quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

A arte de faxinar

As luzes acesas e coloridas na avenida Paulista, há alguns dias, me fizeram despertar para o Natal que novamente havia chegado. Sempre sabemos quando ele chega. Nesta época, ficamos com aquela sensação de termos pendências pendentes, na agenda, o que nos faz fazer de conta que o Natal ainda demora a chegar. Como as coisas a serem feitas insistem na presença, fingimos não ouvir a campainha de casa que toca, sinalizando que o querido Noel acaba de chegar. E no silêncio do nosso fingimento, achamos que despistamos o querido Noel que bate a nossa porta. Como de inocente ele nada tem, percebe logo a nossa farsa e nos desmascara acessando as nossas janelas que, desavisados que somos, nos esquecemos de fechá-las naquele golpe de vento que deu há bastante tempo.

Como nos julgamos espertos, fechamos as janelas também. Assim, o querido Noel, sem opção, deve bater em outra porta e deixar de nos lembrar da presença dele, e com isso, os afazeres empilhados, o tempo percorrido e aprendido, e também o tempo transcorrido e perdido. Fechando todos os acessos de nossa casa, deixamos de ver a luz, mas em compensação, as cobranças do Noel, que sempre são implacáveis. Ele sempre surge com uma listinha e nos pede uma meia horinha de prosa.

Novamente ele nos surpreende, e tenta acesso a nós por meio das brechas que surgem em nossas portas e janelas. Corremos para estancar estas brechas. Mais uma vez conseguimos. Ele tenta, então, encontrar alguma porta em nossa casa que esteja, apenas, encostada, e assim, fazer uma surpresa para nós. Mas tivemos o cuidado de trancar todas as portas. Sobram as rachaduras nas paredes, portas, janelas e telhados. Com muita dificuldade, ele tenta passar pelas rachaduras, mas tapamos todas naquela última reforminha que fizemos, em casa.

O querido Noel, desolado, fica do lado de fora, somente conseguindo mostrar que chegou para as luzes da cidade e para estampar enfeites nas portas das casas, do lado de fora.

Mais uma vez, ele toca a campainha. Ele é insistente. Não desiste da gente. Ficamos em silêncio para que ele pense que não há gente em casa. “Assim ele vai embora, pensamos.”

Fomos certeiros. O querido Noel não teve acesso a nossa casa. Podemos continuar fingindo que o tempo nos espera, que o trabalho pendente é só um detalhe sem importância, que o avançar das horas é só uma metáfora e que a vida deverá seguir as nossas regras. Podemos continuar fingindo que as dores não existem, que o remédio para a dor é a utilização de mais remédio, que a multidão de amigos que temos é verdadeira e que somos o centro do Universo.

O faz-de-conta ainda é uma ferramenta bem poderosa dos nossos tempos. De todos os tempos. Enquanto formos estranhos a nós mesmos, o faz-de-conta ainda dará conta de nossos vazios.

Fomos cuidadosos no trancar de todos os acessos. E com ele, trancamos, também, o acesso à luz que vinha do sol, lá fora, mas que insistimos em esvaziá-lo porque, além de tudo, desbota os nossos tecidos e os nossos móveis. Assim, nossa casa ficou escura e nada mais foi possível enxergar. Como inteligência nem sempre foi o nosso forte, acendemos as luzes ao invés de repensarmos o abrir das janelas. E ao acendermos as luzes da nossa casa, porque fechamos todos os acessos, uma imensa poeira e sujeira avistamos.

Uma poeira nossa. Uma sujeira construída. Uma desordem implacável se convida.

Nessa hora, de posse da nossa realidade, um balde e uma vassoura surgem no nosso ambiente. E também um lindo saco de presente embrulhado e etiquetado com o nosso nome. Eles não estavam lá. E aí, sentimos um ventinho que vem lá de baixo. Corremos para ver e damos de cara com o nosso querido Noel, saindo pela janela, que esquecemos aberta, do nosso quartinho dos fundos, aquele da bagunça. Como é um lugar para depósitos de esquecidos e de pendências, há tempos não descemos lá. E não é que o nosso querido Noel descobriu esta entrada? Esperto ele. Sempre deixamos pistas. Somos falíveis. Ainda bem.

Não é à toa que ele já se encontra numa posição de nos visitar. E nós, ainda, na condição de visitados.

Descobrimos, então, o autor dos presentes. A bota preta do nosso querido Noel e o saco vermelho repleto de realizações, assim como de afazeres, são inconfundíveis. Mesmo ele tendo saído bem rápido, pela janela, o reconhecemos muito bem. Ele ainda acenou para nós com um largo sorriso.

Os sábios não param nas pequenezas da vida. Por isso, ele nos deu um largo sorriso mesmo que tenhamos fechado quase todas as entradas para ele.

Inteligência realmente não é o nosso forte. Mas há exceções e estamos no caminho. Nada de determinismos. Portanto, somos capazes, ainda, de entendermos o significado de um balde e de uma vassoura. O nosso querido Noel foi implacável: percebeu que nossa casa precisava de uma boa faxina. Se o tivéssemos deixado entrar pela porta da frente, com a presença do sol, talvez ele não percebesse tanto a sujeira. Mas como fechamos tudo, ou quase tudo, a escuridão foi a nossa guia, ele pôde enxergar a nossa sujeira com propriedade, principalmente no quartinho da bagunça, com entulhos, sobras, mofos e coisas para um dia ver.

Mas e o presente com a etiqueta nominal a cada um de nós? Fomos todos espiar. E na etiqueta constava, além do nome de cada um de nós, um recadinho do Noel que dizia: “primeiro a faxina. Depois o embrulho. Com a casa limpa, será mais fácil você apreciar o presente que eu te trouxe.”

Uma vergonha se apossa de nós. Faz parte. Olhamos ao redor e realmente precisamos fazer uma faxina, e daquelas! Mas esperamos o nosso querido Noel chegar para nos darmos conta disso. Por isso, ele carrega uma falsa culpa daquele que nos cobra. A presença dele é bem-vinda, mas sempre carregada de um peso de algo não concluído, não realizado.

Ele não nos cobra. Ele nos lembra. A responsabilidade pela faxina é nossa, e não dele.

Relutamos para começar a faxina. É cansativo. Reclamamos que o balde pesa, que faltou algum produto ou que a vassoura está velha. Somos peritos na dissimulação. Mas o balde e a vassoura ficam ali, nos contemplando e atentos às desculpas que vamos dar. Resistimos enquanto nossas desculpas fizerem sentido e enquanto o tempo se disfarçar de nosso cúmplice. Mas a poeira ali, descortinada pelas luzes que acendemos porque escondemos o sol, nos faz ver que o nosso querido Noel tinha razão: uma faxina precisa ser feita. E rápido.

Faxinar é uma arte, não é para qualquer um. É uma disposição dirigida para o fazer, sem saber se chegaremos a algum lugar. Enquanto faxinamos, reencontramos poeiras, teias, velharias, inutilidades e espaços ocupados pelo desnecessário. Mas também encontramos objetos e alegrias escondidos que merecem destaque na nossa bela decoração. Reorganizamos prateleiras, sobram espaços e nossos significados começam a tomar forma.

Enxergar nossos cantos e nossos arredores significa sermos o artesão da nossa obra. E a nossa matéria prima é a nossa singularidade. É nisto que nos diferenciamos. Somos singulares e precisamos fazer as pazes com tudo o que nos trouxe até aqui. Faxinar é traduzir as interpretações que indicam caminhos, que reforçam sentidos e nos dão a direção.

É preciso amar nossos labirintos e incompletudes porque serão eles quem nos levarão a outras janelas e a outros caminhos. Nossos labirintos esquisitos e desconhecidos nos afastam da integridade, que é a coragem de carregar a nós mesmos, independentemente da roupa que estivermos vestindo.

Dar voz e rosto para as nossas dores é aceitar o convite da faxina. Reencontrar os nossos hiatos que foram provocados pelas nossas ausências. Somos ausentes de nós mesmos e frequentes nesta prática.

Não podemos ir pelo campo do “eu já sei”. Não podemos replicar modelos de reprodução, de repetição. Seguir o script sem questionar nos leva ao imobilismo. Por isso, nos assustamos com a visita do nosso querido Noel.

Scripts são domesticadores e não incentivadores de outros pensamentos e construções. Não buscamos construtores, mas sim, seguidores de regras prontas e estabelecidas geralmente por pessoas que desconhecem o que verdadeiramente importa.

O mundo pede outros papéis. Aqueles que não estejam no script. Faxinar é alcançar este patamar de pensamento e saber que é preciso caminhar e avançar. É preciso transgredir as regras, se assim for necessário, o que significa, muitas vezes, sair do script. Desobedecer. Quando nos apropriamos do nosso balde, da nossa vassoura e seguimos para a faxina, certamente desobedeceremos àquele que luta pelo nosso adiamento.

São inúmeras as saídas, mas muitas vezes não temos a chave de nenhuma das portas. Por isso, é imprescindível a faxina. Um ser alienado não se conhece. Quer fazer passos aéreos, no entanto, o convite da vida é por passos térreos e firmes. Uma faxina. A arte de faxinar.

O convite está colocado sobre a mesa, aliás sobre o balde e a vassoura. O que se busca é seguir. A vida jamais pedirá para pararmos. A vida não é apostilada. Não possui um formato.

Pode ser que tentem interromper a nossa faxina, principalmente nesta época do ano que costumamos ter mais afazeres ainda. Mas será preciso seguir com o trabalho. Sempre vale a pena. A faxina cansa. Mas somente a gente sabe fazer. É um trabalho indelegável.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Buda, que diz:

“Não é possível seguir o caminho antes de ter se tornado parte dele.”

A visita do nosso querido Noel era para isso: para nos lembrar deste valioso trabalho a ser feito. Faxinar é nos apropriar e nos tornar parte do nosso caminho. Somente depois disto, poderemos abrir aquele pacote que ele nos deixou. Que sejamos atenciosos com o tempo, com o passar dele e com os pedidos que ele nos faz.

A fluência da vida, e na vida, nos faz conquistar condições para preenchermos os buracos que criamos ao fecharmos as portas para o sol e para o nosso querido Noel.

Que a gente busque, sem descanso, o nosso brilho e renuncie àquilo que nos explora. Fácil caminhada não será. Mas somente a atitude de buscá-la nos deixará mais próximos dela.

domingo, 11 de novembro de 2018

De grão em grão...

...entope o ralo da pia, na casa da minha vó.

Esta foi a resposta que a minha irmã recebeu de uma aluna, em sala de aula. O estudo era sobre ditados populares, significados e a influência que eles exerciam na língua e no dia a dia de cada um. Parece-me que “...a galinha enche o papo” não é tão óbvio assim. Pelo menos, não para aquela menina de pouco mais de dez anos.

Quando a minha irmã me contou esta história, confesso que ri. Achei divertido. Não no sentido da gozação pelo erro, na resposta, mas pelo lado da ingenuidade que todas as crianças carregam. A espontaneidade do infantil é algo que nos faz rir. A ausência de filtros que há, na fala de uma criança, diz muito, e traduz uma leveza de sentidos e de um leve estar, no mundo. Além da ingenuidade da criança, pensei na questão cultural: nem todos conhecem os ditados populares, por mais populares que sejam. Portanto, não ter conhecimento sobre eles diz mais que sabê-los. Mas enfim. O fato é que ri e, ao mesmo tempo, pensei nesta diversidade de culturas que temos, o que justifica os nossos não saberes.

Passado um tempo, e estudando sobre comportamento humano, a palavra inferência veio muito a minha mente. O que é inferência? Por que inferimos na fala do outro? Qual é o impacto da inferência no nosso discurso? Qual é a imagem que construímos quando inferimos? Quando bem utilizada, a inferência ajuda a construir conclusões, une pensamentos soltos, incentiva a reflexão sobre o que se pretende construir. Fatos são conectados graças, inclusive, às inferências.

imagem tirada da internet

No entanto, como nem tudo são flores, quando mal utilizada, cometemos desalinhos que, de tão íntimos da gente, não percebemos que os cometemos. Tenho a impressão de que gostamos de nos conectar às partes menos nobres das coisas. E com as palavras não seria diferente.

Esse estudo me fez lembrar daquela menina que um dia disse que “...de grão em grão entupia o ralo da pia, na casa da vó...”. Percebi o quanto eu havia inferido, naquele momento, quando ri da resposta da menina. Uma inferência sem perceber e sem a intenção de reparar no erro da resposta, mas uma inferência que reparou em respostas diferentes das que eu assumia como certas e óbvias. No meu conjunto de verdades, no meu bloco de modelos, não cabia a resposta que ela havia dado. Por isso, eu ri. Foi muito mais que achar graça numa ingenuidade infantil. Muito mais que me encantar com a ausência de filtros que toda criança tem. Foi, além disto tudo, uma inferência de minha parte. Uma inferência que, por fazer parte da minha construção, tem dificuldades de aceitar respostas absurdas e às margens do óbvio.

Não se trata de críticas a nós, mas reflexões: aquela menina me trouxe, por meio da fala absurda, engraçada e errada, um contexto. Um contexto que eu não tenho, mas ela tem. E é preciso respeitar isso. ‘Entupir o ralo da pia, na casa da minha avó, não existia, para mim.’

A falta de respeito não ocorre somente na transgressão verbal, no papo seco e intolerante, mas sim no riso fora de hora, na ironia, na displicência, na ausência de interesse pela realidade do outro. Não que achar graça na fala do outro seja motivo de nos punirmos, mas ao mesmo tempo que rimos, é importante saber o porquê de a pessoa ter dito aquilo.

Interessar-se pelo contexto do outro é uma forma de inferir na vida do outro, mas no bom sentido. Apenas rir, mesmo que seja uma ‘bobagem de criança’, como dizemos, é uma forma de marginalizarmos a construção dela. O mundo precisa deixar de ser um lugar de ameaça e de segregações, para ser um lugar de junções e de sentido.

Este foi apenas um exemplo. Mas e quantos há? Por que o diferente e o ‘fora do padrão’ é sempre alvo de observações? Por que aquele que traz outra realidade, passos dados em ruas opostas àquelas que pisamos, precisa se explicar?

Mesmo sendo um exemplo simples de uma aula sobre ditados populares, ainda assim, o riso precisa ser contextualizado. Não é, em todo o momento, que ele caberá. O discernimento ainda é uma das nossas mais nobres armas.

Rimos do outro porque inferimos o saber que achamos que ele tem de ter. Quando o outro não corresponde a uma expectativa que temos, uma das formas de marginalizá-lo, é rindo dele. Mas há muitas outras.

A irmã da inferência é a arrogância. Inferimos porque já sabemos as respostas. Inferimos porque o nosso tempo é muito mais valioso que o tempo do outro. Inferimos porque nos achamos no direito de completar o raciocínio do outro, mesmo que depois ele nos diga: “..., mas não era isso o que eu ia dizer...”. Inferimos porque sempre nos colocamos em degraus maiores e mais altos do que aqueles aos quais, realmente, fazemos jus.

Achamos que as nossas respostas cabem na vida da outra pessoa. Inferimos.

Acreditamos que o outro nos ocupa com as miudezas dele. Inferimos.

Insistimos que a forma é a nossa gestora e a nossa mediadora. Os nossos modelos mentais são os guias. Inferimos.

Temos fissuras e rachaduras, mas as escondemos. Somos ensinados para o supérfluo. Temos tantos pontos soltos. Ainda demora muito para que estejamos prontos.

Inferimos porque exigimos respostas aonde as perguntas ainda nem começaram a ser feitas.

Uma menina me trouxe um contexto. E quando aceitamos que aprendemos com o outro, nosso horizonte se alarga.  Entupir o ralo da pia, na casa da vó dela, era o contexto da menina, e não o meu. Portanto, lição primordial: jamais rir de contextos diferentes dos meus. Eu já sabia disto, mas no momento em que ouvi a história, me esqueci deste precioso conselho.

Somos construídos por meio da realidade dos outros. Somos feitos das paredes que encerram as paredes do outro. O mesmo tijolo que alimenta os nossos intervalos é o mesmo que constrói o que nos leva ao outro. Mas também o que nos afasta dele. Uma resposta tão óbvia como “a galinha enche o papo” somente é óbvia porque conversa com a minha realidade e de tantas outras pessoas, mas não com a daquela menina.

As lições, muitas vezes, vêm de pessoas e de lugares impensados.

As pessoas são construídas, inclusive, por causa das vivências experimentadas. Acreditamos que temos os elementos suficientes para compreendermos a realidade do outro. E de longe temos. Somos ausentes na vida do outro. Nossas ausências não nos permitem conhecê-lo. Mas como precisamos preencher os espaços, no outro, que causamos por causa da nossa ausência, inferimos.

Sempre temos as respostas. Nossas opiniões adoecidas nunca saíram das formas. O outro ainda não mencionou a doença que possui, mas temos o remédio em nossas prateleiras empoeiradas por causa da nossa ociosidade que dificulta, inclusive, enxergarmos as nossas doenças.

Para nós, é difícil nos ocupar da realidade do outro geralmente porque ela não nos interessa. Mas fica deselegante sermos tão sinceros...

A resposta daquela aluna rompeu uma fala pronta, um trecho da história que já conhecemos. Houve um silêncio na sala. E depois, um riso. Ela trouxe uma resposta de acordo com a realidade dela, e não com a fala pronta construída por uma sociedade que não a conhece e que a marginaliza não somente por dar respostas diferentes, mas por esta resposta ser pequena, aos olhos dos falsos grandes.

“De grão em grão a galinha enche o papo” é uma metáfora para traduzir que não devemos desistir, que de pouco em pouco, chegaremos lá. O ditado traz uma subjetividade que, somente por meio de elementos concretos e experimentados, poderemos ter. Como exigir uma resposta de tanta subjetividade de uma criança que, além de tudo, ainda vive numa realidade precária e, certamente, de direitos cerceados?

A subjetividade é desenvolvida por meio da oportunidade de vivê-la e de construí-la. Por meio da abstração. Como tratar da abstração, conhecimento fundamental para a formação do nosso estar no mundo, se o concreto ainda não se firmou? Além da subjetividade, a metáfora contida no ditado carrega um sentido de perseverança, de não desistência, e, acima de tudo, de afirmação de que de grão em grão a galinha enche o papo.

O que é encher o papo quando, no máximo, vejo entupir a pia, na casa da minha vó?

Somos uma sequência de rupturas e de contradições, o que dificulta a construção de um claro projeto de vida para nós. Crescemos com a conquista de alguns isolamentos. Somente o silêncio e o isolamento nos trazem determinadas reflexões. Entrar e acessar os nossos silêncios nos provoca atitudes. Aceitando este convite, damos chance para que a nossa vida se estenda.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Eugene Delacroix, pintor francês do século XIX, que diz:

“que eu não atrase a evolução do outro por causa da ausência das minhas medidas.”

Viver é transitar nos nossos escuros e labirintos, sem a mínima certeza se seremos merecedores da luz. Mas se aceitarmos que temos corredores obscuros que necessitam de luzes, o caminho será mais fácil. Brilharemos.

Nossos bastidores se esbarram, e mesmo assim, não somos capazes de abrir as portas para mais pessoas passarem e entrarem. É uma pena o desperdício de não dedicarmos tempo para o olhar interno. Se o fizéssemos, saberíamos que ‘entupir o ralo da pia, na nossa própria casa’, é uma realidade de todos nós, muito além de um inocente ditado popular.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

O tecido da vida

Diz a lenda que “um explorador, ansioso para chegar logo ao seu destino, no coração da África, pagava um salário extra para que os seus carregadores índios andassem mais rápido. Durante vários dias, os carregadores, então, apressaram o passo.

Certa tarde, todos os índios se sentaram no chão e depositaram seus fardos, recusando-se a continuarem. Por mais dinheiro que fosse a eles oferecido, os índios não se moviam. Quando, finalmente, o explorador pediu uma razão para aquele comportamento, obteve a resposta:

- Andamos tão depressa, e já não sabemos mais o que estamos fazendo. Agora precisamos esperar até que as nossas almas nos alcancem.”

Esta pequena história, retirada do livro Maktub, de Paulo Coelho, nos provoca uma reflexão incômoda e indigesta. E este incômodo se dá justamente porque nos identificamos com esta história, com aquilo que nos foi contado. Resta saber, apenas, se nos identificamos com o explorador, ansioso para chegar ao destino, ou se com os índios que, num determinado momento, jogaram seus fardos no chão a espera de suas almas.

Com qual dos dois nos identificamos? Talvez nunca saberemos esta resposta porque somos o explorador e o índio. Os dois vivem em nós.

Somos os exploradores do caminho, a espera de índios que acatem as nossas ordens. Mas também somos os índios que, apesar de servirmos os outros porque não sabemos do que gostamos e do que precisamos, nossos ecos nos cobram jogarmos os nossos fardos no chão, quando assim eles pesarem muito e não valerem a pena serem carregados.

A pressa produz poeira no nosso caminho, que nos cega. E cegos, aflitos, corremos mais. E correndo mais, mais poeira é produzida em nossos trajetos. E com mais poeira no caminho, menos enxergamos os fardos que ocupam as nossas mãos e mentes. O ciclo vicioso se acomoda e se fortalece. Muitos, a nossa volta, ficam felizes com o nosso desencanto. Nem só de pessoas saudáveis vive o mundo. Como estamos cegos, difícil será enxergar a poeira que alimenta o nosso caminhar, que dirá enxergar as pessoas que se alimentam do nosso desencanto e do nosso cansaço.

Os fardos jogados no chão produzem o trabalho de volta pra casa. Uma volta mais serena, amadurecida e com cicatrizes. Quem não as têm? Representam o sentido recuperando o sentido para assim, darmos sentido à vida.

Por que corremos tanto? Correr faz parte da vida, mas quando há um sentido dentro dele. Exceto isso, a correria não se justifica. Será apenas para continuar a alimentar os exploradores do caminho a procura de índios.

Corremos para a Faculdade, corremos para almoçar, corremos para dormir, corremos para acordar, corremos para dar um beijo no nosso filho, corremos para trabalhar. Corremos. Sempre estamos no próximo compromisso. O hoje é um lugar que não existe. Sempre estamos num lugar que talvez não haja no futuro. Um lugar construído pela pressa, pela ansiedade, pela angústia.

O sentido da pressa é desviar o nosso olhar do útil, importante, saudável. Enquanto estamos correndo como o Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas, a sensação de estarmos atrasados será frequente em nossas vidas.

Um correr com pressa fará sentido se soubermos para aonde estamos indo, se fizer sentido para nós. A correria faz parte do nosso dia a dia. Mas há que ser uma correria construída sobre algo de valor, relevante e de sentido. E, acima de tudo, com equilíbrio e discernimento.

Com pressa, mas com sentido, teremos a chance de encontrarmos os índios do caminho. Com pressa e sem sentido, os índios jamais farão parte de nossas vidas. Ou se fizerem, escondidos estarão nas poeiras que vão nas nossas estradas.

Um caminhar mais devagar, porém firme e com propósito: uma oportunidade para tecer a nossa vida. Construí-la por meio de linhas fortes e de boa qualidade. Um tecer que fará das nossas estadas aqui verdadeiros tecidos nobres, com interpretações e representações que somente nós poderemos vivê-los.

Assim como um texto bem escrito que representa uma textura leve que expressamos por meio de palavras e de sons, também a nossa vida: uma construção de um desenho que alinhava contornos e entornos em torno de nós, firmes e sólidos. Mas isso somente sem pressa. Ou se ela se apresentar, que seja breve e com fortes argumentos para que haja a permissão para que ela se instale em nós.

As agendas lotadas apenas mostram o quão longe estamos de nós mesmos. Quem muito faz, nada faz. A correria somente nos mostra a nossa completa falta de prioridade e ausência de planejamento. Não há como fazermos muitas coisas sem sermos superficiais e rasos. A profundidade somente possui espaço para acontecer num ambiente calmo, quieto e que ofereça as condições. Assim como as águas profundas do velho mar: somente nos damos conta da sua profundidade a medida que avançamos e que saímos do raso.

A correria parece que justifica a nossa estada aqui. Ter muitos compromissos e não ter tempo parecem ter se tornado moedas de troca na nossa sociedade. Ou seja, se dissermos que somos ocupados (mas se somente parecermos ocupados será o suficiente) e que não temos tempo, a nossa sociedade rirá para nós e nos dará um lugar de destaque nela. Uma relação de ganha-ganha entre pessoas (nós) que vivem de imagem x uma sociedade que alimenta e que induz à alienação.

Ser ocupado e fazer o útil não implica corrermos e termos pressa o tempo todo. Significa, apenas, fazer o uso correto do tempo, exatamente para que ele não se esgote inutilmente enquanto alimentamos o nosso ego de falsas ilusões. Termos tempo não significa ausência de realizações. Significa usá-lo com eficiência.

Correr o tempo todo e sempre estar ocupado e com pressa significa que o inútil está sendo feito, e com qualidade.

Corremos tanto que até o Coelho Branco ficou sem referências do que vem a ser correr. Como diz a música: “nem o santo tem ao certo a medida da maldade...”. Queremos mostrar uma eficiência que de longe temos, dizemos meia dúzia de palavras para impressionar naquela reunião desnecessária, damos diversos pitacos em projetos aleatórios, somos peritos em interromper o outro e o pior: achamos que fazemos várias coisas ao mesmo tempo e nos orgulhamos disso. O excesso do fazer tornou-se sinônimo de importância, infelizmente. O que de longe se caracteriza uma verdade.  Por que o simples segue tão desacreditado? Talvez porque ele seja desprovido de máscaras, de disfarces, de senão, de bastidores.

Ainda se vive, sem perceber, numa condição de alienação. E este estado de alienação nos tira a condição e a capacidade de ação e de existência. Por isso, é comum encontrarmos pessoas correndo o tempo todo sem saber para aonde estão indo. Os nossos índios tentam, a duras penas, nos mostrar os fardos do caminho que devem ser abandonados. Mas somos jovens, ainda, e perdidos em inúmeras saídas, não conseguimos enxergar as chaves que nos dão. Uma pena. Um ser alienado não se conhece. Quer fazer passos aéreos, no entanto, o convite da vida é por passos térreos e firmes.

Enquanto nossas agendas seguem repletas de inutilidades, aquilo que é útil fica submerso. Desperdiçamos um tempo precioso que deveria estar sendo ocupado para o tecer de nossas vidas. Para o enxergar de fardos. Para o reencontrar de nossas almas. Na correria, certamente elas caminham em lados opostos.

O convite está colocado sobre a mesa. O que se busca é seguir. A vida jamais pedirá para pararmos. No máximo, para diminuirmos o ritmo, exatamente para que a dança nunca seja descontinuada. Para que os fardos sejam colocados no chão.

A vida não é apostilada. Não possui um formato. Há muito a ser feito. Mas é preciso começar. E uma boa ideia de começo é revisitar as nossas pressas e as nossas urgências. Talvez não mais as reconheçamos e seja a hora de mudar. Nossos aposentos e nossas salas ficarão vazios porque não mais os preencheremos com as nossas urgências desprezíveis, com o nosso cercear de ação do outro, com a nossa limitação ética e moral.

Quando o simples voltar a figurar no nosso dicionário, nossas urgências e pressas continuarão, mas saberão o seu lugar de fala no mundo. Terão sido construídos pelo espaço, pelo vazio e pelo silêncio, as verdadeiras bases de uma construção sólida. Somos barulhentos demais. Por isso, temos dificuldades de ouvirmos as nossas próprias vozes.

Nós somos os índios desta história. Mas a correria e a pressa não nos permitem reconhecê-los em nós. Nossas almas caminham em direções opostas a nós quando agimos apressando a vida.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Machado de Assis, que diz:

“o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo.”

Que possamos nos orgulhar do bordado da nossa vida. Que sejamos atenciosos com o tempo, com o passar dele e com os pedidos que ele nos faz, para que o tecido de nossa vida seja leve e amigo. Mas que esta atenção não nos retire da dança da vida e nos coloque num aposento com paredes brancas, sem vida, e principalmente, sem música. Se formos atenciosos com o tempo e se ouvirmos o que ele tem a nos dizer, nossos fardos ficarão visíveis a nós, e os índios do nosso caminho não mais precisarão se sentar no chão a espera de suas almas. Porque elas jamais terão se perdido deles, ou melhor, de nós mesmos.

domingo, 30 de setembro de 2018

Ah, a velhice

Há assuntos que não se esgotam. E velhice é um deles. Um clássico da nossa cultura. E o que seria um clássico? É aquilo que nunca esgota o que precisa ser dito. Sempre há o que dizer. Sempre há reflexões a serem feitas sobre algo que nos incomoda.

Velhice, na nossa sociedade, é sinônimo de derrota. Um convite discreto da sociedade pedindo para você se retirar. Aposentamos as pessoas porque estão velhas. Não servem mais. Obviamente que não dizemos com esta franqueza. Mas é assim que pensamos, infelizmente. A palavra aposentadoria tem em sua matriz a palavra aposento que, antigamente e até hoje, é o lugar da casa destinado ao descanso, ao pousar, ao repousar. O “a” de aposentadoria significa junto de. Portanto, aposentar é, literalmente, deixar algo ou alguém aposentando, descansando junto de um cômodo da casa: o aposento. E com o passar do tempo, além do significado inicial, também ganhou reforços pejorativos de inatividade, exclusão, retirada de circulação, isolamento.

Uma passada na História sempre nos traz incômodos. A História guarda a nossa memória.

Os que ainda não chegaram lá, se auto intitulam sabedores do que é o melhor, e assim, estas pessoas são colocadas à margem. A vida segue, mas agora o bilhete delas é apenas como expectadoras, como visitantes abelhudos que, muitas vezes, não são bem-vindos.

Mas ainda bem que há pessoas, acredito, que não prestam muita atenção a estes conceitos criados por aqueles que nada sabem da vida.

vídeo tirado da internet

Há que diferenciarmos velho de idoso. Velho é aquilo que perdeu a vitalidade. Um sapato e uma roupa ficam velhos. É um estado daquilo que foi gasto e usado pelo tempo. Aquele que foi utilizado e visitado pelo tempo ficou velho. Nós também envelhecemos. As rugas surgem, algumas dores nos visitam e a limitação física nos dá sinais de que há tempos estamos aqui. Idoso é aquele que, apesar da velhice impressa na pele e na limitação física, a vitalidade permanece. A vida se sobrepõe e se impõe. Vivemos. Seguimos. Envelhecemos por causa do excesso da idade, mas a vitalidade e a dinâmica da vida se colocam acima disto, apesar das dificuldades que o excesso de idade nos apresenta.

Quando pensamos sobre isto, ficamos pequenos diante de tantos aposentos lotados com o nosso consentimento. A nossa pequenez se agiganta diante tanta ignorância. Afastamos aquele que poderia nos ensinar a ser maiores. Mas parece que gostamos deste lugar pequeno que ocupamos por causa da nossa falta de disposição para o crescimento.

É preciso revisitar conceitos, irmos além. Somos reféns de nós mesmos. A condição na qual vivemos cria impeditivos para nós próprios.

O avançado da idade nos incomoda pois dá trabalho pensar sobre. A velhice e a sua vitalidade nos trazem espelhos, mas que insistimos em cobri-los. Sofremos de certa alienação e douramos o nosso discurso para mostrarmos o que, na verdade, nos falta.

As catracas servem para evitar a saída ou para impedir a entrada? Uma esquizofrenia que não tem resposta. Não há como responder a esta pergunta. O nosso discurso de valorização do idoso existe por causa das leis que nos obrigam a isso ou por causa do nosso respeito sincero? Voltamos à esquizofrenia das catracas. Assunto complexo porque envolve toda a nossa estrutura de ser num mundo que insiste em nos vigiar, como diz a música.

Aquele casal do vídeo dança daquela forma não somente pela disposição e condição física. Mas sim por acreditar que o rendimento deles nunca poderá ser maior que a imagem que possuem de si. Como não se colocam na condição de velhos, no sentido de ausência de vida, seguem e continuam, apesar do coro lá fora dizer o contrário. Apesar de os esforços coletivos serem eficientes e persistentes para que eles sigam na fila em direção aos aposentos.

Não se trata de fazer de conta que a idade não nos alcançou, ou de fazer aquilo de que está acima de nossas possibilidades. Mas sim de continuar.

Um continuar com paradas mais frequentes, um continuar com cansaços mais evidentes, um continuar com um intervalo para engolir o remédio. Mas, acima de tudo, um continuar.

Quem segue, recobra os sentidos da própria trajetória. Dá a volta e segue na estrada há tempos percorrida. Um continuar permeado pela dignidade e pelo respeito às necessidades que se fazem no caminhar.

Uma dança com passos mais moderados: mas ainda assim é uma dança. Um casal que faz contornos mais comedidos: mas ainda assim é uma dança. Um seguir colocando tijolos na própria construção.

O avançar da idade exige recortes, revisitações e readaptações. Mas em momento algum este avançar de idade exige estagnação e aposentos. Aliás, não há, atrás das portas, um lugar pronto para pendurarmos as nossas chuteiras. Quem coloca um prego lá somos nós mesmos ou aqueles que acreditam ter este poder. São os doentes do caminho. Aqueles que buscam, o tempo todo, elevadores no caminho.

Seguir respeitando o cansaço de nossas pernas. Dançando uma música mais lenta. Pedindo para alguém falar mais alto. Trabalhando menos. Mas seguir. Seguir não é uma obrigação, mas um convite.

O jovem dança mais rápido. Isto é verdade. Mas é verdade também que ele conhece poucos ritmos, o que fará falta na hora de uma escolha. Ele mais facilmente cairá no vício de exigir respostas rápidas da vida. Mas ela ensina. De forma dura, mas ensina.

O idoso dança mais devagar. Isto é verdade. Mas ele conhece inúmeros ritmos que o possibilita fazer melhores e sábias escolhas. Dificilmente ele exigirá mais do que a vida poderá dar. Fez as pazes com ela. Brigar com a vida é ainda um ímpeto daquele que está aqui há pouco tempo.

O idoso costuma ser colocado de lado, geralmente nos cantos, nas pontas, nas celas disfarçadas de lar. O conhecimento que ele tem é visto como ultrapassado. Quando ele fala, outras vozes o calam. Nem a nossa pseudo educação conseguimos mostrar.

Para valorizar a idade, a velhice, o idoso, há que se compreender e aceitar a nossa condição de finitos. A finitude é uma condição do humano. Queremos ignorar a nossa própria condição.  Aposentamos as pessoas porque é uma das maneiras de tirarmos o relógio da nossa frente. Um idoso na nossa frente significa a certeza da passagem do tempo. Excluir a velhice da nossa realidade não a valorizando é uma das formas de não lidarmos com a nossa própria realidade.

Temos a crença na desvalorização do idoso, do avançar da idade. E a função da crença é se perpetuar. Por isso, temos uma sociedade de doentes que busca algo que jamais encontrará: o prazer da própria companhia. Aquele que caminha junto de si, independentemente da idade, mas respeitando as novas exigências, segue em paz consigo.

É preciso mudarmos as nossas referências para que possamos mudar o nosso comportamento.

A idade avança e com ela conquistamos dois valiosos passos que somente as pernas mais cansadas poderiam alcançar: a experiência e a autonomia. Apesar de o mundo dizer o contrário. Não há como alcançarmos estes dois patamares de excelência antes do avançar dos relógios. A juventude que nos perdoe.

O bom de ser jovem é que o relógio está a nosso favor. Mas que também avança. A juventude é um lugar de escuta da vida. Mas, antes de tudo, um lugar de cobranças do que há por fazer. O espelho ainda mostra o viço da pele, mas antes disto, mostra o que ainda não foi feito, o que é muito mais importante do que a luminosidade de qualquer pele. Para os lúcidos, a juventude é um lugar do fazer. Dos espaços vazios que precisam ser preenchidos com vozes e com ações. Atitudes e construções.

A beleza da idade é que, apesar de o relógio caminhar mais rápido, a lucidez de saber valorizar o sol da manhã e da tarde é vívida e presente. O avançar do tempo traz de presente a nossa presença no hoje. Não no ontem e nem no amanhã. O ontem nos construiu. O amanhã nos construirá. Mas o hoje é quem possui a caneta em mãos. A lucidez da idade nos faz desviar dos vícios a caminho das virtudes. Uma valorização do tempo nasce em nós. Deixamos de participar de brigas, de correr atrás delas. As lutas passam a ser seletivas.

Vivemos oportunidades de reavaliação de nós mesmos e, consequentemente, de conceitos. Nosso núcleo de existência é o inacabamento. Somos inconclusos.

O excesso de idade não deve ser uma métrica de quem sai e de quem fica.

Quando temos a nossa arquitetura pronta, temos condições de lidar com as ideias e com o contexto da vida. E isso somente com o tempo. Não há como comprarmos atalhos para atingirmos esta arquitetura.

Buscamos somente sermos atores de protagonistas, e não atores de conquistas. Assim como fez este casal. Uma dança simples, com passos pensados, com pisadas térreas e menos aéreas, porém vivos e, acima de tudo, com vozes. Uma dança simples.

O idoso já aprendeu a se decompor, fundamental para enxergar e para acessar caminhos menos dolorosos na vida. Ele não se preocupa com coisas muito elaboradas porque já aprendeu que é a vida quem sempre dá o arremate. Esta função é dela e não nossa. O que chegou há pouco tempo aqui, ainda não dominou a arte do viver e do se decompor. Ainda briga com a vida para disputar o lugar de fala. O lugar do arremate.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Mário Sérgio Cortella, filósofo, que diz:

“quando morre um idoso, é como se incendiássemos uma biblioteca.”

Que esta biblioteca seja respeitada e que possamos ter a humildade de aprender com ela. A biblioteca guarda raridades e singularidades que busca alguma de internet será capaz de reproduzir. Portanto, há que se respeitá-la. O respeito é um dos poucos caminhos possíveis, senão o único, para que um dia, quem sabe, tenhamos a condição de montar a nossa biblioteca. Ou a nossa própria dança.

sábado, 8 de setembro de 2018

O tempo da construção

A construção é o único caminho possível para que a nossa obra aconteça e se torne real. Se não for por ele, a nossa obra será uma farsa.

Num tempo em que tudo se fotografa e pouco se vive, a nossa obra tem se tornado sinônimo desta foto, deste algo pronto, estático, acabado, entregue. Queremos chegar no final, no momento de bater a foto, seja com o celular ou com a velha e boa máquina. O meio não importa. O que importa, mesmo, é chegar após a mesa posta, após a construção concluída. O bom mesmo, é chegar no momento da foto. Assim, garantimos a falsa crença para o outro e para nós de que participamos daquele processo. Fizemos o trabalho e concluímos o trajeto.

Queremos chegar no final. Mas por que o início, a construção, tanto nos incomoda? Por que queremos uma obra desde que não tenhamos de construí-la? São perguntas cujas respostas transitam em cada um de nós. São respostas que pertencem a nós, e a mais ninguém.

Não se trata de saudosismo, tampouco apologia ao passado. Apenas uma leve desconfiança que me faz acreditar que num passado, as pessoas valorizavam mais o tempo da construção. Havia um sentido claro do porquê estou numa construção, do porquê consegui concluir uma obra. A minha percepção é de que havia mais respeito ao tempo do bastidor, assim como ao tempo da conquista e do desfrutar da obra após um período árduo de construção.

Quando se valoriza o tempo da construção, a obra se torna mais bela para os olhos de quem a vê. Contemplar, verdadeiramente, uma obra, apenas sabe aquele que levou o tempo necessário para construí-la, sem apressar a vida. Sem engolir passos e etapas.

Antes, com menos facilidades que hoje, o nosso critério de valorização das coisas, da vida, em si, era outro. A ausência de tantas facilidades nos dava apenas uma escolha: a construção. Hoje, com tantas facilidades, o nosso critério adoeceu: misturamos diversos conceitos, colocamos tantas coisas juntas, que, infelizmente, perdemos a noção do básico, do que precisa ser colocado na frente, do que vem antes, obrigatoriamente. Perdemos a noção da relevância da construção e de que, sem ela, não há obra. A construção antecede a obra. Qualquer caminho alternativo, é um pedido para se perder no trajeto. Hoje, com diversas possibilidades, ficamos confusos porque não sabemos escolher. Não aprendemos isso. Ou se nos ensinaram, talvez tenhamos saído mais cedo naquela aula.

Tantas escolhas que esquecemos como se escolhe. Perdemos a mão e o tom desafinou numa orquestra que não permite ensaios, como disse Chaplin. Vivemos tempos viciantes de novidades que nos enchem de necessidades desnecessárias. Vivemos tempos de crença no fast, no discurso de elevador, nos 120 caracteres, que, a propósito, é tudo o que este texto não tem. A capacidade de síntese é essencial. No entanto, o tempo da construção nos pede um pouco além da síntese. Há que saber quando estar de um lado, quando estar do outro. Queremos desequilibrar esta balança e ficarmos do mesmo lado: o lado da obra pronta. O lado da construção costuma ficar mais vazio e frequentado por, ainda, poucos lúcidos.

Por que queremos chegar no final? Por que queremos entrar em cena quando tudo já estiver montado? Por que queremos somente fazer os filmes importantes e de sucesso?

A construção é o início do que pode ser. É o começo de uma trajetória. A obra é a entrega do que pôde ser. É o final. A construção sem obra é uma realidade, no mínimo, de uma experiência vivida. Uma obra sozinha inexiste. Uma construção sem obras, apesar de triste, é um exercício. Uma obra sozinha é fruto de mentes alienadas.

A construção existe por si só. A obra não. Querer inverter estes papéis é se apropriar de méritos que ainda não fizemos por merecê-los.

imagem tirada da internet

Num tempo da valorização do pronto, sujar os nossos sapatos com a poeira da nossa construção soa meio fora de moda. Entrar pelas portas dos fundos, porque a principal ainda não ficou pronta, é desconfortável para nós. “Esta será a de serviços”, dizemos. E, certamente, por lá, passarão apenas os empregados: aqueles que são pagos para nos servirem.

Num tempo da valorização do rápido e do agressivo, perdemos a nossa capacidade de ouvir a vida, e de perceber que ela demarca, com sabedoria, os lugares para a rapidez e a agressividade. Ao contrário de nós, que permitimos assentos livres para eles.

O tempo da construção é sempre aquele que escondemos dos outros. É aquele tempo das quedas, das retomadas, dos ajustes, dos cálculos, dos abandonos de rotas erradas. É um tempo de relíquias descobertas. É o tempo do descortinar. Aquele tempo para soltarmos os tubarões que ficaram presos no nosso anzol, como dizia o escritor.

Um tempo de escuta, mas também de ação. Um tempo de poeira, de bagunça, de desordem, de caos. Mas se nos lembrarmos de que somos fruto deste mesmo caos, bagunça e desordem, talvez a construção comece a fazer sentido para nós e a se tornar familiar. Nada como algo conhecido para que o medo ceda lugar para a ação.

Lendo um artigo outro dia, um profissional de 26 anos diz, sem o mínimo pudor (ainda se usa esta palavra?!), que está ansioso por avançar rapidamente na carreira para chegar à Liderança. “Quero ter uma equipe”, disse ele.

Lendo isso, me lembrei dos tubarões presos em cada anzol que nos pertence. E como vão cheios. Este rapaz deve ter muitos deles presos. Não há como querer ter uma equipe, sem antes ser uma equipe, saber o que seja uma equipe. Esta nossa mania de inverter a posição dos verbos ainda vai nos levar de volta para o lugar de onde nem saímos. Novamente, o tempo da construção é um tempo vazio de integrantes. Aonde estão quase todos? Do lado de lá, da obra pronta, do momento do enter, do momento da foto, do momento do like.

Numa sociedade aonde o verbo ter vem antes do ser, há muito trabalho. Muitos tubarões a serem soltos. Mas como estão lá há tempos, talvez tenham já se acostumado aos nossos anzóis. E, de verdade, creio que teremos trabalho para soltá-los. É preciso lembrar que os animais também têm voz. E se resolverem não soltar os anzóis que os prendem, faremos companhia uns aos outros. Como estamos acostumados a isso, não será difícil a caminhada.

O tempo da construção é o primeiro grande presente da vida. Mas como somos ingratos, o presente está lá, ainda por abrir. Aqueles que tiveram a coragem de abri-lo, já vão na nossa frente, e se nos demorarmos, os perderemos de vista. Como os anzóis destas pessoas vão livres, a caminhada deles se torna mais rápida. Um rápido eficiente, e não um rápido para caber num discurso de elevador que servirá para nos vendermos a desconhecidos. E não num discurso vazio de 120 caracteres, apenas para dizermos “presente”, nas redes sociais. Não um fast para atrapalhar toda a nossa digestão, e pior, nem saber o que comemos.

Fazemos um papel, mas já queremos ser a Fernanda Montenegro. Fazemos uma viagem de uma semana, e dizemos que conhecemos o local. Sabemos a manchete, e nos dizemos atualizados. Fazemos um curso de três meses, e nos dizemos fluente no inglês. Passamos alguns parcos meses num determinado cargo, e dizemos que somos generalistas.

Até ontem, éramos ilustres e velhos desconhecidos uns dos outros. Hoje, por causa das redes sociais, nos achamos o Woody Allen porque temos um canal no YouTube. O primeiro computador criado data da década de 40 do século passado, e nos valorizamos por saber usá-lo? É isso mesmo?! Chegamos aqui com tudo pronto. Acredito que saber usar seria o mínimo. Somos fluentes nas redes sociais. Quem, de verdade, deveria se vangloriar: o criador ou o simples usuário? Parece-me que ainda não sabemos esta resposta. Por isso, os nossos tubarões insistem em não desistirem da gente.

Por que nos orgulharmos tanto que os nossos filhos, ao se aproximarem da televisão, fazem menção ao touch? Eles nasceram nesta tecnologia. É natural agirem desta forma. Se nos orgulhamos por sabermos usar, o que dirá, então, dos criadores? O mais irônico é que eles vão bem a nossa frente, não os ouvimos. O prazer deles está na construção, no servir. Por isso a estrada deles é mais transparente e linear, e com anzóis livres.

Somos direcionados para modelos pré-estabelecidos. Estamos distantes de algumas discussões. E penso que esta é uma delas. O tempo da construção é o tempo necessário que precisaríamos viver para percebermos o valor dele. É ele quem nos recoloca nos trilhos, nos reconduz à lucidez perdida quando nos achamos o Steve Jobs da tecnologia ou algum outro mestre da nossa História, que há muitos. O tempo da construção nos dá o sentido real do caminho a ser seguido. Ele apara as nossas arestas, nos retira dos excessos, nos dá medidas que perdemos quando ficamos só do lado da obra pronta. Mostra-nos o nosso tamanho.

Há coisas tão entranhadas na gente, que nem percebemos. O caminho da obra pronta e da foto é gratificante, mas apenas para aqueles que construíram, verdadeiramente, aquele caminho, cujos anzóis vão vazios e livres. E o melhor: estes mesmos anzóis não servem mais para prenderem tubarões. Eles possuem, agora, outro propósito, outra utilidade.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma frase do Budismo que diz:

“Deus nem sempre está dentro do Templo.”

Desconfio que ele está na construção, por isso não o encontramos com facilidade, no Templo. Mas como insistimos em bater uma foto apenas do Templo, como queremos estar sempre lá, porque esta é a obra pronta, creio que este nosso encontro com Deus será difícil. Para encontrá-lo, somente sujando nossas botas, nossas roupas e nos sujeitando a desarrumar os nossos penteados ao passarmos por debaixo de fios e tapumes. Neste momento, e sem pressa de sairmos desta construção, talvez a gente o encontre. E a partir desta hora, o Templo fará todo o sentido para nós. Enxergaremos o real valor dele e ganharemos talvez o segundo grande presente da vida: o merecimento, real, de estarmos lá.

domingo, 2 de setembro de 2018

O que dizem as nossas arestas

O título deste texto poderia conter um ponto de interrogação, e assim, ele se tornaria uma pergunta. Mas colocar um ponto de interrogação significa que um questionamento nos está sendo feito. Evidencia que a vida nos colocou num lugar de devedor de uma resposta. Ou a gente mesmo se colocou neste lugar. Tanto faz. O fato é que o ponto de interrogação descortina uma pendência, algo a ser feito: uma resposta precisa ser dada.

Perguntas são sempre imprescindíveis e necessárias para compreendermos a vida. Mas penso que a reflexão antecede a pergunta. E por vir antes, se torna muito mais incômoda do que qualquer pergunta. Reflexões exigem ausência de pontos de interrogação. Sem perguntas para que o convite à reflexão possa ser visto.

Uma pergunta, por mais constrangedora e invasiva que seja, é sempre um lugar que nos permite questões, dúvidas, defesas e provarmos, se for o caso, que o que dizem não é verdadeiro. O lugar da pergunta nos permite um certo tráfego, um caminhar, um construir. De repente, estamos sendo questionados sobre algo cujo conteúdo desconhecemos ou não nos pertence. Algo sobre o qual não seja verdadeiro. Quem disse que temos arestas, por exemplo? O lugar da pergunta é o trajeto da montagem, do empilhamento de materiais da nossa própria obra. Podemos mudar coisas de lugar, errar, falhar, esquecer, perguntar. E até descobrir que temos arestas, por que não?

O tempo da interrogação é um tempo sem pressa. Temos direito a ele. É o lugar que ocupamos quando aceitamos a nossa condição de aprendizes. Desconfio que deveríamos passar mais tempo neste lugar, mas outros lugares reclamam, também, a nossa presença.

E um destes lugares é o da reflexão. Um lugar atemporal, necessário e um dos grandes presentes da vida, mas que insistimos em deixá-lo fechado porque o embrulho está muito bonito para ser desfeito.

Apenas chegamos a uma pergunta porque fizemos uma reflexão anterior. Antes de qualquer questionamento que tenhamos feito na vida, certamente uma reflexão, mesmo sem ter sido percebida, foi feita por nós. Não há como questionar algo sem um pensar inicial.

A reflexão sobre é o condutor para a pergunta. Nossas perguntas são o resultado das nossas reflexões. Só caminhamos porque estamos mergulhados neste ciclo: reflexões e perguntas.

Este ciclo se alimenta da nossa vivência, das nossas experiências, do que escolhemos e deixamos de escolher e, acima de tudo, da dinâmica de vida que optamos e criamos.

Reflexões que nos induzem a perguntas. Perguntas que nos induzem à mudança. Mudanças que nos induzem ao crescimento. Crescimento que nos induzem à retomada do nosso lugar.

Um viver de muito trabalho. Um trabalho imenso para se viver. Um caminho de asfalto refeito, de árvores plantadas e com pássaros nos galhos. Um céu que brilha sem nuvens, grama fofa e úmida, um cheiro bom de mato. Um caminho de buracos, de rotas tortuosas, visibilidade ruim e de sinalização precária. Um caminhar de exigências leves e pesadas, mas que as ferramentas todas nos foram dadas. Um viver que nos exige coragem para ouvir as nossas perguntas e as que nos são feitas pela vida, esta mesma vida dos pássaros que cantam e a das rotas tortuosas.

Até agora falei sobre a reflexão como uma ferramenta de indução à pergunta. Este é um dos aspectos da reflexão: nos provocar e nos incomodar a cerca de nossas certezas. Há, no entanto, um outro aspecto das reflexões que é quando elas se bastam. Ou seja, não nos encaminham para perguntas. Elas são tão completas e exaustivamente respondidas pela vida, que não há a necessidade de perguntas. E se mesmo assim as fazemos, será porque queremos insistir na desistência de crescermos e de que, com isso, não assumirmos as responsabilidades que nos cabem.

Estas reflexões, por serem desprovidas de pontos de interrogação, escancaram, para nós, certezas e afirmativas que, por meio de esforços cansativos e precários, tentamos esconder. Elas nos mostram caminhos claros e extremamente bem sinalizados. Mas que teimamos fazer de conta que não percebemos. Estas reflexões não necessitam de perguntas. São óbvias. Talvez por isso elas sejam colocadas de lado. Como não há espaço para perguntas, o que fazer com elas? Porém, a insistência na não observância do óbvio nos traz dores que nos conduzem aos vícios. Não apenas o vício material, mas o moral, que é o pior de todos.

Quando estamos viciados, nos desviamos do objetivo que é o da reflexão, que é o de ouvir o que a vida está nos dizendo. E viciados, nos deformamos. Saímos da nossa forma, daquilo que poderíamos ser se não fosse a nossa insistência no contrário, no ausente, na surdez. E aí deformados, sentiremos dores que nos farão querer sair daquele estado que a gente mesmo se colocou. Sem vitimização. Sem culpar o outro.

O objetivo das dores é, exclusivamente, o da nossa reabilitação. Mas se conseguíssemos aceitar as reflexões que se bastam, fazer as reflexões que nos levam às perguntas e caminhar com atenção pela estrada, seja ela com pedras ou não, talvez as dores desistissem da gente, ou se transformariam em companheiras mais prazerosas. Mas é claro que a gente chega lá. O amanhã é um lugar que pode ser hoje. Para isso, é preciso o nosso arregaçar de mangas. De mangas erguidas, a caminhada fica mais fácil.

O caminho percorrido por nós é sempre uma escolha que passa por nós. Há os dedos dos outros. Mas a mão que pesa mais sobre o caminho é sempre a nossa. Quando aceitarmos isso, talvez nossa jornada se torne mais leve e com tempo para observarmos os pássaros que vão nas árvores. Estão todos lá. Eles nos enxergam. Mas poucos de nós os veem.

Nas reflexões que nos induzem às perguntas, um momento de construção, de não saber. Um espaço de criação de dúvidas, de remodelagens. Nas reflexões que se bastam, o não saber perde força. Aqui, as reflexões estão seguras de si e qualquer pergunta seria um excesso. E lidar com excessos é sempre perigoso.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pequeno diálogo entre Michelangelo e uma pessoa, do livro Maktub, de Paulo Coelho:

- Michelangelo, como você faz para criar obras tão magníficas?

- É muito simples, respondeu Michelangelo. Quando olho um bloco de mármore, vejo a escultura pronta dentro. Tudo o que tenho de fazer é retirar as arestas.

Genialidade à parte do pintor italiano, que tantas obras maravilhosas realizou, enxergar a obra pronta dentro de um bloco de mármore é tarefa para poucos. Infelizmente, para a maioria de nós, a obra pronta está invisível devido às arestas que tornamos cada vez mais visíveis.

Nossas arestas são uma simbologia das reflexões que se bastam. Nossas arestas não deixam dúvidas, não nos induzem a perguntas. Elas existem e nos preenchem. Mas que nossos olhos, muitas vezes, medrosos, viciados e teimosos não percebem. Se elas nos induzissem a perguntas seria mais fácil, porque das perguntas não podemos fugir. São visíveis e percebidas com facilidade. No entanto, as reflexões que se bastam são irônicas, autossuficientes, independentes. Não nos fazem perguntas. Pelo contrário: nos trazem espelhos ao invés de perguntas.

A autossuficiência das nossas arestas nos mostra que há muito o que fazer, há muito o que descortinar em nós. Nossas demandas são muitas. É preciso foco para darmos conta de tudo. As arestas nos dão as informações que precisamos para nos tornarmos mais. Sem estas informações, perderíamos as nossas capacidades de discernimento. É preciso transparência para lidarmos com as nossas arestas e humildade para reconhecê-las, assim como fez Michelangelo. Somente um gênio, como ele, para reconhecer que há uma obra pronta, no caso, a gente mesmo, mas que, antes disto, muito trabalho há que ser feito, como o principal que é aparar todas as arestas.

Arestas: uma reflexão que se basta. Não necessita de explicações. Não faz perguntas. Mas apenas a sua simples existência a torna tão complexa. Se “conseguirmos desbastar as nossas paredes brutas para que uma grande obra seja libertada”, como disse Michelangelo, teremos conseguido ser a melhor construção de nós mesmos. E isso apenas aparando as nossas arestas. Sem perguntas. Elas não serão necessárias aqui.

Arestas: uma reflexão que se basta. Quando decidirmos desbastá-las, nos redescobriremos na nossa própria companhia. Agora uma companhia mais leve, com tempo para apreciarmos os pássaros nas árvores, além da bela obra que teremos construído: nós mesmos.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

O encurtador de caminhos

A nossa história nos levou e nos trouxe para o lugar no qual estamos. Num breve e necessário passeio dentro de nós, porque sempre estamos sem tempo para isso, ficamos assistindo ao que acontece. Por ser este passeio dentro da gente, a inércia, a passividade e a imobilidade tomam conta e, assim, nos tornamos invisíveis. Quando conhecemos, de forma clara, o nosso próprio conteúdo, tornamo-nos. E quando passamos a utilizar este nosso conteúdo, ele passa a ter significado e a firmar compromissos com a vida. No entanto, toda esta trajetória precisa de trabalho, dedicação, renúncia e esforço.

Observar o que vai em nós, de um lugar privilegiado (de dentro de nós mesmos), num mundo cujo estágio e incompletude ajudamos a construir. Este é o mínimo que devemos para a vida.

De qualquer parte de dentro de nós, a distância e a visão serão as mesmas. Não adianta buscarmos o melhor lugar: não há distâncias e uma ‘melhor visão’ para aquele que iniciou o traçar de rotas. A escolha por criarmos, em nós, um mundo-organizado denunciará nossa insensatez e a nossa desfaçatez. Somos denunciantes de nós mesmos. Não precisamos do outro para nos denunciar.

Há diversos encurtadores de caminhos: os bons, como um livro, um conselho, um braço, um apoio, um sorriso, um perdão, e os maus, como o braço encolhido, a difamação, o passar na frente do outro por diversos motivos. Estes são apenas alguns. Mas há vários. Encurtadores de caminhos sempre encurtam os nossos caminhos: a questão é saber escolher o encurtador que queremos. E dependendo da nossa escolha, o que viveremos será posto a nós.

No domingo, dia 12 de agosto, a Bienal do Livro encerrou as suas atividades. Foram 663 mil visitantes. Muitos livros vendidos. Muitas editoras satisfeitas com as vendas. Como diz o Professor e Historiador Leandro Karnal, “há esperança quando ainda encontramos livrarias cheias”. E a Bienal foi um exemplo disto. No entanto, esta marca de quase 700 mil visitantes não significa que somos leitores, que lemos ou que permitimos ser impactados pelos livros.

Deixar-se ser impactado por um livro significa, entre tantas coisas, impactar a nossa própria vida, nosso próprio comportamento. Nossas atitudes refletem, ou não, o acesso às informações e ao conhecimento que tivemos na vida. Ler um livro significa uma possibilidade de nos tornarmos melhores.

Lotamos a Bienal: mas o que estávamos fazendo, de verdade, lá? Muitos para, de fato, lerem. Outros para aproveitarem esta oportunidade de contato com a cultura. Outros para apenas falarem aos outros que foram e passarem uma imagem de cultos. E outros para apenas passearem, sem compromisso com o livro, em si.

O Instituto Pro-Livro, em pesquisa realizada em 2017 com 5 mil pessoas, trouxe informações relevantes para a nossa reflexão. Apenas algumas:

- as pessoas que se consideram leitoras frequentes leram quatro livros nos últimos três meses. Porém, apenas dois livros do começo ao fim;

- 43% dos entrevistados disseram que não leram por falta de tempo; 28% por não gostarem de ler, e 13% por não possuírem paciência para a leitura (!);

E em outra pesquisa, agora pelo Banco Mundial, diz que o Brasil demorará 260 anos para atingir os níveis educacionais de países desenvolvidos em leitura. De verdade, uma marca inatingível.

E 30% dos brasileiros nunca compraram um livro, na vida. Triste realidade. Uma realidade que criamos e que nos pertence.

Estes números nos distanciam, e muito, do ideal. Por isso ainda nos demoraremos em atitudes que nos atrasam. Um atraso alienante e pernicioso que nos dificulta enxergarmos um dos nossos grandes encurtadores de vida: o livro. Isto nos explica muito.

Ao mesmo tempo que a pesquisa nos mostra a nossa realidade, imensas filas são formadas do lado de fora, próximas aos portões de acesso à Bienal. Uma confusão no trânsito, desrespeito às regras, tráfego pelo acostamento, ultrapassagem do sinal. Mas um comportamento, em especial, me chamou a atenção: muitos carros começaram a fazer uma conversão proibida. Assim, ‘furaram’ a imensa fila que havia se formado para acesso aos portões. Ao invés de estes carros irem até o fim da fila que se formava, como fizeram a conversão aonde não podia, ‘economizaram’ um enorme tempo e passaram na frente de muitos carros. Ironias à parte, obviamente não havia fiscalização. E ironias bem à parte, eles estavam indo para uma festa literária, para um local aonde se vende e conquista conhecimento.

Somos contraditórios por excelência. A caminho de uma festa com livros, acabamos por ser barrados na porta devido ao nosso analfabetismo moral.

Após ver aquela imensa fila de veículos que burlava o trânsito, o fato de não sermos leitores começa a fazer sentido. Ler não é apenas abrir um livro e decodificar e decifrar palavras. É, acima de tudo, ser cúmplice de um conhecimento que nos fará maiores. É assumir um compromisso com a escalada de degraus impostos pela vida. O que burla o sistema, desconhece este compromisso.

A cidadania sofre de ausência. Nossas contradições nos explicam e justificam a nossa posição. Se estamos em degraus inferiores é porque nos colocamos lá.

Monteiro Lobato dizia que “um País se faz com homens e livros”. Uma provocação incômoda. E vendo aquela imensa ausência de ética, me lembrei dele. Realmente um País se faz com homens e livros. Os livros estavam lá, na Bienal, a nossa espera. Mas e os homens? Aonde estão? Certamente Monteiro Lobato se referia a outros homens, e não àquele homem cuja consciência, há tempos, se retirou e dorme.

Uma leitura é sempre um transitar por ruas cuja trajetória nos atinge. É permitir ouvir histórias que, sozinhos, não seríamos capazes de construir. Ler é reconhecer-se num mundo que deveria ser melhor construído por nós. Um convite para ceder lugar para o conhecer. A ignorância, envergonhada, retira-se.

O livro é uma possibilidade. A ignorância é um fato. É preciso trabalho para ler um livro e se construir por meio dele. A ignorância nos é dada, gratuitamente, sem trabalho. Mas não enxergamos isto porque temos dificuldades para dobrarmos as nossas esquinas e passarmos a habitar em nós.

Somos vítimas das nossas próprias manobras. É preciso dispor de tempo para nos tornarmos aptos a habitarmos em nós mesmos. Nossas velhas e boas questões que vão nas nossas margens e as que vão no nosso centro. Como nos carimbamos?

A medida que as filas aumentavam, agravadas pelo burlar das regras, um esboço do que vai em nós e do que justifica as nossas distâncias se formava. Cenas tristes, mas que poucos viam.

O desrespeito nos emudece. Por isso, o mal avança.

Ler é transitar por mundos ausentes e presentes. Mas como fazer parte desta obra se não aprendemos a transitar dentro de nós mesmos? Como fazer uma reflexão, uma mudança real, até 120 caracteres? Mais que isso é cansativo, não temos tempo. Por isso, talvez, a conversão proibida seja tão convidativa.

Ler é uma prática e não um hábito. Hábito, um ato mecânico; prática, algo construído que nos exigiu passos.

A conversão proibida nos convida a reconhecer do que somos feitos, e a conhecer quais são os nossos recortes que passam, obrigatoriamente, pela educação como um instrumento de formação de cidadãos plenos. Ninguém aprende o que não tem significado. Quando interajo ajudo a construir. É preciso, portanto, construir o valor e o significado de não burlarmos as conversões proibidas. Uma pequena simbologia do tanto que ainda nos falta caminhar.

A leitura nos torna capazes de identificar nossas fraudes. Somos seres inacabados. Ler um livro é uma das formas de nos contornar, de nos dar um desfecho digno e honesto. A leitura nos faz melhores. Pelo menos, esta sempre foi a proposta. Inclusive da Bienal.

Quando fazemos as conversões proibidas, nos revelamos como os incompatíveis do caminho. Com este tipo de atitude, damos as mãos para as traças que vão em nós. E são muitas. Elas costumam se acomodar em lugares parados que há tempos não são visitados. Como não temos paciência para o desconhecido, no caso, nós mesmos, as traças vão se avolumando até o dia que tomam conta do espaço e já não o reconheceremos mais, e nem a nós mesmos.

Precisamos estudar as nossas imperfeições se quisermos combatê-las. Quem sabe, assim, passaremos a enxergar as placas de conversões proibidas? Vamos nos acumulando e perdemos a chance de nos visitar com frequência e assiduidade.

Acredito que passamos por tempos nos quais estamos vivendo, porém, não existindo. Não estamos sabendo existir. Para sabê-lo, é preciso enxergar a placa de conversão proibida. E, sem reclamar, pegar o final da fila e fazer toda a caminhada, passo a passo. É preciso saber que atalhos, com raríssimas exceções, atrasam os passos.

Atalhos são, muitas vezes, armadilhas à caça dos rebeldes e dos vaidosos que, orgulhosos, nem percebem que acabam de alongar, ainda mais, a sua lista de ajustes necessários a realizar. Tarefa intransferível e inadiável. Sem isso, nos tornamos reféns de nós mesmos.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação do Pequeno Príncipe, que diz:

“o deserto é belo porque, em algum lugar, ele esconde uma fonte”.

Reconhecer o deserto que vai em nós é uma arte, uma forte lição de humildade e de resignação. Não há como brigar com ele. Certamente não venceremos esta batalha. A melhor forma de lidarmos com os nossos desertos é irmos em busca de nossas fontes. Porque elas existem. E estão a nossa espera. Para encontrá-las, será necessário caminhar por toda a fila. Não há outro caminho, mesmo que estejamos indo somente para uma Bienal de Livros.

Apenas reconhecendo os nossos desertos e ouvindo o que eles têm a nos dizer, nossas fontes se tornarão visíveis para nós. E vendo as nossas fontes, caminhar por extensas filas, desde o início delas, não será mais problema para nós. Talvez neste dia, as filas não farão mais parte da nossa realidade porque teremos, finalmente, entendido, que elas tentavam, a todo momento, nos encaminhar para as fontes, nossos únicos e verdadeiros caminhos.