Para este texto, parto de um
verso da música “Happy Christmas”, de John Lennon, que diz:
“So this is christmas
And what have you done?
Another year over
And a new one just begun”
Cuja tradução nos diz:
“Então é Natal
E o que você fez?
Mais um ano acabou
E um novo apenas começou”
Aonde estávamos antes da chegada
do novo Coronavírus? No mesmo lugar de sempre: na guerra. Aonde mais poderíamos
estar se a escolha tem sido esta? No início de 2020, países como Estados
Unidos, Rússia e Arábia Saudita discutiam questões sobre o preço do petróleo. Esta
guerra de preços derrubou as principais cotações do petróleo e afetou,
fortemente, o mercado de ações, prejudicando a todos. Quando o Coronavírus bateu
à porta, estes dois assuntos precisaram aguardar, em segundo plano, na agenda
de um mundo tão organizado que cada um sabia e tinha o seu lugar.
A guerra faz sentido para nós e
ainda nos alimenta. Mas por quanto tempo? Sabemos que a corda arrebenta, mas
desde que não seja o nosso lado a ser esgarçado, está tudo bem. Somos
frequentes frequentadores de lugares ociosos que criamos com o tempo que nos
foi concedido. O alheio nos interessa. O externo ajuda a manter as aparências,
aquilo que vende e que interessa. O interno, a nossa verdadeira vitrine, segue
empoeirada, pouco visitada, exceto pelo silêncio e pelas isoladas paredes.
As nossas banalidades nos mantêm
ativos e vivos no discurso vendido como certo. De tanto nos venderem como
certo, o compramos como certo, e o mais importante: não o questionamos. Para
alguém importa que não haja questionamentos e perguntas. Sem questionamentos e
perguntas, não há gargalos na fila, não há aglomerações, não há expectadores
amontoados. Há vendas. Há concessões. Há fluxo. Há banalidades. Pechinchas. De
ocasião.
Então é Natal, e o que você
fez?, nos pergunta Lennon. Lennon não traz a discussão acerca do Natal, propriamente,
como uma festa do calendário, mas a conversa sobre um tempo que chegará e que,
inevitavelmente, esta pergunta nos será feita: “And what have you done?”
Não se trata do Natal do calendário, mas do Natal que reservamos para que
seja este tempo de esperança, de espaços para construir, de estradas limpas, de
brancos nas paredes para que pinturas possam ser desenhadas. Desenhos que nos
remontam e nos relembram de que somos feitos de humanidade, apesar de termos
nos esquecido disto.
Num mundo como o nosso, cuja
poesia é quase uma afronta, todos convivem distantes uns dos outros. Não
aguentamos a proximidade porque ela traz o inerente que vai, em nós. Foi
preciso adoecer para lembrar que havia saúde. Todos estão sempre, e todo o
tempo, certos, cientes de seus deveres e responsabilidades. Aonde moram os
loucos, então, já que vivemos numa sociedade de sãos, de divinos, de santos e
de incomparáveis? Talvez saberemos a resposta perguntando a Simão Bacamarte,
personagem de Machado de Assis, em O Alienista.
O Natal chegou e passou e com ele, as festas de final de ano. Um ano atípico.
Mas atípico para quem? Como sãos, santos e bons, divinos e incomparáveis, lotamos
lojas, praias e ruas desconsiderando e desprezando os avisos sobre a
correnteza, sobre a areia movediça que nos espreita e sobre o vulcão que dorme,
mas que se deleita em acordar. Como loucos, agimos como os Pais dos Loucos. Queremos
a autoria da loucura porque o Ser louco não nos interessa mais. A inatualidade
do comportamento humano deveria ser objeto de estudo de pesquisadores que
estivessem interessados na descoberta dos porquês dos retrocessos, na nossa
sociedade. Somos uma sociedade que não se cansa de vender manchetes vexatórias,
de atrasos e de atestados de óbitos.
Sim, o Natal chegou. Mas o que
comemoramos? A vida. E se deveríamos comemorar a vida, por que não a
preservamos? Por que temos ido ao encontro da morte? Porque a vida tem perdido
o sentido e o valor. De tanto ela se doar a nós, não a valorizamos mais. Porque
o que se perde desrespeitando a vida, se ganha acreditando na morte. Ela nos
convence de que nos restituirá a face por meio da embriaguez. Porque os perigos
perderam ou nunca tiveram acesso ao nosso endereço, apenas possuem o endereço
dos outros. Somos os melhores. Somos os sãos. Somos os santos. Somos os bons.
Somos os escolhidos. Somos os justos num mundo de pecadores. Como temos as chaves,
não temos medo das portas cerradas.
“Então é Natal
E o que você fez?
Mais um ano acabou
E um novo apenas começou”
O que fizemos além da guerra? O
ano acabou, e 2021 começou. Mas como começar se não soubemos encerrar? Como
iniciar se a receita para continuarmos devedores é privilegiada? Qual tem sido
o nosso inventário? Quanto mais temos, mais queremos. Porque o que temos já não
temos. Porque quando os recebemos, já estávamos querendo outras coisas. Para o
lúcido, é desesperador um terminar de ano porque sabe-se que a pergunta será
feita: “And what have you done?” Mas aonde estão os lúcidos, se a maioria
está na praia, na ladeira Porto Geral comprando enfeites para a árvore de
Natal, ou na festa clandestina cujas janelas são camufladas para se dispersar o
barulho e a polícia?
Não deixe a guerra
começar...não deixe a guerra começar..., mas ela já começou. Há tempos. Chegamos,
para variar, atrasados. Mas tudo bem. Nossos nomes estão na lista de convidados.
Deixarão a gente entrar. Que alívio. O caminho não tem sido em vão. O tempo
perdido não existe, só para a Legião Urbana. Enxergamo-nos, agora, como
crianças inocentes. Somos vítimas de criações alheias. Somos personagens de
histórias, cuja autorização não demos para que fôssemos expostos.
“And what have you done?”
Se eu pudesse falar com Lennon, pediria a ele licença para trocar o you
pelo we: assim, a culpa sairia do meu ombro, do seu, e iria para o
nosso. Ficaria mais leve, desta forma? Mas Lennon não está mais aqui, e a
pergunta deverá permanecer em caráter individual.
O discernimento pede adiamento de
festas, de encontros, para que não haja o choro em parceria com a chegada do
nosso IPTU. A responsabilidade pede distanciamento social, para que não haja o
distanciamento definitivo e o pior: sem despedidas. Mas quem se importa? Os que
entenderam, entenderam. E os que não entenderam, não quiseram entender. O ego
ri enquanto a nossa essência apodrece. Não por falta de oportunidade. Não por
falta de chance. Não por falta de ferramenta para fazer. Abrimos mão. Agora é
pagar a conta.
A coerência pede cautela e um
apropriar-se da realidade criada por nós. A maturidade exige trabalho para
refazer caminhos infelizes que saudamos. Mas como pedir que loucos e insanos
saibam o sentido de discernimento, de responsabilidade, de coerência e de bom
senso? Algo que nunca foi trilhado pode ser cobrado? Loucos podem ser poupados
da conta? Restam poucos sãos. Mas é justo que eles paguem contas alheias? O que
é justo num mundo cuja injustiça é a dominante?
Jesus não nasceu no Natal. Dia 25
de dezembro é um dia comum, como todos os outros. Mas vale a memória que este
dia representa: o renascimento, a esperança, a luz. Quem vem? And what have
you done? O que você tem feito?
Nossas esquinas têm nos dito
muitas coisas, mas evitamos dobrá-las. Coisas vão escritas em nossas
consciências para nos ajudarem a retomar o caminho, mas os anúncios, há tempos,
estão descascados. Uma pena. Estamos tendo, e sempre tivemos, a chance de
abrirmos mão da opulência, da ganância, do excesso, do acúmulo, da reserva
morta e inútil. É preciso construir um pensamento novo, um pensamento de
reforma. And what have you done?
O que temos feito além de
atrapalharmos as obras que precisam ser concluídas? Olhamo-nos nos espelhos e
não nos enxergamos de forma nítida porque a deformação tem sido o nosso modelo.
Temos sido mestres na arte de aperfeiçoar perdas, mas exigimos os ganhos. Temos
sido premiados pelo supérfluo, pelo peso do crachá, pelo nome do nosso cargo.
Nossas estantes vão repletas de estatuetas que nos foram concedidas por pessoas
que nos desconhecem, mas que valorizam nosso trabalho irrelevante de perpetuação
de falas de circunstâncias, porque temos preços de ocasião por sermos cambistas
profissionais. Cumprimos funções gastas atrás de um balcão que negocia. Uma pena.
Mas há aqueles que vão longe. Abanam as mãos na esperança de nos alcançar.
Enxergaremos?
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento de Clarice Lispector, que diz: “Um amigo me
chamou para cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui.”
Que a gente saiba reconhecer o
acordar deste Natal adormecido, no qual esteve, em 2020. Não um acordar
literal, ou seja, no dia 24 e 25 de dezembro de 2021. Mas um acordar simbólico que
se dará porque teremos, pelo menos iniciado, ouvir a dor do nosso amigo. Um
acordar porque teremos guardado a nossa dor um pouco no bolso. Não por
desvalorizarmos a nossa dor, a nossa ferida, mas por termos começado a
compreender que só somos porque há o outro. E o outro só é porque é uma extensão
nossa. Com dores reconhecidas, em mim e em você, e no outro, o nosso Natal
poderá, enfim, recobrar a vigília e o despertar.
Um ano acordado para todos nós.