domingo, 3 de janeiro de 2021

Natal adormecido

Para este texto, parto de um verso da música “Happy Christmas”, de John Lennon, que diz:

“So this is christmas
And what have you done?
Another year over
And a new one just begun”

Cuja tradução nos diz:

“Então é Natal
E o que você fez?
Mais um ano acabou
E um novo apenas começou”

Aonde estávamos antes da chegada do novo Coronavírus? No mesmo lugar de sempre: na guerra. Aonde mais poderíamos estar se a escolha tem sido esta? No início de 2020, países como Estados Unidos, Rússia e Arábia Saudita discutiam questões sobre o preço do petróleo. Esta guerra de preços derrubou as principais cotações do petróleo e afetou, fortemente, o mercado de ações, prejudicando a todos. Quando o Coronavírus bateu à porta, estes dois assuntos precisaram aguardar, em segundo plano, na agenda de um mundo tão organizado que cada um sabia e tinha o seu lugar.

A guerra faz sentido para nós e ainda nos alimenta. Mas por quanto tempo? Sabemos que a corda arrebenta, mas desde que não seja o nosso lado a ser esgarçado, está tudo bem. Somos frequentes frequentadores de lugares ociosos que criamos com o tempo que nos foi concedido. O alheio nos interessa. O externo ajuda a manter as aparências, aquilo que vende e que interessa. O interno, a nossa verdadeira vitrine, segue empoeirada, pouco visitada, exceto pelo silêncio e pelas isoladas paredes.

As nossas banalidades nos mantêm ativos e vivos no discurso vendido como certo. De tanto nos venderem como certo, o compramos como certo, e o mais importante: não o questionamos. Para alguém importa que não haja questionamentos e perguntas. Sem questionamentos e perguntas, não há gargalos na fila, não há aglomerações, não há expectadores amontoados. Há vendas. Há concessões. Há fluxo. Há banalidades. Pechinchas. De ocasião.

Então é Natal, e o que você fez?, nos pergunta Lennon. Lennon não traz a discussão acerca do Natal, propriamente, como uma festa do calendário, mas a conversa sobre um tempo que chegará e que, inevitavelmente, esta pergunta nos será feita: “And what have you done?”
Não se trata do Natal do calendário, mas do Natal que reservamos para que seja este tempo de esperança, de espaços para construir, de estradas limpas, de brancos nas paredes para que pinturas possam ser desenhadas. Desenhos que nos remontam e nos relembram de que somos feitos de humanidade, apesar de termos nos esquecido disto.

Num mundo como o nosso, cuja poesia é quase uma afronta, todos convivem distantes uns dos outros. Não aguentamos a proximidade porque ela traz o inerente que vai, em nós. Foi preciso adoecer para lembrar que havia saúde. Todos estão sempre, e todo o tempo, certos, cientes de seus deveres e responsabilidades. Aonde moram os loucos, então, já que vivemos numa sociedade de sãos, de divinos, de santos e de incomparáveis? Talvez saberemos a resposta perguntando a Simão Bacamarte, personagem de Machado de Assis, em O Alienista.

O Natal chegou e passou e com ele, as festas de final de ano. Um ano atípico. Mas atípico para quem? Como sãos, santos e bons, divinos e incomparáveis, lotamos lojas, praias e ruas desconsiderando e desprezando os avisos sobre a correnteza, sobre a areia movediça que nos espreita e sobre o vulcão que dorme, mas que se deleita em acordar. Como loucos, agimos como os Pais dos Loucos. Queremos a autoria da loucura porque o Ser louco não nos interessa mais. A inatualidade do comportamento humano deveria ser objeto de estudo de pesquisadores que estivessem interessados na descoberta dos porquês dos retrocessos, na nossa sociedade. Somos uma sociedade que não se cansa de vender manchetes vexatórias, de atrasos e de atestados de óbitos.

Sim, o Natal chegou. Mas o que comemoramos? A vida. E se deveríamos comemorar a vida, por que não a preservamos? Por que temos ido ao encontro da morte? Porque a vida tem perdido o sentido e o valor. De tanto ela se doar a nós, não a valorizamos mais. Porque o que se perde desrespeitando a vida, se ganha acreditando na morte. Ela nos convence de que nos restituirá a face por meio da embriaguez. Porque os perigos perderam ou nunca tiveram acesso ao nosso endereço, apenas possuem o endereço dos outros. Somos os melhores. Somos os sãos. Somos os santos. Somos os bons. Somos os escolhidos. Somos os justos num mundo de pecadores. Como temos as chaves, não temos medo das portas cerradas.

“Então é Natal
E o que você fez?
Mais um ano acabou
E um novo apenas começou”

O que fizemos além da guerra? O ano acabou, e 2021 começou. Mas como começar se não soubemos encerrar? Como iniciar se a receita para continuarmos devedores é privilegiada? Qual tem sido o nosso inventário? Quanto mais temos, mais queremos. Porque o que temos já não temos. Porque quando os recebemos, já estávamos querendo outras coisas. Para o lúcido, é desesperador um terminar de ano porque sabe-se que a pergunta será feita: “And what have you done?” Mas aonde estão os lúcidos, se a maioria está na praia, na ladeira Porto Geral comprando enfeites para a árvore de Natal, ou na festa clandestina cujas janelas são camufladas para se dispersar o barulho e a polícia?

Não deixe a guerra começar...não deixe a guerra começar..., mas ela já começou. Há tempos. Chegamos, para variar, atrasados. Mas tudo bem. Nossos nomes estão na lista de convidados. Deixarão a gente entrar. Que alívio. O caminho não tem sido em vão. O tempo perdido não existe, só para a Legião Urbana. Enxergamo-nos, agora, como crianças inocentes. Somos vítimas de criações alheias. Somos personagens de histórias, cuja autorização não demos para que fôssemos expostos.

“And what have you done?” Se eu pudesse falar com Lennon, pediria a ele licença para trocar o you pelo we: assim, a culpa sairia do meu ombro, do seu, e iria para o nosso. Ficaria mais leve, desta forma? Mas Lennon não está mais aqui, e a pergunta deverá permanecer em caráter individual.

O discernimento pede adiamento de festas, de encontros, para que não haja o choro em parceria com a chegada do nosso IPTU. A responsabilidade pede distanciamento social, para que não haja o distanciamento definitivo e o pior: sem despedidas. Mas quem se importa? Os que entenderam, entenderam. E os que não entenderam, não quiseram entender. O ego ri enquanto a nossa essência apodrece. Não por falta de oportunidade. Não por falta de chance. Não por falta de ferramenta para fazer. Abrimos mão. Agora é pagar a conta.

A coerência pede cautela e um apropriar-se da realidade criada por nós. A maturidade exige trabalho para refazer caminhos infelizes que saudamos. Mas como pedir que loucos e insanos saibam o sentido de discernimento, de responsabilidade, de coerência e de bom senso? Algo que nunca foi trilhado pode ser cobrado? Loucos podem ser poupados da conta? Restam poucos sãos. Mas é justo que eles paguem contas alheias? O que é justo num mundo cuja injustiça é a dominante?

Jesus não nasceu no Natal. Dia 25 de dezembro é um dia comum, como todos os outros. Mas vale a memória que este dia representa: o renascimento, a esperança, a luz. Quem vem? And what have you done? O que você tem feito?

Nossas esquinas têm nos dito muitas coisas, mas evitamos dobrá-las. Coisas vão escritas em nossas consciências para nos ajudarem a retomar o caminho, mas os anúncios, há tempos, estão descascados. Uma pena. Estamos tendo, e sempre tivemos, a chance de abrirmos mão da opulência, da ganância, do excesso, do acúmulo, da reserva morta e inútil. É preciso construir um pensamento novo, um pensamento de reforma. And what have you done?

O que temos feito além de atrapalharmos as obras que precisam ser concluídas? Olhamo-nos nos espelhos e não nos enxergamos de forma nítida porque a deformação tem sido o nosso modelo. Temos sido mestres na arte de aperfeiçoar perdas, mas exigimos os ganhos. Temos sido premiados pelo supérfluo, pelo peso do crachá, pelo nome do nosso cargo. Nossas estantes vão repletas de estatuetas que nos foram concedidas por pessoas que nos desconhecem, mas que valorizam nosso trabalho irrelevante de perpetuação de falas de circunstâncias, porque temos preços de ocasião por sermos cambistas profissionais. Cumprimos funções gastas atrás de um balcão que negocia. Uma pena. Mas há aqueles que vão longe. Abanam as mãos na esperança de nos alcançar. Enxergaremos?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Clarice Lispector, que diz: “Um amigo me chamou para cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui.”

Que a gente saiba reconhecer o acordar deste Natal adormecido, no qual esteve, em 2020. Não um acordar literal, ou seja, no dia 24 e 25 de dezembro de 2021. Mas um acordar simbólico que se dará porque teremos, pelo menos iniciado, ouvir a dor do nosso amigo. Um acordar porque teremos guardado a nossa dor um pouco no bolso. Não por desvalorizarmos a nossa dor, a nossa ferida, mas por termos começado a compreender que só somos porque há o outro. E o outro só é porque é uma extensão nossa. Com dores reconhecidas, em mim e em você, e no outro, o nosso Natal poderá, enfim, recobrar a vigília e o despertar.

Um ano acordado para todos nós.