domingo, 30 de janeiro de 2022

Supletivo acelerado

Para este texto, parto de uma chamada num outdoor que dizia: “aqui, supletivo acelerado”. Fiquei, por alguns minutos, refletindo sobre este convite. Seria aquilo um convite? De qual espécie? Ou uma farsa disfarçada? Farsas precisam de disfarces quando elas não dão conta do tamanho do despenhadeiro.

Voltei para casa pensando sobre o escrito no outdoor, sem saber que o tema para o próximo texto estava escolhido. E aqui está ele. Obrigada, outdoor.

É justamente com atenção ao não dito, que o dito se apresenta e se desdobra a nossa frente, sem demoras. Um outdoor inofensivo e sujo, estático na forma, mas não no conteúdo. Parado estava sobre uma parede. No entanto, o conteúdo dele, criado por alguém que possivelmente não se formou por meio de supletivo, não era estático, pelo contrário, dinâmico e vivo.

Dependendo da intenção que há por trás do convite, porque sempre há, e se eu o aceitar, a queda será somente uma questão de tempo. Um convite feito assim, sem pretensões, soa sincero e singelo, nos favorecendo à miséria camuflada de vitória. E como não percebemos a nossa miséria trajada de vitória, não parecerá ofensa. E se ofendidos não estamos, se miseráveis não formos, se camuflados não percebemos, o sino continuará a nos chamar para a missa porque nada terá de novo. E, assim sendo, será o bastante, suponho.

Supletivos existem para cobrir chagas criadas por aqueles que se servem delas, ganham com elas. Nada existe que não beneficie alguém. Eles refletem uma ausência e uma arbitrariedade. Quem faz o supletivo hoje é porque não pôde estar ontem. E como este alguém não pôde estar ontem, o supletivo surge, cheio de acúmulos. Para escondê-los, aquele que cria a chamada do outdoor grita “aqui, supletivo acelerado”. E acelerado, como enxergar os acúmulos?

Acumular significa amontoar, reunir ou, num sentido mais esperançoso, “juntar terra em volta das raízes das plantas”, como nos traz o dicionário. Mas, não desejando ser pessimista, creio que o acúmulo que trago aqui carrega mais o sentido daquilo que excede e mata, do que daquilo que é juntado para nutrir a raiz de uma planta. Portanto, o nosso supletivo segue carregado de acúmulos amontoados por fazeres excedidos. Acumulados, como enxergar o que vai lá, embaixo? Como saber a entrelinha se tampouco as linhas compreendemos?

Compreender os acúmulos é imprescindível se quisermos compreender o que nos ameaça. Um grito de “supletivo acelerado” é uma ameaça, uma agressão. Como fazer um supletivo de forma acelerada se, justamente, fazer supletivo indica atraso de uma estrada que deveria ter sido percorrida? Por que correr? Para quê? “Quem ganha com esta correria?”, perguntaria o Padre Faria, de “O Conde de Monte Cristo”, obra do escritor francês Alexandre Dumas. É preciso descer as escadas para conhecer a razão pela qual compramos a necessidade de correr, nos vendida por vendedores habilidosos. Desçamos, então. Vou à frente, leitor, afinal, dei a ideia. Mas aonde estão os corrimões para que, no mínimo, possamos apoiar as nossas mãos, na hora do cansaço?

Sem corrimões, a descida é mais rápida. Sem eles para nos apoiar e nos favorecer à parada para questionar o que se vê, aceitamos os convites, obedientemente. Não sentimos a necessidade da busca das razões desta obediência, porque a nossa obediência não é percebida, é, apenas, consentida, o que é bem diferente. Uma obediência exata e de medidas alinhadas.

Quando há obediência com medidas certas, há lugar para buscar razões? Há espaço para a dúvida? Neste lugar de obediência eficiente, a própria razão se desajusta, não se conhece mais.

Triste perceber o quanto vão cheios os supletivos acelerados. O quanto servimos a esta submissão. E de tão submissos, achamos que ganhamos. Como é triste! Apressamos para perder. Aumenta-se o preço na prateleira sem que saibamos. Depois nos dão o desconto, agora querem que saibamos. Ficamos felizes. Agradecidos, servimos sem saber, até porque agora não querem que saibamos. Por isso o outdoor, a correria, o acelerado, a retirada dos corrimões que nos ajudam a parar para, no mínimo, descansar. Sem eles, não descansamos. Sem descanso, não paramos. Não paramos: um passo para não encontrar, não enxergar, não ler. Se não lemos, não podemos interpretar. Sem interpretação, sem compreensão, seremos iscas fáceis para uma matrícula apressada.

Não se pode negar a necessidade da pressa, da urgência, da rapidez quando se fizeram demandadas. Mas é preciso confessar este hábito que nos conforma a tudo ter de resumir em um parágrafo, no discurso curto. É preciso assumir a hostilidade de mantermos um olhar ausente sobre aquilo cuja urgência de discutir exige. Supletivo acelerado? Não estamos exagerando neste desespero de chegarmos a um lugar sequer traçado, no mapa? Como acelerar o supletivo se nem começamos a estudar? Por qual motivo insistimos no nosso funeral? Como avançar se insistimos em regredir? Que grande crença temos no declínio.

O supletivo é a vítima deste texto, não o vilão. Quem são os vilões? Todos nós, exceto o supletivo. Vilão não é, somente, o que cria o texto para o outdoor. Ou somente aquele que paga para alguém criar o texto. Vilão é, também, aquele que consente de forma indulgente a mendicância que é criada com a anuência de todos, sem exceções. Um mais, outros menos. Mas todos. De forma direta, indireta, contribuímos para o que vivemos. Nossa sociedade, e tudo o que nela há, é reflexo, não origem. A nossa conivência com o caminho esgarçado vem de longa data.

O que nos atrai tanto na pressa, no acelerado? Talvez certa repugnância pela necessidade de construir. A paisagem da caminhada não nos interessa, mas sim o fixo da chegada. Encostamos. Passamos rapidamente para dar tempo de passar pelas outras coisas rapidamente. O rápido é o nosso lugar-comum. Queremos. Assinamos. Aceitamos. Agrada-nos o outdoor com o convite de “aqui, supletivo acelerado”. Entretanto, agredimos aquele que, um dia, nos convidou a conhecer o que havia fora da caverna. O mito da caverna de Platão encontra verdade e soa feliz, em nós.

O rápido nos acena, simpático. O devagar quer diálogo. Escolhemos o aceno simpático. Dialogar é ultrapassado.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de José Saramago, que diz:

“Também é bom fazer perguntas quando se sabe que não irão ter respostas. Porque depois delas se podem acrescentar outras, tão ociosas como as primeiras, tão impertinentes, tão capazes de consolação no retorno do silêncio que as vai receber.”

Que mais perguntas sejam feitas, mesmo que respostas não nos forem dadas. Formular uma pergunta nos ajuda a acertar as nossas posições nas cadeiras, a buscar outros lugares, a nos incomodar com os fiapos rotos que ameaçam a nossa roupa, a aceitar o supletivo porque ainda é o que se pode fazer, porém fazê-lo com tempo para exercê-lo, apesar de ele ser uma estrada que nos deram por esmola. Perguntar exige que todos trabalhem, mesmo que apenas silêncios nos tenham sido devolvidos, como nos traz Saramago.

Fazer pergunta incomoda. E o incômodo traz vida, remexidos, trabalho, ação. Fazer pergunta aguça o olhar para estranhar “aqui, supletivo acelerado”. Perguntar obriga o outro a buscar. Perguntar é ato de recusa ao pronto, ao fast, à esteira da commodity. Perguntar é revolucionário.

Se ainda obrigatório for que a gente ouça o silêncio doado como migalha, pelos criadores do outdoor, que esse silêncio seja ouvido tão alto, tão alto, que o autor dele saiba que o ouvimos, e bem. Não há inocentes. Também construímos migalhas e damos aos outros como restos. Ou não? Um deserto vivido por todos nós, de conveniências, de convivências, de achados e de perdidos. Sem muita água. Porque ela vai escassa.

domingo, 19 de setembro de 2021

Centavos válidos

Para este texto, parto de uma fala popular que diz: “não custa nada”.

Aquele que não tem compromisso com a cura, favorece a doença. Quem está às voltas com o recorte, é aguardado pelo banal. Quem se submete sem questionar, faz maus acordos.

Dizemos “não custa nada” para alguém. E alguém diz “não custa nada” para nós. Usamos o tempo como sinônimo de custo, e de custo baixo, nesta expressão. Por assim ser, o custar baixo ou o custar nada não nos oferece empecilhos. Portanto, o outro pode dispor do nosso tempo à vontade, e podemos dispor do tempo dos outros à vontade, também. Afinal, “não custa nada”. Por que, então, não fazer o que o outro pede, ou o que eu peço?

A relevância da vida está na forma como construo laços, como faço uso das ferramentas que estão ao alcance de minhas mãos, como avanço com os retrocessos fazendo ecos, em mim. Dizer “não custa nada” ou ouvir “não custa nada” reforça que o caminho ainda é muito longo para nós. Estamos distantes da compreensão do justo e do sentido porque somos insuficientes na disposição do pensar. Não queremos pensar. Não queremos manusear a construção. Imobilismo e precariedade ainda são fortes lugares para estacionarmos.

Não se trata de rigidez diante à vida. Estar em paz com ela é recomendado. Mas de refletir sobre falas prontas que esvaziam o nosso depósito ainda numa construção interminável. Tempo é legítimo, e com existência real. Se você discorda, vá diante um espelho e contemple-se. Você perceberá o tempo impresso na sua face. E se ainda assim você não se convencer, busque um calendário, e reflita sobre o tempo. Ele, portanto, custa. E caro.

Há diversas faces para a reflexão deste tema. Escolho considerar a direção que queremos dar para o caráter de autoria que o tempo tem. Ele constrói. Ele é um autor. Portanto, o que o tempo tem construído, em nós? A não aceitação da vulgarização do tempo do outro ou do nosso dará o tom do nosso viver.

O tempo custa. Tudo custa. O não custar nada talvez valha para aqueles cujos bolsos vão cheios, mas que nada fizeram para tal. Bolsos cheios de um ouro imitável, de um trabalho explorado, de um roubo esquecido, de uma ferrugem que nasce, mas que ninguém vê. Bolsos cheios de um esforço não feito, de um tapete arrancado, de um palco invadido para receber aplausos não merecidos.

Para aqueles cujos bolsos vão na medida ou cheios de uma permanência merecida e trabalhada, o tempo custa e sabe-se o esforço feito para pagá-lo, para investi-lo. Não há desperdícios, desmandos e deslizes. Aquele que sabe o quanto custa, todos os centavos são válidos e valiosos.

“Não custa nada”, disse alguém. Aceitar falas vazias e cansadas como esta é o mesmo que permitir marcações da insuficiência, em mim. É um passar pela vida do fundo de uma pobre arquibancada. Não duvidar do custo do nosso tempo ou do tempo do outro é caminhar ao encontro do nada, do vazio. É insistir em posturas dolorosas e atravessadas pela insensatez.

Não somos sujeitos que podemos tudo. Como assim é, por que dispomos do tempo do outro? Por que permitimos que o outro disponha do nosso? São questões miúdas, até banais, mas que sinalizam uma rejeição acerca do pensar sobre as nossas produções itinerantes que inviabilizam o ir além. Colocar-se, na vida, é crucial.

Rejeitamos um pensar que poderia nos levar além talvez por falta de intimidade para conosco. Quando somos íntimos, sabemos o que se passa. Quando a intimidade é escassa, até pedir licença é constrangedor. Há um abandono evidente da nossa capacidade de pensar, da nossa capacidade de construir um consenso. Resultados do nosso abandono costumam ficar à espreita, aguardando a obra da nossa alienação. É no esquecimento de nós e do que nos cabe fazer e pensar que brechas sinceras vão se acomodando enquanto se formam e se abrem.

Custa. Tudo custa. É preciso, pois, conhecer o nosso bolso para assumir dívidas. Conhecendo o que vai em nosso bolso, saberemos ter a delicadeza de recusar pessoas e demandas que fazem, ou querem fazer, do nosso tempo uma reserva da ociosidade delas. E o contrário como verdadeiro, também. É sempre útil ser gentil com aqueles que nos ocupam aleatoriamente. Talvez nós sejamos a única escola, para eles, parafraseando Francisco de Assis.

Usar o tempo dos outros indistintamente ou permitir que assim seja feito com o nosso é uma das características do nosso tempo. Perdemos algumas dimensões importantes de indicativos de limite, ética, integridade, respeito, espaço, intimidade. Não que antes houvesse tido tempos perfeitos. Mas arrisco dizer que este formato no qual vivemos e construímos, hoje, conectados com tudo e todos, criou uma falsa ideia de que podemos usar o tempo do outro de acordo com as nossas necessidades e conveniências, e vice-versa, assim como criou uma relação de excessos entre nós (o outro sempre está a minha disposição, e nós estamos sempre à disposição do outro). Relações doentes cujos frutos nascem deformados. Ao mesmo tempo que este formato nos permitiu alcançar o outro, nos permitiu reduzir este outro a nossa agenda. Tempos esquisitos, estes. Falhamos na forma, no conteúdo. Quem sabe seja este o motivo que explique o fechamento de livrarias e o esvaziamento das bibliotecas.

Não use o tempo dos outros de acordo com a sua necessidade e conveniência. Se, mesmo assim, você precisar usar o tempo do outro, lembre-se de deixar obras sólidas por lá. Respeite. O mesmo vale para aquele que tem planos de usar o nosso tempo. Não sejamos negociadores do tempo.

Sem saudosismos, mas que nossos passados sejam resgatados não como lugares vivos para se viver, mas como baús precisos de memória, referências vivas que provam a veracidade dos nossos tamanhos, e assim os mesmos erros não serem cometidos. Já usamos o tempo do outro de forma irresponsável, e não deu certo, lembra? Por que continuarmos numa estrada cujos retornos não existem?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Francis Bacon, Filósofo inglês, século XVI, que diz:

“Escolher o seu tempo é ganhar tempo”.

Construa o possível por meio do seu tempo. O caráter autoral dele precisa ser respeitado e atendido. “Escolher o seu tempo é ganhá-lo”.

Que a gente faça do nosso tempo um autor, e não um depósito de lixos alheios e alienantes. Que a gente perceba que o tempo do outro não é descarte de demolição. Urgente caminhar para alcançar as perguntas que o tempo nos tem feito, e construir as respostas que a vida nos cobrar. Para isso, é preciso ter tempo. Um tempo caro, que custa. Um tempo precioso.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Espaço esgarçado

Para este texto, parto de uma fala de José Saramago, no livro A viagem do elefante, que diz:

“Houve aplausos do povo reunido, mas escassos e de pouca convicção.”

Ações passadas continuam a nos assombrar, a nos cobrar, e a nos fazer companhia numa tarde atarefada de afazeres. Fúteis, gentis, urgentes, úteis, habituais, combinado, ajustado, contratado. A quem aplaudimos reunidos? Por que aplaudimos? Perguntas abertas pelas próprias respostas.

Quando as respostas convencionais não cabem mais nas convenções, novas perguntas precisam ser feitas. E o convite da poeira das estradas nos é apresentado. Se vamos, eu não sei. No entanto, se não formos por esta estrada, temos outra?

Um povo reunido que aplaude, mas que, ao mesmo tempo, oferece um aplauso escasso e de pouca convicção. Há, no povo reunido, então, aqueles que não aplaudem? Por isso, o “escasso”, de Saramago? Há, no povo reunido, aquele que aplaude, mas por menos tempo? Aquele que aplaude, mas que a vergonha já o reconhece e ele aplaude disfarçado? Quem ainda dorme, e aplaude sem perceber? Quem acordou e pergunta as horas?

Estamos neste povo reunido? Sim e não. Sim ou não. A dualidade nos monta, nos mostra e nos escancara de nós mesmos, exatamente, por não termos a mínima intimidade com quem somos. Entender talvez não seja a questão, aqui, mas aprendermos a ouvir o som que vem. Quem somos nós, neste povo reunido?

Viver não é um exercício preciso. Desconfio, portanto, de que será difícil nos encontrar e nos identificar neste povo reunido. Mesmo se, de relance, nos acharmos, tantas faces nos esconderão, nos tamparão a visão! Nossas mãos sangram e doem. Aplaudir cansa. Aplausos convictos fazem doer menos as nossas mãos do que os aplausos por conveniência, mas a dor é inerente a todo aquele cuja decisão é um argumento do diálogo. Reconhecer as nossas mãos requer um esforço ininterrupto no meio de tamanho barulho. No meio de tamanha hipocrisia, construída à base de verdades, também construídas do mesmo material. A quem aplaudimos?

Um caminhar reforça o trajeto escolhido. Um dizer perpetua convicções. Um silenciar diz posições assumidas. O caminho escolhido rejeita os pés distintos. O dito consentido acusa aqueles aplausos imerecidos. O silêncio esconde o espaço esgarçado.

Sempre contamos duas histórias porque não suportamos a transparência que insiste em existir, em nós. Somos todos parte do esgarçado, do roto, do gasto, do muito usado. Do aplauso excedido sem medida, do passado a ferro tantas e várias vezes, que o tecido vai fino, fino. Mas, também, somos todos costureiros de nós. A caixinha de costura está ali, só há um pouquinho de pó sobre ela. Nada que um espanador não resolva. A menos que a gente não tenha um espanador em casa. Aí complica um pouco.

Esgarçado porque esticamos demais. Insistimos na riqueza pobre, no calçado fino que quebra a estrutura, no escolher um item do cardápio para o qual não se tem o bolso para pagar. Somos os “espectadores de menos posse”, referido por Saramago, amontoados todos no galinheiro. Esgarçamos o tecido feito por um emaranhado dos nossos fios, que vão tristes perdendo suas partes. Nosso espaço vai esgarçado porque não dedicamos tempo de navegação e nem de investigação no nosso mar. O esgarçamento se dá em consonância com o estar-se à deriva. Faz sentido? As nossas incoerências e os nossos jardins inabitados não nos são apontados. Vamos avançando como invasores de uma casa com portões.

Por que pedirmos se podemos invadir? Vamos cheios de simulações, de contas pagas, de filtros, de remakes, de conteúdos prontos que vendem. A nossa complexidade é anulada diante circunstâncias compradas e, previamente, discutidas. A nossa organização e a nossa subserviência aos aplausos em excesso nos garantem um lugar. A alienação como opção e escolha. Mas há esperança: há indícios do escasseamento dos aplausos. Quem acorda? Quem é aquele não convicto que escasseia aplausos?

Vejo, agora, o fio e o espaço esgarçados. E de tão esgarçado, arrebentará. Mas antes disso, será possível enxergar certa claridade. Uma claridade que vem do esgotamento do tecido, tão fino ele vai. O nosso grande Sertão esgarçado: as nossas veredas clareando, mostrando a necessidade do caminho. Obrigada, Guimarães Rosa.

O fio que nos conduz. O fio que nos forma. Que nos rearranja, que nos tece. Somos um tecido pela vida. E como todo tecido que corre o risco de desfiar porque machuca, arranha, deteriora ou porque, nós próprios, tiramos o nosso fio. Aprender a fiar é uma exigência da vida. Aplaudimos tanto que esgarçamos, o fio desfiou e gastou. Precisamos recompô-lo, fiar. Não há o momento certo para isso. As contradições e o imponderável da vida não nos permitem tamanha arrogância. Nossos atos tem parentescos. Somos todos fazendo. Mas há uma forma de driblarmos e de acharmos este momento certo: no próprio viver diluído na nossa vida. Pode ser que, desta forma, a gente aprenda a participar de todos os espaços que há, em nós.

Engraçado como é a vida. O dicionário nos traz dois sentidos para o fiar, esta exigência da vida: o fiar como manusear o nosso fio, recompô-lo, tirá-lo, fazê-lo, assim como o fiar de confiar, dar o crédito a algo ou a alguém. Ou seja, para repensar o esgarçado que vai em mim, e em você, devido a tantos aplausos escassos, sem convicção e por conveniência, será preciso confiar, dar crédito. Um crédito para nós mesmos, uma espécie de moeda que a vida nos dá para o nosso caminhar de volta. Um caminhar de volta por termos esgarçado o tecido novo de tanto usá-lo no meio do povo reunido, como um deles.

Foi preciso perdemos o nosso fio, sangrarmos as nossas mãos aplaudindo, esgarçarmos o nosso espaço que não tinha a eira, que dirá a beira, para que a necessidade de recompô-lo e de reencontrá-lo fosse sentida. Vendados. Vendidos. À venda. Fechados para balanço. Amanhã reabriremos. Há esperança.

Enquanto acordamos, talvez haja uma significativa diminuição dos aplausos, por isso eles escasseiam e apresentam baixa convicção. No entanto, na medida que a gente avança para sairmos do nosso mecânico, as nossas apostas na violência vão perdendo força, e vamos conseguindo encontrar o aplauso que vale aplausos, sem economias nas nossas mãos que passarão a não doer mais. Sentirão, sim, o frescor do ardor da vibração da vida.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento do poeta Mario Quintana, que diz:

“Sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas.”

Que a gente não perca o sentido do aplauso, que é a contemplação da criação, o reconhecimento do quadro da vida, por causa dos excessos dos mesmos aplausos aplaudidos, esgarçados e sem valor. Que o excesso de gente, como nos traz Mario Quintana, não nos acuse de sermos um dos falseadores do povo reunido. Quando temos muito, nada temos porque o muito esconde. Que o excesso não nos force a escassez, lição árdua para aqueles que brincam de viver. Toda escassez traz certa apatia diante a vida. Todo excesso também. E apáticos, excedidos, não enxergaremos os motivos para aplausos verdadeiros e reais, agora, convictos.

Aplausos!

terça-feira, 1 de junho de 2021

Terreno Movediço

Para este texto, parto de uma fala popular que diz: “não veja aonde você caiu, mas sim aonde você escorregou.”

Viver é um contínuo exercício. E fazer exercício é algo cansativo, demorado, requer tempo e disposição e, muitas vezes, não é prazeroso. Posto isto, o que fazer? Simples. Continuar a fazer. Exercitar-se é uma necessidade, uma imposição. Sem o exercitar-se, nossas reformas inerentes e prementes ficarão acumuladas. E quem quer viver sob acúmulos e sob tapetes?

Saber aonde escorregamos é um destes árduos exercícios a serem feitos. Dá muito trabalho prestar atenção a estes pequenos tropeços. É cansativo debruçar-se sobre as pequenas cascas de bananas que surgem no nosso caminho, ora colocadas, ora surgidas, ora, delicadamente, colocadas por nós. Banalizamos o escorregão porque a primeira coisa que o caracteriza é a ausência de importância. Escorregões são como anúncios soltos numa tela de computador: minimizamos ou fechamos a janela.

Escorregões não possuem uma fisionomia nítida. São eventos pequenos na nossa dinâmica agenda. São trechos soltos de um texto sem sentido. São falas soltas de um louco sozinho. Estilhaços de vidros quebrados em uma casa inabitada, há anos. São aqueles velhos sentados à mesa, cujas histórias de vida ninguém tem interesse. São berros ditos na feira, quem os ouve? São como retalhos de uma colcha cheirando a mofo. Partes de uma foto cujos personagens quem são? São parte do nosso todo. Mas só o todo, me parece, que tem um tempo de TV.

Mesmo que os escorregões sejam percebidos, eles serão uns pobres coitados deixados, por nós, à deriva de nós mesmos, porque outras demandas nos chamam, porque a nossa atenção é limitada, e será preciso priorizar o que resolveremos. Por qual motivo, então, o exercício de compreendê-lo, de ouvi-lo e o de anotar as reivindicações que ele nos traz? Por que investirmos o nosso tempo na compreensão da natureza do escorregão? Pra quê visitarmos o local aonde escorregamos e conhecermos, melhor, as características daquele lugar como a vegetação, piso, luminosidade, construção e arquitetura?

O tempo. “O tempo voa”, alguns dizem. Por isso, os escorregões esperam. Não há tempo para eles. O tempo voa ou somos nós, de forma arbitrária, os construtores das asas, no tempo? Desconfio de que o tempo tem o justo tempo de todo o tempo. Mas como nos fazer entender o básico, se ainda discutimos as nossas misérias, os nossos privilégios e as nossas promessas desprezíveis? Os escorregões, portanto, migalhas no nosso caminho, mesmo de posse de senhas, não são atendidos. “Desculpe-me, o senhor pode voltar amanhã?”

Triste realidade. Triste construção. Triste fruto. Ignoramos aquilo que não poderíamos. Quando ouvimos as migalhas, a probabilidade de compreensão do todo se amplia. Quando ouvimos a criança, a chance de termos adultos menos adulterados aumenta. Quando paramos e nos agachamos para recolher a casca de banana que nos fez escorregar, a feira passa a ter outro significado para nós. O pequeno que nos fez escorregar nos pede três minutos de diálogo. Como desprezamos os minutos solicitados, cederemos horas, mais tarde. E sem escolhas.

Educados, fomos, para darmos atenção aos grandes eventos, aos grandes acontecimentos. Aos elefantes lentos do caminho. Educados, não fomos, para silenciarmos diante de uma carreata de formigas, e estudarmos o trajeto e construção. O silêncio incomoda porque questiona. A fala ocupa espaços ociosos e nos exime de perguntas.

Escorregões são silenciosos. Quedas são barulhentas. Escorregamos, levantamos, disfarçamos e fingimos que o céu continua a nosso favor. O parar não nos pertence. Caímos, não levantamos. E se levantamos, todos percebem, não há como disfarçar uma queda. O céu testemunhará a nossa queda. O parar será obrigatório. Acumulamos tantos cansaços, que deixamos, há tempos, de observar o nosso terreno movediço, pouco firme, instável. E como não o percebemos, ele mesmo tratará de nos transportar do escorregão para a queda. Triste realidade. Triste construção. Triste fruto.

As cascas de banana que nos fazem escorregar não são irrelevantes. Mas as tratamos como tais. Elas significam o diagnóstico de algo aprofundado que, se humilde fôssemos, ouviríamos. Tratamos as cascas como frutos de uma distração boba de domingo à tarde, mas são a brecha por onde se anuncia a nossa obra ainda não iniciada, mas já atrasada.

Nossas escolhas nos têm feito perder de vista a clareza da obrigatoriedade de darmos a seta para mudarmos de faixa, na estrada. Elementos nos ocupam indevidamente. Nossas agendas lotadas, por nós, pelo outro, pelo presente e pelo ausente, não permitem lacunas para estudarmos os nossos escorregões. As quedas, portanto, serão inevitáveis. Não se trata de determinismo, mas de observarmos os movimentos naturais da vida. Achamos que podemos com a vida. É uma luta indigna. Sempre perderemos.

Enquanto isso, enquanto a briga acontece lá dentro e aqui fora, vamos nos perdendo em gestos escassos e perdidos que se mecanizam sob a nossa autorização insistente. Os incômodos que deveriam nascer desta insistência, desta autorização insistente, não apareceram. Portanto, vamos nos ajeitando no chão, porque a estada será longa, com requisitos bem claros de continuidade, de abismos e de sucessivas quedas e de desmoronamentos. Tem sido nossa escolha e prática, ou não? De uma coisa podemos estar certos: a de que a nossa construção tem identidade.

Nossas sucessivas quedas e desmoronamentos são resultado do esvaziamento dos sentidos. Sentidos ocos: eis a crônica da vida inexata. Queremos andar firmes, sem quedas, sem escorregões, escondendo as nossas manchetes descascadas, mas não queremos exercitar as pernas, as flexões são terríveis. Há todo um discurso e uma narrativa para o não fazer.

Não há experiência sem escorregão. Não há vivência sem queda. Somente os adeptos da autoajuda acreditam na pureza e na linearidade dos caminhos, que não existem. Mas há discursos prontos, cujo rompimento com eles é imprescindível. Acreditar nisso, inclusive, ajuda a tapar as nossas vistas para os escorregões, e a termos sérias dificuldades para dobrarmos as nossas esquinas e a enxergarmos o solo sobre o qual pisamos. É preciso, portanto, atenção e ação aos temas que exigem a nossa proximidade. A responsabilidade é nossa.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com dois pensamentos de LUDWIG MIES VAN DER ROHE, renomado arquiteto alemão do século XIX, que diz:

“Deus está nos detalhes” e

“A arquitetura começa quando você junta dois tijolos com cuidado. Aí ela começa”.

Nos dois lindos pensamentos, há a presença daquilo que é pequeno, daquilo que te prepara para a vida. “Deus está nos detalhes” como sinônimo de prestar e dedicar atenção ao mínimo, ao pequeno, à voz baixa, ao sinal breve, ao que te revelará o relevante. E em “a arquitetura começa quando você junta dois tijolos com cuidado” porque dois tijolos, assim como um escorregão, não fazem a construção toda, mas são o que te prepara, o que te chama, o que anuncia, o que diagnostica. Se juntarmos dois tijolos com cuidado, a chance de a obra sair bem feita será grande. A obra é resultado da disposição dos tijolos. Somos obras dos diálogos propostos pelos escorregões. As conquistas, de quaisquer naturezas, apenas nascem em solos trabalhados, áridos, duros, ásperos, não tenhamos ilusões de maciez na construção.

Tijolos são o início, o detalhe cujo espaço está Deus, o diálogo de três minutos, a ponte, um traço firme no papel roto e gasto. Tijolos somem após a pintura, mas não podemos ignorá-los. Escorregões são facilmente disfarçados por nós, mas eles existem porque antecederam as nossas quedas inevitáveis. Também não podemos ignorá-los.

Esta é a crônica da vida. Da nossa vida. Da minha e da sua.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Camisas desbotadas

Para este texto, parto de uma fala popular que diz: “vista a camisa”.

Sobre qual camisa falamos?

Falas nascem da construção de um viver, seja esse viver solitário ou em comunidade. Elas refletem uma história, uma cultura nascida e criada com a anuência de muitos ou de pouco mais de meia dúzia, não importa. O que importa é que estas falam nascem. E se nascem, é porque há solo fértil para tal.

Vestir a camisa, no sentido figurado desta expressão, significa estar presente no território alheio, ser parceiro, assumir problemas, comprar e resolver conflitos, lutar por uma causa, não medir esforços para ajudar, dizer o que precisa ser dito etc. Qual o problema, então? Nenhum, desde que a camisa seja a minha, e não a sua. A nossa, e não a do outro. Quando visto a camisa do outro, raramente, ela me servirá sem que haja a necessidade de ajustes, arremates, troca de botões, encurtamento das mangas, reparo na gola, remendo na barra.

Não se trata de cuidar somente do meu quintal em detrimento do seu, mas de entender que o meu quintal, se não tiver cuidados e atenção, não poderá fazer efetivas contribuições com o seu quintal. Não se trata de um egoísmo de prevalência do meu, mas de abandonar a hipocrisia e o desserviço que constroem uma robusta ausência de mim para preencher o outro. Não se trata de não juntar forças em prol de uma casa coletiva, mas de me enxergar único dentro do todo no qual faço parte. Não se trata de não fazer o melhor que eu puder em prol do conjunto, mas de abrir mão desta inatualidade de me colocar à margem. Não se trata de ter excesso de generosidade em relação a mim, em prejuízo ao outro, mas de me enxergar com uma fisionomia nítida de uma pessoa que participa.

É imperativo juntar forças, fazer, realizar e contribuir. É genuíno construir parcerias. É imprescindível saber que se pode contar com o outro. Contudo, vestido com a minha camisa. E você, com a sua camisa. Se estou vestido com a sua camisa, a doação poderá até ocorrer, mas será manca, incompleta, perecível, insustentável. Se você está vestido com a minha camisa, assim será até quando? Talvez até a inauguração de nova loja, na rua, cujas promoções começaram ontem.

Como vestir algo cujo corte não foi criação minha? Como vestir algo cuja autoria não possui o meu nome? Vestir a sua camisa significa tirar a minha. Ou ficarei vestida com duas camisas sobrepostas? Os provadores ficarão cheios de nós, que, a essa altura, estarão entulhados e encalorados com excessos de camisas.

É preciso cuidar para que falas populares não se tornem vazias de significação. Vestir a camisa tornou-se uma fala pronta, cuja reflexão se perdeu, se é que um dia ela aconteceu. Falas populares reforçam lugares-comuns que ocupam espaços que deveriam ser preenchidos por ocupantes mais dignos e nobres.

Vestir a camisa que não nos pertence cria uma ausência de um habitar e de uma adaptação, em nós. E sem estarmos adaptados e habitados, em nós, nos perdemos de vista em função das inutilidades que nos ocupam. Vestir a camisa é uma forma de mecanizar a vida, torná-la servil, sem coragem para questionamentos. De tanto vestirmos a camisa alheia, não reconheceremos mais o nosso alfaiate, nem tampouco a nossa costureira, sabedores bem de nossas medidas, gostos e falhas da nossa natureza corporal. “Preciso subir mais um dedo”, me disse, certa vez, a costureira, fazendo a barra da minha calça, “você é baixinha, e a barra está arrastando no chão.” Vestida, se eu estivesse com a camisa alheia, como reconhecer as mangas longas e desformes, em mim? Falhas da educação que recebemos evidenciam, e que perpetuamos, estes hiatos. Fomos educados para a aparência do externo, para nos ocuparmos do que vai lá, e não do que está aqui.

Vestir a camisa alheia cria impasses: como volto para mim? Como reencontro aquilo que excluí, em mim? Minhas bagagens perdidas num aeroporto lotado de desconhecidos iludidos, vestidos com suas camisas desbotadas. A cor da minha camisa é única. A minha camisa é intransferível. E é, justamente, por estas duas principais características (cor única e identidade intransferível) que conseguirei reencontrar a disposição para ajudar, contribuir, juntar forças etc. Cada qual com o seu guarda-roupas. O meu. O seu. Todos presentes. Mas eu daqui. Você daí. Vestir a camisa alheia cria muitos sofrimentos: não me reconheço mais porque minhas medidas se perderam.

Estamos perdidos, há tempos, em discussões inúteis, exatamente, por acreditarmos em desserviços como vestir a camisa do outro, da empresa, de uma causa etc. Por isso, não avançamos. Como posso avançar descalço? Como posso querer vestir peças que não me pertencem? Como posso viver alheia a mim? Como posso alienar o meu corpo para que outra peça me caiba? Nossa grande demanda é a emocional. Somos andarilhos batendo em portas alheias que não nos ouvem. Mas por que não consertamos a nossa porta e adentramos? Nossa casa é o que há, em nós. Lá, não há fachadas, serventias inúteis e convencionais. Há, há tempos, roupas mofadas a espera de uso e de limpeza.

Não somos renováveis. Portanto, que as nossas camisas sejam utilizadas. Precisamos continuar a nós próprios. Sofremos uma carência de continuidade. Não é preciso tantas transformações, mas continuidade, em nós. Por que paramos para servir? Por que interrompemos os questionamentos? Por que os espelhos estão cobertos? Por que as margens nos confortam? Por que a camisa do outro cabe, forçosamente, em mim? Por que meus cabides vão vestidos de esquecimentos?

Vestir a camisa foi a proposta de reflexão deste texto. Toda e qualquer divergência de opinião em relação a minha, antecipo meu respeito. Mas penso ser urgente romper com o pronto. Há ambientes corporativos cuja pregação “vestir a camisa” é quase um mantra. E o resultado quase sempre tem sido a doença, a desagregação, a anulação da identidade, a dor, o constrangimento, o cinismo, a hostilidade. Não há nada mais desestabilizador que convidar o outro a não ser ele, só que de forma discreta e disfarçada.

Nossa cura se dá na relação com o que é meu versus o que é do outro. Não vejo forma de cura sem a consideração do meu espaço, das minhas dores, das minhas feridas, das minhas ânsias, das minhas carências, dos meus progressos, dos meus avanços, das minhas fendas. Não vejo forma de cura sem aceitarmos que, ainda na nossa forma de ser, o pronome possessivo meu/minha é parte integrante. Se insistirmos no despropósito da anulação do meu por meio da vestimenta da camisa do outro, continuaremos monstros, caminhando vagos, pelas estradas erradas que construímos.

Caminhando para uma conclusão desta reflexão, penso que respeitar a camisa do outro e mais, permitir que ele a utilize é um convite para ele dizer do que ele é feito. E vice-versa. Somos tecidos sendo construídos, diariamente. Qual é o risco da falta de investimento no autoconhecimento? Na autoempatia?  Vulnerabilidade. E como temos andado?

É preciso compreender a dor que nos domina. E para compreendê-la, apenas por meio da experiência que, a propósito, significa vestir a minha camisa. Se eu não compreender a dor que me domina, continuarei a ser dor para o outro.

Vestir a camisa é, além de uma falácia, um senso comum, uma fala pronta, uma teoria vazia que aumenta as nossas dificuldades. Nossas angústias existem, nossas dores são reais. Nossa alegria acontece. Por isso, a realidade precisa abrigá-las. Para tal, todos nós precisamos estar vestidos a caráter.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Guimarães Rosa que diz:

“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só fazer outras maiores perguntas”.

Que a gente guarde a metáfora de vestir a camisa, mas jamais a literalidade dela, porque isto seria abrir mão da dúvida, do questionamento, do aprender e do se reencontrar. Como nos ensina Guimarães Rosa, com o que mais aprendemos, certamente, é com as nossas maiores perguntas. E perguntar-se “por que visto a camisa alheia” é uma pergunta maior.

“Vestir a camisa” foi um dos piores conselhos que recebi, na vida. Mas pude desconfiar dele em tempo de não o seguir. Tive a sorte de conviver com pessoas que me obrigaram a “fazer perguntas”. Não a ter vestido custou uma demissão para o meu currículo, e está tudo certo.

Vista a sua camisa, faça a pergunta maior e as maiores perguntas. Contribua para e com, mas com a sua camisa. Ela te serve, fica perfeita em você. Esteja certo de que vesti-la terá sido a resposta da vida para a sua maior pergunta. Visto a minha camisa. Você veste a sua. A construção para o avançar nasce deste caminho que transitamos, sob diferentes rotas.

sábado, 6 de março de 2021

Agendas mancas

Para este texto, parto de uma fala popular que diz: “é o que tem pra hoje”.

O que tem pra hoje?

Várias podem ser as leituras acerca desta frase, deste pensamento popular. Mas o sentido que busco desta frase, por meio de uma reflexão que quero produzir aqui, é o de passagem obrigatória pelo presente para conquistarmos e construirmos os degraus para o futuro.

Somos andarilhos. Andamos tortos, ora à margem, ora sobre a via. O choro e o riso consomem a mesma energia que gastamos para os disfarces. Choramos. Rimos. Fingimos. Achamos. Fazemos de conta. Acreditamos. Desconfiamos. Respondemos. Desconfiamos de novo. Mudamos o canal. Identificamos como amigo com uma facilidade assustadora. Rompemos. Anotamos. Validamos. Atendemos. Dizemos. Esquecemos. Resgatamos. Preenchemos vazios. Criamos. Cansamos. Dormimos. Acordamos. O verbo nos representa. Não me refiro ao Verbo explicado no primeiro capítulo do Evangelho segundo João, o apóstolo do Cristo, para aqueles que nele creem. Mas, refiro-me ao verbo como única resposta que temos dado à vida: fazer, fazer, fazer, um fazer esvaziado de sentido.

O que tem pra hoje? Por ora, este verbo, esta lotação apertada de coisas feitas que não nos lembramos dos motivos da realização. São tantos os verbos realizados, que temos nos perdido nas conjugações: choramos. Mas choraríamos? Esquecemos. Mas teríamos nos esquecido? Anotamos, mas anotaremos? Dizemos, mas dissemos? Se choraríamos, por que há aqueles que choram choros invisíveis? Se acordamos, por que nossos olhos ainda não enxergam?

Quem está disposto a debruçar sobre este volume de verbos que fazemos, mas que tem deixado de caminhar conosco? Rotas tortas têm sido o nosso norte em nossas agendas mancas. Utilizamos lápis para marcarmos os nossos passos e para sabermos que passamos, aqui. Mas alguém tem utilizado borrachas que fortalecem o vínculo com o esquecimento. Laços firmes, fortemente tratados e contratados.

O que tem pra hoje? Os degraus são feitos pelos nossos pés, estejam eles nus, descalços ou calçados. O futuro é algo inatingível, mas possível nos é pensar sobre ele. Como chegar até ele se o que temos pra hoje não nos serve? Não nos tem servido? Quando falo “o que tem pra hoje” não me refiro à acomodação da mesmice, da inércia, da aceitação do medíocre e do nosso hóspede “fazer o quê?”, mas sim este avançar de que necessitamos e de que precisamos, no entanto, atropelamos e buscamos atalhos doentes que nos reconhecem.

O que tem pra hoje é o mapa que está nas nossas mãos. Aceitar este mapa significa aceitar que estamos perdidos, mas também significa um trajeto, um lugar de rotas, de caminhos e de ondes. Quando temos, que seja, um respingado de humildade para concordarmos que estar perdido não é uma condição vitalícia, mas provisória, o mapa começa a ficar mais amigável, e o que tem pra hoje começa a nos servir.

Somos andarilhos, ainda. Uma inconstância nos acomoda num ar fresco que temos dificuldades de sair. Queremos sair? Somos nômades em busca de estruturas sólidas. Penso que um dos passos que inicia o abandono do estado de andarilho é o reconhecimento do que se tem pra hoje.

Sofremos de um amadorismo quando desprezamos o feito, o construído. Queremos o do próximo sem querermos dar os passos que o próximo deu. Queremos o amanhã sem esperarmos o nascer do Sol. Apressamos a Lua. Ela, irritada, se demora a sair. Brigamos com a Natureza quando apressamos o nascimento. Somos Deuses, uma santidade vã que menospreza o ritmo pequeno, os passos miúdos, o cantar de um pássaro, o calçado sem marca e a blusa da moda passada. O que tem pra hoje pode ser pouco, pequeno e barato, mas é o que tem pra hoje. Imprescindível é aceitarmos que o amanhã virá a partir do que tem pra hoje. Não há rotas de fuga, tampouco atalhos inteligentes, neste caso. Não há. Sabemos. Mas por qual motivo ainda insistimos? Talvez por falta de memória de dores intensas. Aqueles que as possuem, certamente, possuem outra relação com o que tem pra hoje.

Sofremos de uma pressa crônica para chegarmos onde? Insistimos nas perguntas vazias, na ociosidade e na espuma que vende. Aquele que corta a fita não será o mesmo, provavelmente, a resolver o problema que acontecerá depois. Por isso, talvez, a pressa. O que tem pra hoje?

Numa reunião de trabalho, certa vez, o facilitador apresentou todo o trabalho, e nos trouxe as vulnerabilidades e problemas de uma determinada situação que estávamos passando. No momento de as pessoas se pronunciarem, fizeram apenas elogios à apresentação, sem discussão e possível solução alguma para o que se apresentou. O problema que o facilitador trouxe ficou em segundo plano, esquecido frente aos elogios para os slides. Somos andarilhos e agora, também alheios. Isto dificulta, muitíssimo, a aceitação do que se tem pra hoje. A falta de humildade para aceitarmos que somos falíveis, incompletos, mesquinhos, imprecisos nos atrasa. Poderíamos estar mais altos na nossa escada, mas ela possui inúmeros degraus sem pisadas, sem marcas. Nossos pés os desconhecem porque aqueles se esmeram no adormecimento.

O futuro é um lugar preenchido de presentes, de passados e de atualidades. Preciso é, portanto, valorizar o que se tem pra hoje. Não uma valorização vendida pela autoajuda que acredita num mundo mágico sem problemas, sem conflitos e que basta querermos que conseguiremos. Não um discurso barato de ode ao vitimismo, à pobreza e à perseguição do pouco, do fraco. Sabemos que a complexidade da vida não nos permite acreditar em tamanha leviandade. Mas uma valorização de um a partir de, de uma construção, de um gosto pelas etapas, de um esforço insistente porque traz sentido e valor. A obra poderá demorar, mas ela somente terá vida mediante a aceitação do que tem pra hoje.

Que o nosso tempo descontinue conversas inúteis, insossas, grosseiras e arrogantes. Que possamos, cada vez mais, enxergar valor nas pequenas contribuições, nas obras dos anônimos, no cumprimento daquele que vende limão na feira, no bolo quente sem cobertura, no arroz sem frescura, na Faculdade sem renome (um nome somente não bastaria?), no lixeiro e no peixeiro, assim como no empregado e no sorriso daquele Senhor, cuja moradia nobre é a rua. Sem hipocrisias nestas aceitações, porque o mínimo é relevante, o desprovido somente o é de dinheiro. Sem hipocrisias nestas aceitações, porque o que tem pra hoje é condição para avançarmos. Sem esta condição, certamente, vamos precisar reaprender a lavarmos o arroz e a cozinharmos o feijão.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um incômodo pensamento de Guimarães Rosa, escritor brasileiro dos mais importantes, que diz:

“Viver é etecetera...”

No fundo, somos este caminhar, este ir, esta etecetera. Por isso, o que tem pra hoje não pode ser desprezado, nem abreviado. Como avançaremos sem as nossas eteceteras? Sem as nossas sequências? Nossas eteceteras, como nos trouxe Guimarães Rosa, é o dever do nosso cuidar. E todo aquele que cuida cria compromissos. E todo aquele que tem compromisso cria uma relação. Uma relação de amor conosco, com o outro, com aquilo que vai, que foi e que irá em nós e no outro. Nossa maleta vai cheia de eteceteras que, certamente, está conversando com o que tem pra hoje.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Mãos relegadas

Para este texto, parto de um pensamento do poeta russo do século XIX, Vladimir Maiakóvski, que diz:

“A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”.

Uma das memórias que tenho é de minha mãe tricotando por horas. Era comum irmos ao bazar, perto de casa, comprarmos novelos de lãs e, assim, minha mãe tricotar e fazer blusas para todos nós. Um trabalho lento, cansativo e silencioso que exigia, da minha mãe, concentração, ritmo e paciência, muita paciência. Uma vez, tricotando uma blusa para o meu pai, já quase concluída, minha mãe percebeu um erro grotesco lá no começo da peça. Sem titubear, desmanchou boa parte da costura e a refez, ponto por ponto, apesar de ter percebido uma fisionomia de raiva e desapontamento no semblante de minha mãe.

Quando decidimos construir algo, reconstruir faz parte. Quando decidimos fazer, refazer torna-se inerente. Quando a fisionomia de desapontamento surge, e, certamente, ela surge, a nossa vontade, muitas vezes, é de largar mão e abandonar a obra. Mas a nossa teimosia de insistir naquilo que chamamos “nossa obra”, se mais forte for, derrotará a demolição anunciada que não se concretizou. Maiakóvski tem razão: arte é o martelo que ajuda a forjar o que precisa ser visto. E para tal, é preciso do tempo da espera, da arte, do bordar, do sentar-se, do sentir-se.

Quando o pensamento de realização nasce, nasce, também, a possibilidade e necessidade da reforma. Tricotar, bordar, pintar e todo e qualquer tipo de arte exige graus elevados de paciência para o refazimento, para a reestruturação, para a reelaboração, para a reforma. Construir por meio do manual, do artesanal não conversa com a mecanização. O fazer manual possui, como principal característica, o traço do autor cuja assinatura não poderá ser outra que não a sua ou a minha. Não haverá outra obra igual. Mas para sermos merecedores do legítimo, do inédito e do exclusivo, há que se ter tempo para os passos, para o caminhar além da esteira de produção, para além dos gestos inúteis.

Realizações manuais são necessárias; mas realizações industriais também. Construções artesanais são ritmadas de forma que não adoecem. No entanto, não atendem a tantas demandas que o mundo de hoje, e também o de ontem, exigem. Realizações manuais e artesanais não possuem patrocínios expressivos. Construções velozes são desumanas, adoecem e fazem dos hospícios quase a extensão dos nossos viveres. São construções patrocinadas porque o retorno do lucro e do caixa são certos. Contudo, atendem as tantas demandas que nos cercam e que nos expandem, conversam com as nossas necessidades como íntimos conhecidos, e tornam evidente a nossa ignorância. Uma ignorância que é ignorada apenas por nós, os donos da ignorância.

Viver é uma obra de muitos tijolos. Mas como adquirir tantos tijolos de forma manual e artesanal? Se para vivermos será preciso tijolos, construí-los será necessário. E para dar conta de tamanha demanda, precisamos, portanto também da mecanização, da padronização e da industrialização. O que fazer? Não penso que há respostas prontas e caminhos certos. Mas há respostas sendo respondidas e caminhos sendo construídos. Resta-nos saber se eles serão suficientes para nos resgatar das vantagens e das promessas que acreditamos, de certas atrações que nos distraíram e da miséria moral que nos ronda, mas que insistimos em renomear para disfarçar a companhia da dor que desprezamos.

Disciplina e paciência são resultados da construção do artesão. Mas o artesanal da vida é demorado, lento, construído. Muitas vezes, vamos deixar as sementes aqui, não teremos tempo de acompanharmos a colheita. Resultado e entrega são resultados da construção do mecânico. Mas o mecânico da vida é artificial, igual, descaracterizado e com rachaduras internas. Muitas vezes, vamos colher rapidamente porque compramos uma terra que não foi lavrada por nós. O que buscamos? O que faz sentido para nós? Acredito que os dois. Hipócrita seria vivermos sob o teto artesanal pedindo um alimento pelo aplicativo ou pagando uma conta pelo PIX. Mas como conciliar? É possível conciliar? Saberemos fazer isso? Não sei.

O que sei, apenas, é que continuaremos a dar muito trabalho a nós mesmos. Não somos criaturas simples. Somos uma sucessão de erros, acertos, misérias, dores, alegrias e enganos. Vivemos escondidos sob discursos prontos e encomendados. Vivemos de textos rebuscados, retóricos e redundantes, mas que ninguém está interessado em nos desmascarar, até porque todos estão preocupados e ocupados em sustentarem as próprias máscaras. E quando surgem os de fala simples e sem encomendas no discurso, a audiência é mínima, sem relevância. E uma audiência mínima, sem relevância, fica sem patrocínio. E sem patrocínio, como se sustentará? Voltamos para o dilema do artesão e da mecanização.

O que sei, também, é que não é fácil discutir este assunto com a gente. Sempre temos as respostas. Sempre temos razão. E se sempre temos razão, qual o sentido da conversa? Somos senhores de respostas prontas, incuráveis, sabedores de pseudo saberes, enfermos que buscam ecos em outras vozes. Achamo-nos originais, mas o que nos falta é leitura dos que passaram antes da gente. Somos enfermos saudáveis porque aprendemos a relevância da aparência para a nossa permanência e sobrevivência, aqui. Somos faladores contumazes e escutadores em extinção. Somos aqueles que sabem, os brilhantes e aqueles que opinam sobre tudo porque nada sabemos. Está evidente, portanto, o nosso despreparo. Arrumamos as nossas malas muito mal, e nos faltam itens urgentes, básicos e de primeira necessidade.

A vida é uma obra de passos lentos, vivos, artesanais, autorais e atemporais. A vida que buscamos é uma obra de rapidez, de entregas, de falta de tempo, de mortos, de iguais, de artificiais. Como conciliar o melhor dos dois modos? É possível?

Temos adoecido porque temos excessos de tarefas sem importância. Nossas agendas vão cheias de afazeres que lá estão para ocuparem a ociosidade. O comprimento de nossa vaidade anda extenso porque nos falta atenção a nossa largura moral. Impomos os nossos intervalos, brechas, bastidores aos outros, mas não aceitamos as dores alheias. Afinal, por que aceitá-las se nada nos dizem? Há um imobilismo no ar porque fomos travados pelo excesso. Queremos tanto, de tudo, e rápido que o que fazer com tudo isso?

Falta-nos o amparo do artesanal. Do tempo da construção. Da lembrança da espera. Do respeito pela obra. Do acompanhar da sobreposição dos tijolos. Importante atender as demandas. Mas o artesão faz dentro do tempo que se tem. A mecanização constrói um tempo artificial para que a demanda caiba lá. Adoecemos. E faz tempo. O adoecimento não tem nos dado o tempo necessário para que nos voltemos a nós. A superlotação esvazia o sentido do artesanal, do manual, do tempo para que se veja o erro no começo de uma construção e, de verdade e com vontade, se refaça a obra.

Somos, diariamente, atravessados por uma pressa que não nos ensina. Pelo contrário, que corrompe o que aprendemos, que subtrai os ensinamentos que a vida nos dedicou. O artesão tem a sorte de ter a experiência de composição e de movimento lento e natural porque abdicou das urgências falidas e das influências que o diminuem. E nós? Os que correm? Os que atropelam o sinal?

A blusa do meu pai foi refeita. Minha mãe tricotou durante dias e horas aquela blusa cinza, de lã, para o inverno que chegaria. Meu pai não é um homem que sente muito frio, mas sente. Portanto, “aquela blusa seria o suficiente”, disse minha mãe. O inverno chegou. Esfriou bastante. Minha mãe, observando que meu pai não vestia a blusa, insistiu para que ele a usasse. Afinal, quando seria senão no inverno? Uns dias seguintes, meu pai surge na cozinha com a blusa para a alegria da minha mãe. O estágio dela na arte de ser uma aprendiz de artesã tinha valido a pena.  À noite, quando meu pai chega em casa, está sem a blusa. Mas o frio era intenso. Por que ele estava sem a blusa, então? Porque havia espirrado o dia todo com a blusa, por causa da lã, meu pai é alérgico à lã. Uma descoberta irônica.

Minha mãe, novamente, esboça a mesma fisionomia de desapontamento e diz: “puxa, tanto trabalho para fazer esta blusa, e você nem vai usar? Se eu soubesse, não teria tido tanto trabalho. Mas fácil comprar algo pronto.”  Voltamos para o dilema do artesão e da mecanização. As mãos de minha mãe, relegadas ao desprezo da alergia do meu pai.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um lindo pensamento de Shakespeare, que diz: “A arte é o espelho e a crônica da sua época”.

Sermos os artesãos das nossas vidas é vivermos diante um espelho, nos enxergando, nos conhecendo, escrevendo a crônica, a realidade de nossas épocas. Ser artesão é transformar a banalidade em ênfase, e fazer exata a crônica da nossa vida, por meio das nossas mãos sejam elas físicas ou metafóricas.

A blusa de lã foi doada, mas o exercício do artesão jamais. Que esteja claro, para nós, que vivemos entre o tricotar de uma lã versus a compra de uma linda blusa da vitrine. Vivemos na ponte aérea do transcorrer do tempo respeitado versus do transcorrer do tempo atropelado. Atravessamos estes dois mares, sem exceções e sem muitas escolhas. Optar somente pelo artesanal é conversar com a hipocrisia; escolher a mecanização é nos distanciar de quem nos trouxe aqui: a vida. Portanto, que a gente calce sapatos fortes porque a caminhada é dura e longa. E que, mesmo sobre solos árduos, nossos pés e mãos possam viver o melhor que puderem, sempre um colaborando com o outro, e o principal: com os outros pés e mãos.