quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Jogar sem a bola

Conheço pouco sobre futebol. Sou apenas uma torcedora. Mas gosto de observar comportamentos e prestar atenção no que não está sendo dito.

O futebol mostra bem o comportamento humano, e explica o nosso Estar e Ser no mundo. Ele é um excelente lugar para nos apontar o abismo que nos separa do que queremos ser e do que, verdadeiramente, somos.

Meu pai sempre diz que se você quiser conhecer bem uma pessoa, dê a ela dinheiro e poder. E o mundo do futebol (não somente ele) é um celeiro para provar isto.

O lado bom de conhecer pouco sobre um assunto, é que, justamente por isto, prestamos mais atenção nele do que talvez fizesse uma pessoa experiente. Isto se deve à insegurança que temos em função deste desconhecimento. Temos medo de errar. Prestamos, então, mais atenção. E isto nos faz enxergar coisas que os mais entendidos talvez não vejam.

Em contrapartida, quando conhecemos profundamente um assunto, exatamente porque o dominamos, alguns detalhes nos escapam. Contraditório. Mas é assim.

Assumindo o pouco conhecimento que tenho sobre futebol, observo com mais atenção os comportamentos, falas, gestos, posturas, entrelinhas, aquilo que querem falar, mas não podem, quem ganhou e quem perdeu, pessoas, vaidades e resultados.

Competir.

“Se quisermos ganhar o campeonato, vamos ter de mostrar que somos o melhor”, disse um atleta. Fiquei pensando nesta frase: “...vamos ter de...”.

Aprendi, na escola, que “ter que”, é fazer algo, porém sem a obrigação, sem aquele compromisso. É simplesmente fazer. Mas “ter de” é fazer algo de forma obrigatória, necessária, imprescindível. Lembrei-me daquela aula e do quanto ela é atual, do quanto aquele ensinamento que tive há anos é atemporal.  O “temos de” nos é exigido diariamente, o tempo todo. O “temos de” ser o melhor é um imperativo.

Não basta sermos. Temos de ser o melhor. Sermos, apenas, não é suficiente. É pouco. Frágil. Invisível. Indiferente. Ninguém quer Ser. Todo mundo tem de ser o melhor. Mas o que é “ter de ser o melhor”? Não temos esta resposta. Mas vivemos como se a tivéssemos.

Ganhar o campeonato é saudável. Mas deveria ser bom também apenas participar dele.  Participar é construir. É fazer parte. É estar. É Ser. Mas não é valorizado. O segundo lugar sempre é visto como fracasso. A medalha é mais valorizada do que o pertencer, do que o participar, do que o construir.

“Fulano precisa aprender a jogar também sem a bola.”, é outra coisa que se diz no futebol.  Pensei sobre este significado e as analogias com a nossa vida. Foram muitas.

Jogar com a bola, sabemos bem o que é: o que buscamos o tempo todo: o gol, a superação, a glória, o topo, o gritar do nosso nome, a realização, o reconhecimento.

Mas o que é saber jogar sem a bola?

Além de ser o desenvolvimento de outra habilidade tão importante quanto estar com a bola, é essencial para a vida saber jogar sem ela. Num cenário competitivo como o nosso, e também no futebol, o que se busca o tempo todo é estar com a bola. Mas nem sempre isto será possível. Por isto desenvolver a habilidade de saber jogar sem ela é tão importante.

A questão é que, apesar de cobrarem isto de nós (aprender a jogar sem a bola), isto não é valorizado. Somente quem faz o gol ganha as glórias.

Marcar o gol, efetivamente, somente é possível com a bola. Mas se não estivermos com ela, também poderemos marcar os nossos gols como dar um bom passe, defender a bola do adversário, driblá-lo, saber perder a bola, etc. Enfim, ajudar a construir aquele jogo.

Mas alguém valoriza quem sabe jogar sem a bola? Somos cobrados para aprendermos. Mas quando aprendemos a jogar sem bola somos cobrados para fazermos o gol.

Podemos fazer um belíssimo passe, dar a melhor assistência, mas sempre seremos os assistentes, os coadjuvantes. E os protagonistas? São aqueles que fazem os gols. Injusto? Também acho. Mas é assim. E quem ousar discordar, correrá um sério risco de ser visto como vítima, como aquele que “está criando problemas”.

Aquele discurso que nos contaram “o importante é participar” é falso, não funciona para a nossa sociedade. Este discurso só funciona para sociedades mais justas, aquelas nas quais quem ajuda a construir é tão importante quanto quem cortou a fita no dia da inauguração.

Na época em que estavam construindo os estádios para a Copa, um jornalista perguntou para um pedreiro como ele estava se sentindo ao construir aquele estádio. E ele, sabiamente, disse: “estou feliz por saber que, mesmo anônimo, faço parte disto. Não vou poder entrar aqui, porque não tenho condições, mas pessoas se sentarão nestas cadeiras que, da minha casa, saberei que eu ajudei a montar. ”

Um pedreiro disse isto. E ainda dizem que Universidades fazem de nós pessoas melhores. Tenho minhas dúvidas.

Este pedreiro certamente sabe jogar sem a bola e deu um belo passe. Ele não está no palco, mas não está se importando com isto. Sabe passar a bola para que o outro brilhe.

Ele deveria ser o convidado de honra daquele estádio. Mas a nossa sociedade somente valoriza quem está com a bola, quem faz o gol. E ele não estava com a bola nos pés, mas sabia jogar sem ela. Grandes lições são aprendidas com pessoas que não valorizamos.

Muitas vezes aquele que sabe jogar sem a bola joga mais do que quem está com a bola. Aquele passe perfeito, mas o atacante chutou para fora. Mas quem enxerga o passe perfeito?

Muitas vezes aquele que está sem o microfone fala melhor do que aquele que está com o microfone. Às vezes o que não está falando tem mais a dizer do que quem está falando. Mas quem observa isto? Somente saberá quem aprendeu, logo cedo, a jogar sem a bola.

Estar no palco é saudável. Quem não quer aplausos? Ele simboliza o caminho certo. Mas querer sempre estar lá é doentio. É fuga. Enquanto estamos no palco não temos tempo de olharmos por detrás das nossas cortinas e enxergarmos os nossos bastidores. É fundamental conhecermos os nossos bastidores para que possamos brilhar no palco. E aquele pedreiro conhecia muito bem os bastidores dele.

Estar nos bastidores, saber jogar sem a bola é aceitar o convite da vida à reclusão, ao silêncio, ao anonimato, ao ouvir a sua própria voz mesmo quando não se tem nada a dizer. Mesmo quando ninguém quiser ouvir a sua opinião.

É abrir mão de ter razão, é deixar o outro ganhar, e aceitar que perdeu, muitas vezes. Mas estar no palco também é aceitar que perdeu, porque não existem ganhadores nem perdedores. O que existe são vivenciadores.

Acho que esta palavra não existe, mas ela traduz o que digo: precisamos aprender a viver as nossas histórias, com ou sem bola. Sermos vivenciadores de nossa própria experiência.

Começamos a perder no momento que achamos que ganhamos.

Ganha-se quando se perde; perde-se quando se ganha. Esta é a vida. Este é o jogo. Ora nos bastidores, ora no palco, ora entre um e outro. Ora fechando a cortina, ora abrindo. Ora ninguém na plateia para te ver. Ora com pessoas te vaiando, ora aplaudindo, ora indiferentes.

Jogar sem a bola é isto. É um incessante trabalhar de vaidade. É um constante aprender a passar a bola, mesmo que não se queira, porém é preciso. O outro está bem mais à frente. Ele tem a visão do jogo. Passe a bola para ele.

Podemos tentar fazer o gol sozinhos? Podemos. Mas só se estivermos bem colocados e valer corrermos este risco. Caso contrário, comprometeremos o time por causa da nossa vaidade. Vaidade que só quem não aprendeu a jogar sem bola, tem.

Jogar sem a bola é deixar de esperar reconhecimento porque ele pode não chegar.  E o que você fará nesta hora? Se você souber jogar sem a bola, saberá esta resposta no momento em que a vida te perguntar.

É preciso aprender aquela lição do pedreiro: a não estar em evidência e ficar bem com isto.

Às vezes, a bola nem dará o gostinho de ficar um pouco conosco. Ela apenas passará pelos nossos pés, mas vamos ter de passá-la por necessidade, por obrigação. Que difícil. Também queremos marcar. Mas será preciso aprender a jogar sem a bola para fazermos o gol. Esta é a exigência da vida.

Aprender a jogar sem a bola é não esperar aplausos. Porque eles não virão, muitas vezes. Caso eles venham, será um curto aplauso porque os aplausos principais serão para quem está com a bola. Este é o nosso mundo. Se é justo? Eu acho que não. Mas, enquanto isto não muda, bom será aprender a jogarmos sem a bola num mundo em que não há bolas para todos.

É preciso conquistá-las, o que significa passar um tempo nos bastidores vendo como se constrói uma bola, como se chuta, como se faz, como se lança. E os bastidores também servirão para você descobrir que o seu lugar é lá mesmo, que não quer estar no palco.

Jogar sem a bola é muitas vezes ter de dar satisfações sobre algo que você não queria: “Por que você não passou a bola? ”, perguntarão para você.

É sujeitar-se a não ser reconhecido, a cair no esquecimento.

É escrever uma música que fará sucesso em outra voz, que não a sua.

É sujeitar-se a receber um tapinha nas costas: “Parabéns, você fez um belo trabalho. ” Mas a promoção não veio para você. Sabe por quê? Porque o trabalho que o outro fez, embora infinitamente menos importante, tem mais visibilidade, e, portanto, aparecerá mais que o seu.  Então quem vai para o palco será o outro. E você? Você deverá aplaudi-lo senão quiser passar por invejoso e sem “espírito de equipe”.

Deixar que o outro brilhe é um difícil exercício de grandeza de espírito, de humildade.

Aprender a jogar sem a bola é assumir o seu lugar nos bastidores da vida, enquanto o outro brilha no palco. Você já pensou que o seu talento seja o de fazer o outro brilhar? E mesmo você insistindo em subir no palco a vida insistirá em te recolocar nos bastidores?

Aceitar que somos pequenos nos fará nos sentir muito confortáveis nos bastidores. Lá é um lugar pequeno.

A nossa trajetória diz muito sobre nós e sobre qual lugar ocuparemos na vida. Seja no palco, com a bola na mão; seja nos bastidores, aprendendo a viver sem a bola, aprendendo a passar a bola para o outro brilhar.

E que a gente não pense que viver no palco, de posse da bola, a nossa vida será simples: mesmo quando estivermos lá, ouviremos alguém dizer: “os seus cinco minutos já acabaram. ”

Vivemos numa efemeridade sem precedentes. “Quem é o próximo, por favor? ” Aí você dirá: mas eu ainda não acabei. E dirão a você: “desculpe, mas o seu tempo se esgotou. ” E neste momento, se você construiu um sólido bastidor, você terá um lugar bem seguro para se recompor e certamente ele te devolverá o que o palco te tirou.

O bastidor te esconde, mas te oferece coisas sustentáveis como a humildade. O palco te expõe, mas te oferece teias que talvez você nem perceba que caiu. A vaidade é um exemplo clássico: “Imagina, não precisava. ” “Imagina, eu nem me preparei tanto assim? ” A vaidade traz uma pseudonormalidade para coisas que não deveríamos aceitar como normais.

Os vaidosos dizem que o palco é para poucos. Na verdade, os bastidores são para poucos. Bastidores são para pessoas que não precisam de aplausos.

O bastidor pode revelar talentos escondidos; o palco pode apagar a luz de repente. O palco é o lugar típico para o ego. Tem uma frase que diz: “Não deixe o seu ego acompanhar a sua ascensão. O perigo é se você perdê-la, para onde irá o seu ego? ”

Como saber o caminho? Não há como sabê-lo.

Há uma belíssima frase de Clarice Lispector, que trago para encerrar o texto, mas não a reflexão, que diz:

“Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. ”

Que cada um de nós possa viver, com sabedoria, nos palcos e nos bastidores de suas vidas.

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