domingo, 23 de outubro de 2016

Cuide das panelas que estão no fogo

imagem tirada da internet

Panelas são utensílios domésticos bem antigos. Sua função mais nobre é o ato de transformar, de alimentar. Elas podem ser de cerâmica, pressão, alumínio, vidro, ferro, barro, cobre e outros tipos. São instrumentos de protesto também, é verdade, mas este não é o seu papel. Pelo menos não deveria ser.

Independentemente do tipo, panelas ajudam a transformar. Ajudam a criar outro estado. Ajudam a mudar a forma.  Elas são o meio para algo. Elas são a ponte. Elas são a ferramenta que, nas mãos certas, produzem maravilhas.

Ouvi a expressão “cuide das panelas que estão no fogo” de um comentarista esportivo. Em uma determinada partida, o locutor disse esta frase referindo-se a um jogador que, apesar de não fazer muitos gols, cuidava muito bem das panelas que estavam no fogo. Disse, ainda, que se tratava de um jogador atento aos lances do jogo, dava assistências, tinha foco e visão privilegiados sobre a partida. E completou: “pois é, ele cuida das panelas que estão no fogo. Não deixa as panelas queimarem. ”

Fiquei com esta expressão na cabeça e resolvi pegá-la emprestada para escrever este texto.

Diversas são as leituras que podemos fazer sobre esta expressão. Todas estarão certas. Quando tratamos da subjetividade da vida, todas as leituras que fazemos têm o seu sentido, a sua lógica. E, portanto, não podem ser contestadas.

Cuidar das panelas que estão no fogo significa não perder a construção de vista. Quando deixamos que a vida cuide daquilo que é o nosso papel, sentimos aquele cheiro desagradável de panela queimando no fogo. Corremos para a cozinha, na esperança de salvarmos o alimento, e desligamos o fogo. Tarde demais. A comida queimou e a panela, se dermos sorte, poderá ser salva.

E por que isto aconteceu? Porque perdemos o foco e a atenção. Duas raridades atualmente. Perdemos o foco e a atenção, muitas vezes, sobre algo importante. Porque para aquilo que não importa, muitas vezes dedicamos foco e atenção. Estranhezas de nossos tempos que só cabe a nós resolvê-las.

Estar atento às panelas que estão no fogo significa, também, abrir mão de uma suposta vaidade pessoal porque, certamente, aquele que cuida das panelas no fogo não será o que vai saborear a refeição. E estar disposto a esta grandeza de espírito é um lugar que não sei se já está habitado por alguém.

Cuidar das nossas panelas e não permitir que elas se queimem é fazer as coisas com propósito e sentido. Saber o que importa e a essência. É saber que a responsabilidade de cuidar delas será sempre nossa, correndo o risco de nunca sermos reconhecidos e valorizados por isto.

Quando cuidamos bem de nossas panelas e temos atenção a todas as etapas necessárias fazemos, da vida do outro, uma vida com mais facilidades e com menos interrupções. A vida do outro, por causa do nosso cuidar, se torna mais fácil de ser vivida. Podemos apostar que sim. Mas nem sempre a nossa vida será mais fácil por causa disto. É a arte da renúncia.  E, novamente, isto não é para todos.

A renúncia somente existe no vocabulário daquele que já entendeu que servir é muito melhor que ser servido. Aqueles que já começaram a cuidar das suas panelas iniciaram o seu processo de renúncia. O seu processo de servir.

Se você está na condição de servir é porque já tem suas necessidades atendidas, ou próximo disto. É, portanto, uma pessoa mais livre. Não necessita ser servido.

Servir é um ato de superioridade. Só os despojados de inutilidades enxergam o valor disto.

Renunciar a vaidade de fazer o gol em prol de um passe para aquele que melhor está posicionado.

Renunciar o gosto de ter sempre razão para lembrar que a razão do outro também existe.

Renunciar a obsessão pelo acerto, uma vez que isto nos induz ao erro.

Renunciar é o início da verdadeira felicidade. Aquele que renuncia tem menos necessidades. Por isto é muito mais feliz.

Quem não descuida das panelas tem uma atenção que altera, coopera e transforma.

Enfim. As panelas são nossas. A cada um a responsabilidade de cuidar do que nos cabe. É preciso assumir nossas panelas para que sejamos merecedores do seu alimento.

Tempo, esforço e dedicação. Três atributos seguidos por quem iniciou o caminho. E coragem para expor o resultado do nosso cuidar, que é o que não dá para não fazer.

Cuidar das panelas é não permitir que as nossas verdadeiras questões de distanciem de nós.

Que a gente sempre consiga equilibrar os gols realizados na vida com o cuidar de nossas panelas. Os gols virão, certamente. Mas terão mais sabor se forem construídos em estradas que permitiram o uso e o cuidar de panelas.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma frase de Confúcio, pensador Chinês, que diz:

“O operário que quer fazer o seu trabalho bem deve começar por afiar os seus instrumentos. ”

Pois é, e que melhor instrumento para este começar que não nossas panelas? Mas é preciso atenção para que elas não se queimem durante a nossa trajetória.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

O Ballet que desequilibra

imagem tirada da internet

Todas as danças são belas. Não vejo exceção. Mesmo aquelas cuja sintonia não bate com a nossa, ainda assim são belas. Têm a forma, o ritmo, a beleza, a história, o esforço, o trabalho.

Acredito que a beleza da dança também se reflita, além da questão coreográfica, por conta do amor à profissão, que é visível nos artistas. Aquela vontade de estar lá. Aquela presença da alma em tudo o que é feito.

Quando a nossa alma está presente, tudo o mais se realiza.

Dançar, para estas pessoas, passa a ser mais que passos e posturas: passa a ser uma forma de expressar felicidade, portanto. E isto é para tudo na nossa vida, não somente na dança. Quando conseguimos, de fato, nos enxergar de corpo e alma naquilo que fazemos, o trabalho, a dor e o cansaço ficam, de verdade, para segundo plano. E um segundo plano raramente visitado, frequentemente esquecido.

E o ballet é uma destas maravilhosas danças. Assistir a uma apresentação desta é se deixar conduzir pela leveza, ter certeza sobre o próximo passo e seguir adiante, de preferência sem errar...a perfeição é a ordem. O equilíbrio uma necessidade.

Toda aquela elegância e postura sob os pés dos bailarinos caem por terra caso não sejam respeitadas. E o que seria belo se torna desequilibrado e desarmônico. O ballet é uma das danças cujo erro é mais notado, mais visto. Em outras danças também. Mas aqui, os passos são tão calculados que não há espaços para tentativas, desvios e disfarces.

O ballet exige uma perfeição que a própria vida ainda não aprendeu.

Estudei com uma colega, no ensino fundamental, chamada Denise. Menina calada, muito inteligente, discreta e de movimentos controlados. Esguia, magra e alta, a pergunta a ela era inevitável: “você dança ballet”? “Sim, estudo, no Teatro Municipal”. Esta era a resposta da Denise, apenas isto. Nenhum sorriso, nenhuma pista. Respostas curtas talvez sinalizando a nós, crianças curiosas, que não caberiam mais perguntas.

Ainda bem que, como crianças, muitas vezes não entendemos os sinais que nos dão. Assim nossas buscas podem continuar. Como continuaram.

A Denise não falava que “dançava ballet”, mas sim que “estudava ballet”. Este já era um forte sinal. Aquele que sente prazer no que faz se deixa conduzir pela dança, pela emoção.

O tempo foi passando e a Denise foi se ambientando mais conosco, foi gostando da nossa companhia, foi se aproximando mais da gente. Foi quando começou a dizer que não gostava de fazer ballet, mas que tinha que fazer porque seus pais assim queriam. Dizia que era uma tortura ir para o Teatro Municipal e que seus pés doíam muito. Que até achava bonito aquilo, mas que não era para ela. E quando a questionávamos sobre dizer isto a seus pais, ela era categórica: “não adianta. Eles não vão aceitar que eu pare. Eles querem que eu seja uma bailarina. ”

Como crianças, não tínhamos muito como ajudar a Denise. Mas entendíamos a sua tristeza que agora, de forma mais próxima, ela compartilhava conosco. O sonho da Denise? Ser Psicóloga. Sempre dizia isto para nós. Mas seus pais diziam que “esta” profissão não dava futuro para ninguém.

A Denise chegou a se formar pelo Teatro Municipal. Foram sete anos de estudo e de dedicação forçados. Mas sem o principal: propósito. A professora dela chegou a conversar com os pais dizendo que a Denise não tinha prazer pela dança. E os pais disseram: “sabemos o que é melhor para ela. No futuro, ela vai nos agradecer por esta bela profissão. Quantos chegam a um Teatro Municipal? ” O propósito era dos pais, e não da Denise.

Sem propósito, tudo o que é feito é em vão.

Querer que o outro seja o que ele não quer é uma agressividade silenciosa. Há agressões morais mais duras que agressões físicas. Talvez este seja um exemplo.

O tempo passou. Adulta, a Denise ingressou numa segunda faculdade: a que sempre quis. Psicóloga formada, recuperou o seu “diploma” de bailarina, empoeirado na gaveta e o entregou a seus pais como uma forma de se acertar com os seus fantasmas.

Quando lembro desta história, penso que a Denise era só uma criança tentando se encontrar no mundo. Buscava equilibrar-se nas imposições que não compreendia. Buscava reconhecer-se e conhecer suas vontades e habilidades. Mas não teve chances.

Orientação é completamente diferente de imposição. A orientação é necessária àquele que inicia o caminho, como a criança. Mas a imposição é uma tirania disfarçada de educação.

É preciso respeitar o espaço do outro para que ele possa se encontrar.

A coordenação, a simetria, a postura, as regras e a rotina do ballet somente são válidas quando fazem sentido para aquele que faz. A perfeição do ballet só é perfeita para a dança. Para a vida, é preciso mais que passos, regras e rotinas. É preciso sentido.

Por que insistimos em desviar as rotas dos outros? Por que achamos que sabemos o que é melhor para o outro? Por que calamos a voz do outro para que somente a nossa seja ouvida? Por que a opinião do outro nos agride? Por que a escolha do outro é ridicularizada? Por que nossos talentos são questionáveis aos olhos do outro? Por que precisamos trilhar rotas que não quisemos construir?

Perguntas sem respostas. Talvez não haja respostas. Talvez as perguntas sejam mais que suficientes. Ou talvez a resposta esteja dentro da pergunta...

A Denise venceu seus medos e transgrediu. Disse-nos que foi “libertador” não precisar mais “dançar” aquela dança. Ela, finalmente, compreendeu, que o verdadeiro prazer pela dança não estava naquele caminho que ela trilhava. Que o verdadeiro sentido de tudo é fazer aquilo que vai ao encontro da essência de cada um. E neste novo caminho não cabem imposições.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, trazendo um pensamento da Companhia Cisne Negro, uma das mais respeitadas escolas de dança do mundo, inclusive, de ballet, ironicamente...

“A única coisa que está em seu caminho para a perfeição é você mesmo."

Trilhar o nosso caminho, aquele que faz sentido para nós, é a verdadeira essência, é o que nos levará à verdadeira perfeição. Nós somos o caminho que nos levará a ela. Neste nosso caminho haverá pedras, percalços, buracos. Mas ainda assim será o nosso caminho, verdadeiro e único.

Aquele que faz sentido.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A nossa estrada para Damasco

Independentemente da religião e crença de cada um, a história sobre a transformação do judeu Saulo, um terrível perseguidor dos cristãos, para o Apóstolo Paulo, um dos homens mais fortes e íntegros do Cristianismo primitivo, é bastante conhecida por todos nós.

A caminho de Damasco, capital da Síria, o então Saulo tinha, como principal objetivo, matar os seguidores de Jesus. Porém, na estrada que o levava à Damasco, Saulo é cercado por uma forte luz. A confusão dos sentidos de Saulo o faz tombar de seu animal. É nesta hora que vê a figura de um homem com a fisionomia iluminada. Sob forte emoção e espanto, se dá um dos diálogos mais conhecidos do Cristianismo:

- Saulo!...Saulo!... por que me persegues? disse o homem.

E Saulo responde:

- Quem sois Vós, Senhor?

E o homem responde:

- Eu sou Jesus.

E a partir daí, Saulo se transforma num dos homens mais fiéis aos ensinamentos de Jesus, além de tomar para si a responsabilidade de levar o amor a Jesus a todos os cantos do mundo. Mais adiante, adota seu outro nome, Paulo, sendo reconhecido como o Apóstolo dos Gentios.

Esta história, mais que resumidamente contada aqui, nos traz muitas reflexões. Se nos deixarmos guiar por ela e atentarmos para as sutilezas que a simbologia “desta estrada que leva à Damasco” nos oferece, acredito que seremos surpreendidos para o bem. Se abrirmos mão dos preconceitos, por se tratar de um fato religioso, e abrirmos mão de modelos mentais ultrapassados, muito poderemos aprender. É uma questão de escolha.

Um Historiador disse, certa vez, que não acreditava que Paulo havia caído do cavalo, e que este encontro com Jesus era uma fantasia daquele que tinha fé. Para aliviar o discurso, disse que era ateu e por isso, não acreditava. Mas que gostaria de ter uma fé, “isto facilitaria bastante as coisas”, ele disse.

Apesar de acompanhar e de gostar do trabalho deste Historiador, achei sua fala muito pequena para todo o cenário apresentado. De verdade: o que importa se o Apóstolo Paulo caiu ou não do cavalo? Isto é apenas um detalhe.

Enquanto nos prendemos no que não importa deixamos de fazer o que importa.

As opiniões devem ser respeitadas, mas penso que podemos ir além. É preciso refletir sobre a nossa estrada que nos leva à Damasco. Sobre o momento da nossa transformação, em que finalmente entendemos o que está sendo pedido para nós. Deixamos de brigar com a vida, de lutar contra nós mesmos, e fazemos a pergunta:

“Senhor, o que queres que eu faça? ” Porque foi esta a pergunta que o Apóstolo fez ao ter o encontro com Jesus.

Fazer esta pergunta não significa submissão, passividade, ociosidade ou ficar de braços cruzados esperando que digam a você o que fazer: pelo contrário: significa prontidão diante à vida. Shakespeare, na peça Hamlet, traz: “estar pronto é tudo”.

Esta prontidão significa aquele incômodo que nos acomete quando sabemos que precisamos organizar algo. Significa certa dor ou frustração. E a mudança de postura é a única saída. Para tanto, é preciso estarmos prontos. Só está pronto quem já entendeu que a vida nos pede posturas e reorganizações de rota o tempo todo. Reorganizações, inclusive, para se ter a certeza de ter tomado o caminho certo. Permanecer no caminho escolhido é manter a prontidão diante à vida.

É preciso coragem para percorrermos esta estrada. Mais que isto: atenção ao que será dito lá. Atenção e prontidão. Com isto, pouco importa, de verdade, se estamos caídos ou sobre o nosso cavalo. É preciso prestar atenção ao que realmente importa.

Esta estrada faz, acima de tudo, um convite para abandonarmos o que nos impede de sermos felizes. Faz um convite para a renovação, para a mudança de patamar. Ela traz uma oportunidade para refletirmos sobre nossas escolhas e se estamos dando a melhor versão de nós mesmos, para a vida.

Ter a coragem de perseguir a nossa estrada é, acima de tudo, ter uma atitude de mudança. O convite é para todos.

É preciso renunciar ao que colabora para que sejamos piores. Acreditar naquilo que nos faz melhores. E trilhar esta estrada nos fará pessoas melhores.

Imprescindível nos colocar na condição de aprendizes, que é o que somos. Quando nos colocamos nesta condição, todos vão querer ouvir o que teremos para contar.

Deixar a vida nos conduzir. Abrirmos mão do comando e do controle que achamos que temos. Numa Empresa, por exemplo, muito raro a pessoa que não quer assumir papel de comando, devido à arrogância e à vaidade. Mas o que ela talvez não saiba é que não há comando, de verdade, sem humildade.

Comando sem humildade é presunção. Para estes, se deixar conduzir pela vida é quase uma blasfêmia. Por isto, a estrada que conduz à Damasco, para muitos de nós, ainda está longe.

Deixar-se conduzir pela estrada que nos levará à Damasco é ser reconhecido pela vida. É o verdadeiro comando. É se reconhecer diariamente. É se olhar no espelho e sentir orgulho do que vê. É acreditar na sua capacidade de resolver.

Esta estrada não é algo físico, é uma transformação interna. Ela nos obriga a rever conceitos e paradigmas. Temos nossos princípios questionados neste caminho. E por conta, muitas vezes, de nossas fragilidades e medos construídos por nós e por aqueles que ganham às custas de nossos medos, deixamos o convite da estrada para depois. É conveniente que não o aceitemos. Assim, seremos presas fáceis dos manipuladores que nem de longe sabem o que significa a estrada que leva para Damasco.

Quando estamos na estrada, nos decompomos, encontramos coisas não elaboradas, perdemos o controle. Mas como estamos prontos, conseguimos enxergar caminhos menos dolorosos para andarmos, nela, de forma mais leve. Esta estrada nos apresenta aquilo que, até então, não estava disponível para nós. E agora está! Mas para isto, é preciso estarmos prontos e aceitarmos o convite. Abrir mão do falso controle para buscar o verdadeiro caminho.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Paulo Freire, um dos grandes nomes da nossa Educação:

“É preciso partir das nossas possibilidades para sermos nós mesmos”.

A estrada que nos levará à Damasco é uma destas possibilidades que a vida nos oferece todos os dias, com ou sem cavalo. Se ousarmos aceitar o convite, certamente conheceremos a felicidade de sermos nós mesmos.

E sermos nós mesmos é bastante ousado para um mundo que privilegia, muitas vezes, que “sejamos o que o outro quer que sejamos”.