. Com mais tempo, convencemos mais pessoas do quão bons somos. A cada ano percorrido, mais ganhos, mais degraus posicionados na nossa contagem que fazemos questão de que o outro saiba. É a partir do saber do outro que se confirma a nossa trajetória. Não basta que nós saibamos. É preciso que o outro saiba também para que nós sejamos e estejamos no mundo. É como se o olhar do outro nos autorizasse a anuência que precisamos para existirmos.

O desde deveria existir para nos formar, mas tem servido para, apenas, informar. A informação que não precede o desenvolver, o construir, o interesse pelo reinventar-se. O desde sendo descaradamente usado para servir de apoio para as nossas miudezas e pormenores. Para a nossa pouca idade e pouco saber.

O desde que reivindica nossa honestidade e transparência. Mas que fazemos de conta que não percebemos a cobrança dele. E por vingança, ele mesmo se encarregará de nos cobrar e de nos desmascarar. É só uma questão de tempo. E tempo é o que o desde mais tem.

Ao mesmo tempo que o envelhecer e o antigo do desde nos interessa, uma pessoa, numa exposição de um museu, diz ao outro:

“Fico cansada quando visito um museu. Ele mina a energia da gente. Fico com vontade de deixar todas as portas e janelas abertas para ventilar. Museu tem uma energia pesada.”

E para arrematar aquela fala desprezível, talvez por ela ser uma pessoa desprezível, completou: “quem vive de passado é museu. Museu é programa de meio período, e olhe lá.”

Tive um professor que sempre dizia que saberemos o valor do bem quando conhecermos o mal. A importância do grande, quando identificarmos o pequeno. Parece óbvio. Mas geralmente é o óbvio que não enxergamos. De tão evidente, ele nos cega. Ao ouvir aquela mulher, me lembrei do professor e da teoria dos opostos que ele nos trouxe.

Dentro de um museu, aonde a História bate à porta, o tempo não nos interessa. Ele é velho, ocioso, ultrapassado, cheio de memórias que não nos interessam. O museu é carregado de energias que nos explicam e que nos trouxeram até aqui. É preciso respeito e reflexão. A História do outro sempre traz, necessariamente, elementos que convergem na nossa História. Mas somos pequenos demais para percebermos estas sutilezas.

O desejo de abrir as janelas e portas para ventilar, daquela mulher, me fez lembrar da simbologia trazida por Saramago, em O ensaio sobre a cegueira. Ela talvez não tivesse forças e coragem para enxergar o que vai dentro dela, por isso a ânsia por um abrir de janelas para jogar para o externo suas dores de não reconhecer a importância da história. O cansaço dela demonstra fragilidade e dependência, quase tóxica, do novo, daquilo que está por vir.

No desde, o tempo nos interessa. No museu, o tempo nos aflige. Na placa, há a esperança de construir um futuro, mas que talvez não chegue. Uma esperança desesperançada. Uma angústia que nos aflige. Um sinal do nosso visível abatimento moral.

No museu, as memórias daquilo que muitas vezes não chegou ou que chegou e nos conscientizou. O medo toma conta de nós e nos cobra compromissos, reflexões.

Opiniões distintas das nossas devem ser respeitadas. Mas nisto não cabe desrespeitar a caminhada alheia ou até mesmo a nossa própria caminhada. E o que é um museu senão uma trajetória de passos dados de um povo, de uma cultura, de um caminho percorrido?

Ir ao passado significa conversar com a nossa escuridão para nos conhecer, mesmo que aquela história não seja, necessariamente, a nossa. Não se trata de dupla identidade, mas sim conhecer um alguém que somos, que fomos, e que ficaram esquecidos, lá atrás.

O tempo do museu é o tempo daquilo que foi construído e que está vivo, itinerante, lúcido e que não nos permite fugir. A História está lá, implacável, com todos os detalhes registrados nos imensos corredores. O tempo do museu nos relembra que muitos heróis deixaram construções e obras. Mas nós não temos a certeza de que todas as nossas linhas serão escritas. Por isso, o tempo do museu nos incomoda tanto e se torna, “um programa de meio período”.

Somos arrogantes demais para nos darmos ao trabalho de conhecermos e de nos apropriarmos de nossa própria história. Nossas esquinas são tão solitárias, por isso colocamos máscaras e museu é programa para “velhos”. Quem são os velhos? O que é ser velho? Velho é o que perdeu a vida. Não é o caso do museu. Não é o caso do idoso que vai bem à frente.

O velho é o que perdeu o sentido e a vitalidade. O antigo, apesar da idade avançada, é atemporal porque a vitalidade e o significado são suas principais marcas.

Confundimos velho com antigo. Talvez daí surjam algumas respostas para a nossa insensatez e falta absoluta de lucidez. Museu não é velho, mas sim antigo, atemporal e vital. Não é cansativo, nem possui energia pesada. Gente não se torna velha. Cansativo é aquele que insiste na marcha à ré, que reflete sua imagem negativa. Meio período deve ser o tempo máximo que tais pessoas dedicam ao saber, e olhe lá.

As máscaras endurecem o nosso caráter, embrutecendo as nossas almas. Podemos não gostar de museus e de quaisquer outras coisas. Mas não conseguir enxergar a vitalidade e a relevância da História, eternizada num museu, é desmerecer os pés que caminham e que muito já caminharam. É desvalorizar os passos dados pelos que passaram por nós.

O tempo do museu é menosprezado, velho, ultrapassado e cheira a mofo. Talvez porque este mesmo tempo nos atemoriza e nos faz recordar nossas próprias memórias, dores, impasses, incongruências e obras inacabadas. Nesta hora, a arte de não se sentir pronto não nos deixa orgulhosos. Por isso, o tempo do museu nos incomoda tanto.

Aquele que usa máscara perde a mobilidade de fazer perguntas e de entender a vida. Aquela mulher não soube enxergar a beleza do lugar aonde estava. Por isso, menosprezou aquele tempo, um tempo passado, porém vital e atemporal. O tempo que não envelheceu.

Aquele que não usa máscara possui uma flexibilidade inerente àquele que vive de verdade, que se orgulha da História do outro e da própria História. Por isso ele valida este tempo antigo que é o verdadeiro, é o tempo do construído.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Oscar Wilde, que diz:

“A tragédia da velhice não é envelhecer, mas permanecer jovem.”

Envelhecer e se tornar antigo é poder fazer as pazes com a vida. Tornar-se antigo não é uma tragédia porque o antigo é vívido, atemporal e vital. Ele tem, além da idade, o principal: trajetória e significado. Mas esta falta de cumplicidade para com a vida, e a nossa insistência na atitude tendenciosa de nos relacionar com o tempo é o que nos faz insistir numa juventude inexistente, numa permanência vazia e sem direção. Isto sim é o que deveria nos cansar.

Os museus são silenciosos. Silenciam-nos e nos trazem memórias importantes que merecem ser recuperadas e refletidas. Acessar este silêncio nos provoca atitudes e reflexões que nos levam para outros lugares, e nos fazem criar laços de pertencimento, como disse Focault.

A reflexão pressupõe o pensar. Quando pensamos, falamos menos. Por isso, o museu é um lugar de silêncio, de reflexão e de atitude. Ele nos relembra que não há como existirem subidas sem quedas. Relembra os muitos que fizeram. Mas não sei se nós faremos.

Um museu é antigo porque tem uma biografia construída e completa, o que, de longe, a juventude possui. Apenas por isso, o museu e seu tempo verdadeiro não nos devem explicações. Eles são a nossa própria explicação. Somos o resultado deles. Gostando ou não do passado, respeitando ou não, somos a sequência dele. Não há como existirmos sem ele.  Um golpe e tanto para a nossa arrogância e para a nossa vaidade.

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