domingo, 30 de agosto de 2015

Filosofia do Camelo

Uma mãe-camela e um bebê-camelo estavam à toa, quando, de repente, o bebê perguntou:

-  Mãe, por que os camelos têm corcovas?

- Bem, meu filho, somos animais do deserto. Precisamos delas para reservarmos água. E exatamente por isto, somos conhecidos por sobrevivermos sem água.

- Certo. E por que nossas pernas são longas e nossas patas arredondadas?

- Filho, certamente elas são assim para permitir caminharmos no deserto. Sabe, com essas pernas longas, mantemos o nosso corpo mais longe do chão do deserto, que é mais quente que a temperatura do ar. Desta forma, ficamos mais longe do calor. Quanto às patas arredondadas, podemos nos movimentar melhor devido à consistência da areia.

- Certo. Por que nossos cílios são tão longos? De vez em quando eles atrapalham minha visão!

- Filho, esses cílios longos e grossos são como uma capa protetora. Eles ajudam na proteção dos seus olhos quando atingidos pela areia e pelo vento do deserto, respondeu a mãe.

- Deixa ver se eu entendi: a corcova é para armazenar água enquanto cruzamos o deserto, as pernas para caminhar através do deserto, e os cílios são para proteger meus olhos do deserto. Então, o que estamos fazendo, aqui, no Zoológico?

Esta história, de autoria desconhecida, é muito sábia e vale refletirmos sobre ela.

Lembrei-me dela ao passar por um comércio, que há perto da minha casa, cujo dono possui um passarinho preso numa gaiola. Ele é lindo: pequeno, gordinho, amarelinho e tem um canto delicioso de se ouvir. Ele fica sozinho, pulando ali dentro, sem perspectiva alguma de vida. Apenas a de servir ao egoísmo do dono. E que bom que aquele passarinho não tem consciência disto. De que adianta toda a habilidade e a capacidade de cantar daquele pássaro se infelizmente, ele está no lugar errado?

Penso que o bebê-camelo e o pássaro possuem várias coisas em comum. Questionar sua sorte, como fez o bebê-camelo, pelo menos no mundo animal, ainda não presenciei. Então, eles ainda vão depender, durante um bom tempo, do bom senso do ser humano em respeitar a natureza e as necessidades de cada espécie.

E conosco? Acredito que pelo menos uma vez na vida já nos sentimos ora bebê-camelo, ora pássaro. Por mais duro que sejam estas experiências, e só quem já passou por elas pode dizer o quão difícil são, com tudo aprendemos na vida. E se soubermos absorver todo o aprendizado que esta experiência nos deu e aplicá-lo efetivamente em nossa vida, certamente será difícil voltarmos a nos sentir bebês-camelo ou pássaros, dentro de gaiolas.

Aquela mãe-camela se orgulhava de responder a todas as perguntas do filho realçando a habilidade, o conhecimento, a capacidade e a experiências adquiridos ao longo de sua vida, e também realçando as qualidades da espécie, para o filho. Mas não conseguiu responder a pergunta mais importante: “Então, o que estamos fazendo, aqui, no Zoológico? ”

E por que ela não conseguiu responder? Porque aquela mãe-camela deixou enferrujar, nela, uma qualidade fundamental que todos nós temos: a capacidade de perguntar, de criticar, de não aceitar o senso comum. Esta capacidade deve ser usada diariamente e ela é uma das ferramentas poderosas que não permitirá a nossa entrada em gaiolas ou zoológicos. E se por descuido entrarmos, o questionamento nos fará sair dele rapidamente. Mas é preciso agir rapidamente, porque a ferrugem é difícil de sair. E se você deixá-la criar espaço e se estabelecer, ela poderá arranhar as suas estruturas e também coisas fundamentais como valores, crenças e propósito de vida. E quando você perceber que a ferrugem tomou conta, tentará usar aquele produto que disseram que limpa, mas poderá ser tarde demais.

Este é um cuidado muito especial que devemos ter. É preciso lembrar que a ferrugem se instala de forma silenciosa, quieta. Ela vai tomando uma cor alaranjada e se esfarela.

Estar e permanecer no zoológico ou nas gaiolas são escolhas. Escolhas nossas e que ninguém poderá fazê-las por nós. Muitas vezes nos enxergaremos e nos encontraremos em gaiolas ou em zoológicos, mas ainda não teremos forças e condições para sairmos de lá. Tudo bem. O nosso tempo vai chegar. O mais importante é descobrir se queremos ou não estar lá. Se descobrirmos que não queremos estar ali, é só uma questão de oportunidade e de tempo: na hora certa, daremos adeus às gaiolas e aos zoológicos. E o mundo se beneficiará de nossas habilidades e de nosso talento.

Mas há o grupo dos que gostam das gaiolas e dos zoológicos. Pelo menos, aparentemente. Eu conheci algumas pessoas deste grupo. Convivi bem de perto com elas. Aliás, passei tempos longos em alguns zoológicos, por isto tive a chance de conviver com muitos habitantes de lá. Aprendi muito. A convivência nestes ambientes me fez valorizar ainda mais minhas escolhas e a decidir de qual lado gostaria de estar. O processo é moroso e lento. Mas não há outro caminho. Só a construção sólida te dá a segurança de poder abrir a janela e deixar o sol entrar.

Estas pessoas que conheci, e que aparentemente diziam que gostavam dos zoológicos e das gaiolas, acreditavam que era mais fácil a convivência num zoológico: as regras estavam prontas, os horários criados e a rotina reinava. Quando eram perguntados: “vocês são felizes? ”, as suas respostas eram sempre seguidas de um longo silêncio e de um tímido gaguejar: “ah, si... sim, sou, quer dizer, acho que sou. Mas quem é de verdade? ”, logo argumentavam isto.

Mas eu sabia que no fundo não eram. Flagrei-os, muitas vezes e escondidos, procurando a chave para abrirem a porta do zoológico e saírem, mas ainda não estavam prontos. Tiveram de devolver a chave para o administrador, assim que foram pegos em flagrante. Eu mesma tive de devolver a chave inúmeras vezes, também. Estar pronto é uma construção. É uma conquista diária.

Esta construção e esta conquista poderão ser iniciadas dentro do zoológico, estejamos atentos. Lá dentro é muito comum nos darem muitas e muitas munições, e tentarem nos convencer de que lá é o lugar certo para nós. E se não concordarmos, ainda nos acharão um tanto esquisitos. “Como assim você não quer ficar aqui, neste zoológico? Tem tanta gente lá fora querendo estar aqui? Como você não enxerga isto? ” E ainda passaremos por mal-agradecidos. Mas Paulo Coelho já dizia: “só os medíocres agradam a todos. ”

Existem políticas dentro de um zoológico. Existem regras dentro de uma gaiola. E se queremos sobreviver lá ou ainda ficarmos por lá mais um tempo, será preciso segui-las. Se tivermos a coragem de questionar estas regras, estejamos preparados para sermos vistos como problemas para aquele zoológico. E consequências virão: boas ou não, o risco será nosso. Por isto nos calamos, na maior parte das vezes, dentro de um zoológico ou dentro de uma gaiola.

E se tentarmos falar mesmo sabendo das regras e das políticas, estejamos certos de que alguém, gentilmente, nos lembrará das regras e das políticas. Além disto, nos convidará a nos recolher porque estará tarde, e será preciso trancar os portões do zoológico, e colocar a manta sobre a gaiola.

Há tanto o que dizer! É preciso ouvir os silêncios. Mas como ouvir o silêncio se não o aprendemos? Não há este curso na grade corporativa de um zoológico. Muito menos na grade de uma gaiola, porque lá é menor e não tem orçamento para isto. Talvez no ano que vem, caso melhorar a economia e caso a inflação se estabilizar.

Desengavetar nossos talentos, habilidades, conhecimentos é fundamental para sermos felizes. Colocá-los em uso próprio e do próximo é o que dá sentido à vida, é o que dá sentido ao propósito. Por isto aquele camelo-bebê estava perdido. E sua mãe, mais ainda.

É preciso preparo e coragem para sair do zoológico ou da gaiola. E mais: saber se queremos sair, que é o mais importante. E depois disto, decidir e fazer, seja dentro ou fora do zoológico.

O nosso dom, talento, habilidades, missão, conhecimento são caros demais para nós. Somente nós, e ninguém mais, sabe o quão difícil foi chegarmos até aqui. É imprescindível que saibamos o valor das coisas, e não o seu preço, que é algo bem diferente. O valor das coisas, das nossas coisas, só a gente sabe. Mas o preço, ah...o preço, este está bem claro na plaquinha dentro do zoológico. Há o preço de tudo ali dentro.

E quando aprendermos, na vida, a diferenciar valor de preço, e a viver de acordo com isto, certamente não precisaremos mais devolver a chave do portão do zoológico para o administrador, se a nossa escolha foi a de sairmos de lá, porque teremos a certeza de qual lado vamos querer estar.

Para concluir este texto, deixo uma frase de Fernando Sabino, escritor brasileiro, que diz, sabiamente:

“Liberdade é o espaço que a felicidade precisa. ”

Penso que seja isto o que aquele lindo pássaro e aquele bebê-camelo precisassem. E nós também. A liberdade é umas das ferramentas que nos levará à felicidade.

A única diferença entre eles e nós é que, no caso do pássaro e do bebê-camelo, infelizmente, não tinham acesso às chaves dos portões e das gaiolas. Porém, no nosso caso, temos acesso às chaves. Basta observarmos aonde elas foram guardadas e conquistarmos o direito de possui-las e de usá-las.

O caminho é longo, mas divino.

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