Para este texto, parto de uma
chamada num outdoor que dizia: “aqui, supletivo acelerado”.
Fiquei, por alguns minutos, refletindo sobre este convite. Seria aquilo um convite?
De qual espécie? Ou uma farsa disfarçada? Farsas precisam de disfarces quando elas
não dão conta do tamanho do despenhadeiro.
Voltei para casa pensando sobre o
escrito no outdoor, sem saber que o tema para o próximo texto estava
escolhido. E aqui está ele. Obrigada, outdoor.
É justamente com atenção ao não
dito, que o dito se apresenta e se desdobra a nossa frente, sem demoras. Um outdoor
inofensivo e sujo, estático na forma, mas não no conteúdo. Parado estava sobre
uma parede. No entanto, o conteúdo dele, criado por alguém que possivelmente não
se formou por meio de supletivo, não era estático, pelo contrário, dinâmico e
vivo.
Dependendo da intenção que há por
trás do convite, porque sempre há, e se eu o aceitar, a queda será somente uma
questão de tempo. Um convite feito assim, sem pretensões, soa sincero e
singelo, nos favorecendo à miséria camuflada de vitória. E como não percebemos
a nossa miséria trajada de vitória, não parecerá ofensa. E se ofendidos não
estamos, se miseráveis não formos, se camuflados não percebemos, o sino continuará
a nos chamar para a missa porque nada terá de novo. E, assim sendo, será o
bastante, suponho.
Supletivos existem para cobrir chagas
criadas por aqueles que se servem delas, ganham com elas. Nada existe que não
beneficie alguém. Eles refletem uma ausência e uma arbitrariedade. Quem faz o
supletivo hoje é porque não pôde estar ontem. E como este alguém não pôde estar
ontem, o supletivo surge, cheio de acúmulos. Para escondê-los, aquele que cria
a chamada do outdoor grita “aqui, supletivo acelerado”. E acelerado, como
enxergar os acúmulos?
Acumular significa amontoar,
reunir ou, num sentido mais esperançoso, “juntar terra em volta das raízes das
plantas”, como nos traz o dicionário. Mas, não desejando ser pessimista, creio
que o acúmulo que trago aqui carrega mais o sentido daquilo que excede e mata,
do que daquilo que é juntado para nutrir a raiz de uma planta. Portanto, o
nosso supletivo segue carregado de acúmulos amontoados por fazeres excedidos.
Acumulados, como enxergar o que vai lá, embaixo? Como saber a entrelinha se
tampouco as linhas compreendemos?
Compreender os acúmulos é imprescindível
se quisermos compreender o que nos ameaça. Um grito de “supletivo acelerado” é
uma ameaça, uma agressão. Como fazer um supletivo de forma acelerada se,
justamente, fazer supletivo indica atraso de uma estrada que deveria ter sido
percorrida? Por que correr? Para quê? “Quem ganha com esta correria?”,
perguntaria o Padre Faria, de “O Conde de Monte Cristo”, obra do escritor
francês Alexandre Dumas. É preciso descer as escadas para conhecer a razão pela
qual compramos a necessidade de correr, nos vendida por vendedores habilidosos.
Desçamos, então. Vou à frente, leitor, afinal, dei a ideia. Mas aonde estão os corrimões
para que, no mínimo, possamos apoiar as nossas mãos, na hora do cansaço?
Sem corrimões, a descida é mais rápida.
Sem eles para nos apoiar e nos favorecer à parada para questionar o que se vê,
aceitamos os convites, obedientemente. Não sentimos a necessidade da busca das
razões desta obediência, porque a nossa obediência não é percebida, é, apenas,
consentida, o que é bem diferente. Uma obediência exata e de medidas alinhadas.
Quando há obediência com
medidas certas, há lugar para buscar razões? Há espaço para a dúvida? Neste
lugar de obediência eficiente, a própria razão se desajusta, não se conhece
mais.
Triste perceber o quanto vão
cheios os supletivos acelerados. O quanto servimos a esta submissão. E de tão
submissos, achamos que ganhamos. Como é triste! Apressamos para perder. Aumenta-se
o preço na prateleira sem que saibamos. Depois nos dão o desconto, agora querem
que saibamos. Ficamos felizes. Agradecidos, servimos sem saber, até porque
agora não querem que saibamos. Por isso o outdoor, a correria, o
acelerado, a retirada dos corrimões que nos ajudam a parar para, no mínimo,
descansar. Sem eles, não descansamos. Sem descanso, não paramos. Não paramos:
um passo para não encontrar, não enxergar, não ler. Se não lemos, não podemos
interpretar. Sem interpretação, sem compreensão, seremos iscas fáceis para uma
matrícula apressada.
Não se pode negar a necessidade da
pressa, da urgência, da rapidez quando se fizeram demandadas. Mas é preciso
confessar este hábito que nos conforma a tudo ter de resumir em um parágrafo,
no discurso curto. É preciso assumir a hostilidade de mantermos um olhar
ausente sobre aquilo cuja urgência de discutir exige. Supletivo acelerado? Não
estamos exagerando neste desespero de chegarmos a um lugar sequer traçado, no
mapa? Como acelerar o supletivo se nem começamos a estudar? Por qual motivo
insistimos no nosso funeral? Como avançar se insistimos em regredir? Que grande
crença temos no declínio.
O supletivo é a vítima deste
texto, não o vilão. Quem são os vilões? Todos nós, exceto o supletivo. Vilão
não é, somente, o que cria o texto para o outdoor. Ou somente aquele que
paga para alguém criar o texto. Vilão é, também, aquele que consente de forma
indulgente a mendicância que é criada com a anuência de todos, sem exceções. Um
mais, outros menos. Mas todos. De forma direta, indireta, contribuímos para o
que vivemos. Nossa sociedade, e tudo o que nela há, é reflexo, não origem. A
nossa conivência com o caminho esgarçado vem de longa data.
O que nos atrai tanto na pressa,
no acelerado? Talvez certa repugnância pela necessidade de construir. A paisagem
da caminhada não nos interessa, mas sim o fixo da chegada. Encostamos. Passamos
rapidamente para dar tempo de passar pelas outras coisas rapidamente. O rápido
é o nosso lugar-comum. Queremos. Assinamos. Aceitamos. Agrada-nos o outdoor
com o convite de “aqui, supletivo acelerado”. Entretanto, agredimos
aquele que, um dia, nos convidou a conhecer o que havia fora da caverna. O mito
da caverna de Platão encontra verdade e soa feliz, em nós.
O rápido nos acena, simpático. O
devagar quer diálogo. Escolhemos o aceno simpático. Dialogar é ultrapassado.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento de José Saramago, que diz:
“Também é bom fazer perguntas
quando se sabe que não irão ter respostas. Porque depois delas se podem
acrescentar outras, tão ociosas como as primeiras, tão impertinentes, tão
capazes de consolação no retorno do silêncio que as vai receber.”
Que mais perguntas sejam feitas,
mesmo que respostas não nos forem dadas. Formular uma pergunta nos ajuda a
acertar as nossas posições nas cadeiras, a buscar outros lugares, a nos incomodar
com os fiapos rotos que ameaçam a nossa roupa, a aceitar o supletivo porque
ainda é o que se pode fazer, porém fazê-lo com tempo para exercê-lo, apesar de
ele ser uma estrada que nos deram por esmola. Perguntar exige que todos
trabalhem, mesmo que apenas silêncios nos tenham sido devolvidos, como
nos traz Saramago.
Fazer pergunta incomoda. E o incômodo
traz vida, remexidos, trabalho, ação. Fazer pergunta aguça o olhar para
estranhar “aqui, supletivo acelerado”. Perguntar obriga o outro a buscar. Perguntar
é ato de recusa ao pronto, ao fast, à esteira da commodity.
Perguntar é revolucionário.
Se ainda obrigatório for que a
gente ouça o silêncio doado como migalha, pelos criadores do outdoor,
que esse silêncio seja ouvido tão alto, tão alto, que o autor dele saiba que o ouvimos,
e bem. Não há inocentes. Também construímos migalhas e damos aos outros como
restos. Ou não? Um deserto vivido por todos nós, de conveniências, de
convivências, de achados e de perdidos. Sem muita água. Porque ela vai escassa.