A situação se dá em Praga, a capital da República
Tcheca, início do século XX, numa exposição de pintores. Um jovem poeta tcheco chamado
Gustav Janouch comentou com Franz Kafka:
- Picasso
distorce, deliberadamente, as formas. Criticou o rapaz.
Em resposta a ele, Kafka, um dos escritores
mais influentes do século XX, respondeu:
- Picasso, o grande pintor espanhol, apenas
registrava “as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”.
Se eu fosse aquele jovem rapaz tcheco, Gustav
Janouch, abriria um buraco ali mesmo e me enterrava. Perdeu uma excelente
oportunidade de se calar. Mas ganhou uma excelente oportunidade de aprender.
Mesmo que às duras penas.
imagem tirada da internet
Nem sempre, na vida, o aprendizado vem pelo
amor. Que saibamos reconhecer isto.
Observando este diálogo entre eles, atual e
atemporal, fiquei pensando na nossa verdadeira cegueira: aquela que obscurece o
nosso olhar frente às verdades da vida, frente ao que verdadeiramente importa.
Não falo da cegueira física, esta que, infelizmente, acomete algumas pessoas.
Falo da cegueira moral que nos impede de sermos pessoas melhores, mais éticas e
justas. Esta cegueira que nos faz olhar apenas para os nossos pés, para o
caminho que caminhamos. Esta cegueira que somente nos
faz reconhecer os nossos passos e o quão eles são imprescindíveis, na nossa
opinião. Será?
Gustav Janouch ao criticar a forma como
desenhava e criava Picasso demonstra esta cegueira.
Temos o direito de não gostar de algo, de
criticar, mesmo esta crítica sendo referida a Picasso. Mas não temos o direito
de sermos arrogantes, cegos e vaidosos. Isto não.
Criticar e dizer que não gostou é exercer o
nosso direito à democracia. É exercer o nosso direito enquanto cidadãos que
somos. Mas a crítica, pela crítica, pela pura vaidade, apenas demonstra o
imenso tamanho da nossa pequenez, o imenso tamanho da nossa arrogância e da
nossa desproporcionalidade diante à grandiosidade do mundo e de suas obras. No
caso, aqui, Picasso: um dos gênios que a Humanidade teve.
É preciso saber e reconhecer o limite entre o
que é crítica, como direito de protestar, de ser contrário ao mostrado, ao
proposto, e o que é crítica baseada na arrogância, na vaidade, na prepotência
que apenas mostra o quão longe estamos.
Esta cegueira é a verdadeira que cega.
Infelizmente.
As distorções das formas, tão genialmente
pintadas por Picasso, acho que foram criadas para aquele jovem poeta. E para
todos nós, também. Apenas ainda não estamos
conscientes sobre isto.
Ouvi, certa vez, um palestrante dizer: ”o
problema do nosso ponto de vista é que ele cega a nossa vista”. Perfeito.
Aquele jovem poeta não ouviu este palestrante dizer isto, mas ele estava
acompanhado de um mestre, Franz Kafka, que soube colocá-lo no seu devido lugar
ao dizer: “...deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”.
O problema é sempre o mesmo: falta de
autoconhecimento. Como não nos conhecemos, este mesmo desconhecimento nos faz crer
que nos conhecemos. E aí começa todo o problema: aquele que acha que se conhece
torna-se arrogante, prepotente, vaidoso. Nunca poderemos dizer que nos
conhecemos. No máximo que temos certas pistas, um “cheiro”, mas a verdade é que
estamos em constante processo de autodescoberta, de autoconhecimento. Saber
isto nos fará pensar duas vezes antes de criticar uma obra de Picasso e demais
coisas que se apresentarem no nosso caminho.
A arrogância, a vaidade e a prepotência são
inimigas do conhecimento, da humildade. No fundo, no fundo, elas são um espelho
de nossos medos escondidos embaixo de nossos tapetes felpudos e aconchegantes.
A vaidade demonstra a ociosidade e os vazios
presentes em nós. É um literal abandono do bom senso.
A arrogância nos torna capazes de exigir o que
não temos direito, o que não merecemos. Aquele jovem poeta, ao criticar,
cegamente, a obra de Picasso, exigia um reconhecimento como “conhecedor da
obra” que ele não tinha, e que jamais viria a ter. Pelo menos não enquanto
durasse a cegueira dele.
O que motiva a arrogância, a cegueira, a
prepotência é o sentimento de pequenez mental. Este é o sentimento que
movimenta o arrogante. Mas claro que ele não sabe disto: ele está cego!
É preciso ser merecedor da obra, do
reconhecimento. E isto é para poucos. Porque são poucos os que,
verdadeiramente, enxergam.
Aquele que acha que sabe, como aquele poeta, é
o que menos sabe. Quando achamos que sabemos as respostas, a vida muda as
perguntas, já dizia o escritor. É bom estar atento.
A crítica é sempre bem-vinda, sempre será.
Crescemos por meio dela. Mas a crítica, independentemente, a qual obra ou fato
esteja se referindo, deve estar acompanhada de respeito e de humildade. O que
certamente faltou a aquele poeta.
O que me chamou a atenção, também, foi que ele
era um poeta. E o verdadeiro poeta tem humildade e sensibilidade. Sem isto não
há como ser um verdadeiro poeta, talvez um pseudopoeta, nada mais que isto.
Julgamo-nos superiores a coisas cuja
importância desconhecemos. Perdemos excelentes oportunidades de aprendermos, de
avançarmos.
A futilidade que sustenta muitas de nossas
ações nos faz escorregar diante o nosso próximo. E isto nos envergonha. Mas
como não somos capazes de sustentar a nossa vergonha e de aprendermos com ela,
buscamos defeitos na obra alheia, nas pessoas, nas coisas, enfim em tudo aquilo
que tire a atenção da gente.
Somente ostenta quem não tem, verdadeiramente.
Aquele jovem poeta, ao querer diminuir a obra de Picasso e “mostrar” que sabia,
somente colocou mais luz na invisibilidade e na insignificância dele, nas
pequenezas dele. Quanto mais ostentamos, mais mostramos que não temos. Quem
tem, de verdade, não precisa mostrar. O que ele produz fala por si. A obra
produzida, se bem produzida, fala pelo escultor.
Aprendemos com quem chegou antes, com quem
chegou depois. Aprenderemos com quem ainda nem chegou. E muita gente aprenderá
conosco quando nem aqui mais estivermos.
Aprendemos com a obra de Picasso, com a genialidade
dele, mas também aprendemos com aquele que talvez não seja o Picasso, mas que
possui genialidade, tanto quanto. Mas para isto é preciso que se enxergue com a
alma e com o coração.
A falta de humildade, a ostentação, a
arrogância, a prepotência nos levam para caminhos sem volta. São traiçoeiras.
Elas nos fazem acreditar que somos o máximo, quando, na verdade, só nos expõem
ao ridículo, e acendem todas as luzes sobre os nossos defeitos e fraquezas.
Elas se unem para esconderem as nossas fortalezas. Definitivamente, não são
boas companheiras. Mas elas são ótimas em nos fazerem ver as distorções das
formas pintadas por Picasso.
Haja cegueira moral! Como é triste não termos
consciência disto. Deixamos de apreciar uma obra, no caso a de Picasso, por
conta de não a enxergarmos.
Uma doença da alma, fruto da ignorância.
Demonstra a obscuridade que aponta aquilo de misterioso, encoberto e adormecido
que há em todos nós.
Finalizo o texto, mas não a reflexão, com uma
frase de Clarice Lispector, uma das maiores escritoras da literatura mundial
que, certamente, enxergava muitíssimo bem. Suas obras não deixam dúvidas.
“A pior cegueira é a dos que não sabem que estão cegos. ”
Pois é, ainda bem que Picasso não deu ouvidos
àquele jovem poeta.