segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Os Medalhões do Machado continuam vivos

Machado de Assis é considerado o maior escritor da nossa Literatura. Falar sobre a obra dele seria uma redundância.

Foi uma pessoa além do seu tempo. Atemporal. Viveu no século XIX e faleceu no início do século XX. Mas ele se encaixa em todas as épocas e contextos. Uma pessoa que escrevia, abertamente, sobre temas polêmicos e pouco discutidos. Não tinha medo de se expor e, por meio de suas obras, colocava o dedo em várias feridas.

Certamente fazia muitos vestirem as devidas carapuças.

Sua forma inovadora de escrever e, principalmente, sua audácia na ausência do medo de se expor, fez dele uma pessoa admirada por críticos, estudiosos e leitores do mundo todo. A obra dele foi equiparada a obras de Shakespeare e Camões.

Escreveu um conto chamado: “O Medalhão”, bastante conhecido e de leitura obrigatória nos meios acadêmicos. Trata-se de uma ironia, de uma sátira do comportamento da sociedade da época, mas que cabe perfeitamente para nossa reflexão.

Neste texto, ele pontua todas as fraquezas humanas, todos os vícios, os falsos atalhos, as pequenezas de todos nós. Fraquezas que não são consideradas fraquezas, pelos personagens do conto, mas sim como recursos poderosos para o “se dar bem na vida”.

E o que é “se dar bem na vida? ”

As diversas passagens do conto vão dar as respostas. Falsas, obviamente, mas vão dar estas respostas, estas pistas para “se dar bem”, “ser bem-sucedido”, “ser um notável”. Respostas atuais, contemporâneas, familiares.

O conto relata uma conversa entre pai e filho, na noite em que o rapaz completa 21 anos. Terminado o jantar de comemoração, o pai diz ao filho que precisa dizer coisas importantes a ele. E aí todo o conto será uma grande ironia disfarçada desta conversa, supostamente, inocente com o filho.

Logo no início, o pai diz ao rapaz que ele poderá escolher uma entre as muitas carreiras existentes. Mas, diz o pai, “qualquer que seja a profissão de tua escolha, o meu desejo é que você se torne grande e ilustre, ou pelo menos, notável. A vida é uma enorme loteria...isto é a vida. ” E aconselha o filho a “aceitar as coisas integralmente. ”

A valorização do parecer acima do ser. Como não é de hoje esta conversa!

O pai continua dizendo ao filho que nenhum outro ofício parece mais apropriado do que o de ser um Medalhão. “Ser medalhão foi o sonho de minha mocidade. Mas me faltaram instruções de meu Pai. ”

“Uma vez entrado na carreira, o melhor é não ter ideias. Você, meu filho, se não me engano, parece dotado de perfeita inópia mental (aquele que não é muito inteligente), conveniente ao uso deste nobre ofício. ”

A perpetuação dos maus exemplos (“mas me faltaram instruções de meu Pai”). Chama o filho de “pouco inteligente”. Por isto o aconselha a ser um Medalhão.

“O passeio nas ruas é utilíssimo, com a condição de você não andar desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias”, diz o pai.

E o filho diz: “mas e se eu não tiver um amigo para me acompanhar? ”

E o pai responde: “você pode resolver isto de modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, um contrabando, uma calúnia. Desta forma, dentro de algum tempo, reduzirá o seu intelecto ao equilíbrio comum. Seu vocabulário deverá ser simples, morno e reduzido. Melhor do que tudo isto, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, que têm a vantagem de não obrigarem os outros a um esforço. De resto, o mesmo ofício te ensinará os elementos desta arte difícil de pensar o pensado. ”

Pensei na mediocridade construída às escuras, às avessas, na nossa sociedade que ajudamos a construir e da qual fazemos parte.

Tudo o que Machado de Assis explora neste conto são “regras” estabelecidas pela hipocrisia e pela mediocridade. “Seja assim e se dará bem. ” E não fazer parte disto é conscientizar-se de que se pagará um alto preço por ir na contramão do estabelecido, do ajustado, do azulejado.

Questionar é para poucos. Seguir o fluxo é para muitos. Trilhar o caminho já trilhado estraga menos o calçado, mas, de verdade, não te ensina a caminhar.

A sociedade é assim. Todos fazem isto. Por que você quer fazer diferente? “Pare de ser bobo”, dirão para você.

A ironia está fortemente presente nessa última fala do pai: “...desta arte difícil de pensar o pensado. ” Como pode ser difícil pensar sobre algo que já foi pensado por alguém? Machado de Assis estava se referindo aos medíocres, aqueles que se estabelecem no meio, no trivial, naquilo que todo mundo já viu, já conheceu e já aceitou.

E o rapaz diz: “vejo que o senhor condena toda e qualquer aplicação do que é moderno. ” E o pai respondeu: “condeno a aplicação. Louvo a denominação. O mesmo direi de toda a terminologia científica: você deve decorá-la. Porque o método de interrogar os mestres, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inserir ideias novas. ”

E o filho, ironicamente, diz:

“Nossa, que profissão difícil. ” E o pai diz: “Mas eu ainda nem te falei sobre os benefícios da publicidade, que você deve requerer à força de pequenos agrados. O verdadeiro Medalhão, longe de inventar um tratado científico sobre a criação de carneiros, compra logo um carneiro e dá de presente aos amigos na forma de um jantar, cuja notícia não poderá ficar indiferente aos convidados. Uma notícia traz outra. E aí o teu nome estará nos olhos do mundo. Não recuse um lugar à mesa para os repórteres. Se eles estiverem muito ocupados e não puderem dar a sua notícia nos jornais, ajude-os e redija você, mesmo, a notícia da festa. E se por causa de algum escrúpulo você não quiser anexar os elogios ao teu nome, peça para que um amigo o faça. ”

E o filho diz: “O que me ensina não é nada fácil. ” E o pai diz: “É difícil, leva tempo, anos. É preciso paciência e trabalho. Felizes os que conseguem. Mas você triunfará. Creia em mim. Somente neste momento você poderá dizer que está estabelecido na vida. Começará neste dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões. Elas virão até você.  Toda questão é não infringir as regras. Prefira falar sobre metafísica política porque não obriga a pensar e a descobrir. Nesse ramo tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado. Em todo o caso, nunca ultrapasse os limites de uma invejável vulgaridade. ”

“Farei o que puder”, disse o filho. “Nenhuma filosofia? ”  E o pai responde: “ no papel e na língua, alguma; na realidade nada. Proíbo você de chegar a outras conclusões que não sejam as já encontradas por outros. Foge a tudo o que possa cheirar a reflexão, originalidade. Use o escárnio e a zombaria. Mas não use a ironia. ”

O conto é finalizado com o pai dizendo ao filho que, por ser já bem tarde, precisam ir dormir. Mas pede a ele que reflita bem sobre os conselhos recebidos.

Destaquei as passagens que mais me chamaram a atenção, mas ele vale uma leitura completa. Ele trata de questões atualíssimas como:

- ascender socialmente sem grandes esforços. “Faça isto e você se dará bem. ”;

- cinismo (“é preciso paciência e muito trabalho para dar certo. Mas você triunfará. ”);

- enriquecimento às custas do empobrecimento intelectual e moral (“fuja da originalidade”);

- o esforço é inútil (“compre o carneiro pronto e dê de presente”);

- vá com a maioria (assim ficará mais fácil ser aceito. E o melhor: dificilmente você será questionado na vida);

O discurso deste pai é para a visibilidade do filho, e não para a profundidade. O senso comum, o esvaziamento do valor e do sentido e o entretenimento em detrimento do conhecimento são imprescindíveis para quem quer se tornar um Medalhão.

Você não precisa pensar. Anule-se como pessoa, e tudo estará certo para você. Jogue fora suas opiniões e hábitos. Goste do gosto dos outros.

Mantenha-se neutro. A neutralidade é invisível.

Faça um MBA em aprender a jogar o jogo das relações e a arte das dissimulações. Seu currículo será priorizado. E sempre se lembre de tomar as ideias emprestado, não perca tempo pensando sobre isto. Vá em busca do que já foi criado e use o que já foi usado.

Evite dar a sua opinião, a menos que seja para concordar com o outro. E não queira entender muito bem como funciona uma coisa.

Agrade e faça elogios. Vivemos na sociedade do espetáculo. Torne-se visível, mas cuidado para não ser transparente. Lembre-se de que isto não será bem visto na sociedade do espetáculo.

Tive uma Gestora, que fez aquele MBA ao qual me referi acima, que nos pedia para “nos vender mais”. Até hoje estou tentando entender o que ela queria dizer com aquilo. Quando se faz bem algo ou alguma coisa, o reconhecimento chega. Não precisa se preocupar com ele.

A sociedade do espetáculo é excelente para criar estratégias que estejam acima da competência. A competência leva tempo para ser construída e para surgir. O espetáculo desta sociedade é imediato e instantâneo. Leva só três minutinhos. E se esfriar, é só requentar.

Decidimos para agradar ou porque é o certo e o ético?

Não precisamos pensar: apenas nos preocupar em reproduzir será o suficiente. O problema é que estamos replicando modelos ineficientes. Ainda bem que não podemos generalizar.

Faça o trivial. O refinamento não me interessa. Aonde eu compro um carneiro?

Este conto, portanto, é um paradoxo. E se há o paradoxo é porque a base ainda não está sólida, ou seja, nossos valores, nossas crenças. Quem somos?

Se os medalhões existem é porque os alimentamos. Mesmo que seja por sobrevivência. Mas os alimentamos. Ou alguém discorda?

Clarice Lispector tem uma frase que diz:

“...passava o resto do dia representando, com obediência, o papel de ser.”

Que saibamos identificar estes medalhões a quem servimos, com obediência, o nosso papel de ser. E que possamos sair do nosso papel de ser para nos transformarmos no nosso papel do ser, de preferência, com os medalhões bem longe da gente, morrendo de fome.

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