segunda-feira, 26 de outubro de 2015

A cegueira moral

A situação se dá em Praga, a capital da República Tcheca, início do século XX, numa exposição de pintores. Um jovem poeta tcheco chamado Gustav Janouch comentou com Franz Kafka:

-  Picasso distorce, deliberadamente, as formas. Criticou o rapaz.

Em resposta a ele, Kafka, um dos escritores mais influentes do século XX, respondeu:

- Picasso, o grande pintor espanhol, apenas registrava “as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”.

Se eu fosse aquele jovem rapaz tcheco, Gustav Janouch, abriria um buraco ali mesmo e me enterrava. Perdeu uma excelente oportunidade de se calar. Mas ganhou uma excelente oportunidade de aprender. Mesmo que às duras penas.


imagem tirada da internet

Nem sempre, na vida, o aprendizado vem pelo amor. Que saibamos reconhecer isto.

Observando este diálogo entre eles, atual e atemporal, fiquei pensando na nossa verdadeira cegueira: aquela que obscurece o nosso olhar frente às verdades da vida, frente ao que verdadeiramente importa. Não falo da cegueira física, esta que, infelizmente, acomete algumas pessoas. Falo da cegueira moral que nos impede de sermos pessoas melhores, mais éticas e justas. Esta cegueira que nos faz olhar apenas para os nossos pés, para o caminho que caminhamos. Esta cegueira que somente nos faz reconhecer os nossos passos e o quão eles são imprescindíveis, na nossa opinião. Será?

Gustav Janouch ao criticar a forma como desenhava e criava Picasso demonstra esta cegueira.

Temos o direito de não gostar de algo, de criticar, mesmo esta crítica sendo referida a Picasso. Mas não temos o direito de sermos arrogantes, cegos e vaidosos. Isto não.

Criticar e dizer que não gostou é exercer o nosso direito à democracia. É exercer o nosso direito enquanto cidadãos que somos. Mas a crítica, pela crítica, pela pura vaidade, apenas demonstra o imenso tamanho da nossa pequenez, o imenso tamanho da nossa arrogância e da nossa desproporcionalidade diante à grandiosidade do mundo e de suas obras. No caso, aqui, Picasso: um dos gênios que a Humanidade teve.

É preciso saber e reconhecer o limite entre o que é crítica, como direito de protestar, de ser contrário ao mostrado, ao proposto, e o que é crítica baseada na arrogância, na vaidade, na prepotência que apenas mostra o quão longe estamos.

Esta cegueira é a verdadeira que cega. Infelizmente.

As distorções das formas, tão genialmente pintadas por Picasso, acho que foram criadas para aquele jovem poeta. E para todos nós, também.  Apenas ainda não estamos conscientes sobre isto.

Ouvi, certa vez, um palestrante dizer: ”o problema do nosso ponto de vista é que ele cega a nossa vista”. Perfeito. Aquele jovem poeta não ouviu este palestrante dizer isto, mas ele estava acompanhado de um mestre, Franz Kafka, que soube colocá-lo no seu devido lugar ao dizer: “...deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”.

O problema é sempre o mesmo: falta de autoconhecimento. Como não nos conhecemos, este mesmo desconhecimento nos faz crer que nos conhecemos. E aí começa todo o problema: aquele que acha que se conhece torna-se arrogante, prepotente, vaidoso. Nunca poderemos dizer que nos conhecemos. No máximo que temos certas pistas, um “cheiro”, mas a verdade é que estamos em constante processo de autodescoberta, de autoconhecimento. Saber isto nos fará pensar duas vezes antes de criticar uma obra de Picasso e demais coisas que se apresentarem no nosso caminho.

A arrogância, a vaidade e a prepotência são inimigas do conhecimento, da humildade. No fundo, no fundo, elas são um espelho de nossos medos escondidos embaixo de nossos tapetes felpudos e aconchegantes.

A vaidade demonstra a ociosidade e os vazios presentes em nós. É um literal abandono do bom senso.

A arrogância nos torna capazes de exigir o que não temos direito, o que não merecemos. Aquele jovem poeta, ao criticar, cegamente, a obra de Picasso, exigia um reconhecimento como “conhecedor da obra” que ele não tinha, e que jamais viria a ter. Pelo menos não enquanto durasse a cegueira dele.

O que motiva a arrogância, a cegueira, a prepotência é o sentimento de pequenez mental. Este é o sentimento que movimenta o arrogante. Mas claro que ele não sabe disto: ele está cego!

É preciso ser merecedor da obra, do reconhecimento. E isto é para poucos. Porque são poucos os que, verdadeiramente, enxergam.

Aquele que acha que sabe, como aquele poeta, é o que menos sabe. Quando achamos que sabemos as respostas, a vida muda as perguntas, já dizia o escritor. É bom estar atento.

A crítica é sempre bem-vinda, sempre será. Crescemos por meio dela. Mas a crítica, independentemente, a qual obra ou fato esteja se referindo, deve estar acompanhada de respeito e de humildade. O que certamente faltou a aquele poeta.

O que me chamou a atenção, também, foi que ele era um poeta. E o verdadeiro poeta tem humildade e sensibilidade. Sem isto não há como ser um verdadeiro poeta, talvez um pseudopoeta, nada mais que isto.

Julgamo-nos superiores a coisas cuja importância desconhecemos. Perdemos excelentes oportunidades de aprendermos, de avançarmos.

A futilidade que sustenta muitas de nossas ações nos faz escorregar diante o nosso próximo. E isto nos envergonha. Mas como não somos capazes de sustentar a nossa vergonha e de aprendermos com ela, buscamos defeitos na obra alheia, nas pessoas, nas coisas, enfim em tudo aquilo que tire a atenção da gente.

Somente ostenta quem não tem, verdadeiramente. Aquele jovem poeta, ao querer diminuir a obra de Picasso e “mostrar” que sabia, somente colocou mais luz na invisibilidade e na insignificância dele, nas pequenezas dele. Quanto mais ostentamos, mais mostramos que não temos. Quem tem, de verdade, não precisa mostrar. O que ele produz fala por si. A obra produzida, se bem produzida, fala pelo escultor.

Aprendemos com quem chegou antes, com quem chegou depois. Aprenderemos com quem ainda nem chegou. E muita gente aprenderá conosco quando nem aqui mais estivermos.

Aprendemos com a obra de Picasso, com a genialidade dele, mas também aprendemos com aquele que talvez não seja o Picasso, mas que possui genialidade, tanto quanto. Mas para isto é preciso que se enxergue com a alma e com o coração.

A falta de humildade, a ostentação, a arrogância, a prepotência nos levam para caminhos sem volta. São traiçoeiras. Elas nos fazem acreditar que somos o máximo, quando, na verdade, só nos expõem ao ridículo, e acendem todas as luzes sobre os nossos defeitos e fraquezas. Elas se unem para esconderem as nossas fortalezas. Definitivamente, não são boas companheiras. Mas elas são ótimas em nos fazerem ver as distorções das formas pintadas por Picasso.

Haja cegueira moral! Como é triste não termos consciência disto. Deixamos de apreciar uma obra, no caso a de Picasso, por conta de não a enxergarmos.

Uma doença da alma, fruto da ignorância. Demonstra a obscuridade que aponta aquilo de misterioso, encoberto e adormecido que há em todos nós.

Finalizo o texto, mas não a reflexão, com uma frase de Clarice Lispector, uma das maiores escritoras da literatura mundial que, certamente, enxergava muitíssimo bem. Suas obras não deixam dúvidas.

“A pior cegueira é a dos que não sabem que estão cegos. ”

Pois é, ainda bem que Picasso não deu ouvidos àquele jovem poeta.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O arco-íris não vai te esperar

Duas senhoras caminhavam pela rua quando uma delas viu um homem pedindo uma ajuda. Como fazia frio, uma delas resolveu doar o casaco que vestia, imaginando ser esta a melhor forma de ajudá-lo, em função da baixa temperatura.

Observando isto, a outra senhora disse:

- Espere. Vai doar este casaco caro e que você acabou de comprar? Vamos para casa e lá pegaremos outra blusa ou casaco velho, ou até mesmo um cobertor usado, e traremos para ele, aqui.

A outra senhora concordou. E as duas partiram rapidamente para casa. Ao voltarem com o casaco, o homem não se encontrava mais lá. As duas, devidamente vestidas com seus casacos, agora com um a mais, ficaram paradas na calçada, como se isto fosse o suficiente para que aquele homem voltasse. Mas ele não voltou.

Podemos fazer várias leituras sobre esta pequena história. Mas o traço de conversa que quero puxar aqui é sobre as oportunidades de fazermos algo relevante nesta vida, mas que deixamos passar em nome de coisas irrelevantes. Deixamos para amanhã coisas que talvez não sejam mais necessárias, solicitadas, permitidas.  Deixamos para amanhã coisas que fazem sentido serem feitas hoje. É preciso pensar sobre.

Isto não quer dizer que devemos abrir mão da ordem, do planejamento. Isso sempre será necessário e útil para a eficiência de qualquer atitude, compromisso, mudança. O planejamento é fundamental, mas exercer a arte do fazer é crucial para a nossa vida. “Sair fazendo”, definitivamente, não é a melhor opção. Mas esperar demais ou querer que a situação esteja “perfeita” para começar a agir, também não será uma boa opção.

E talvez este tenha sido o erro das duas senhoras. Ficaram tempo demais no planejamento. E quando voltaram, era tarde demais. Sempre há algo para se fazer no momento, na oportunidade. E depois, com mais tempo e calma, efetuar o planejamento. Mas jamais perder a oportunidade. Na cabeça delas, tudo estava planejado: “...vamos para casa, pegamos outras peças de roupas, mais velhas, e voltamos e doamos a ele...”. Simples, não? Pois é, só que elas se esqueceram do principal: de considerarem aquele homem nas etapas planejadas. E quando voltaram, o homem não se encontrava lá. De que adiantou o planejamento? Nada. Planejamento sem ação é um vazio de significados.

Agora é a hora de fazer. Agora é a hora de pensar. Agora é a hora de agir. Agora é a hora de estudar. Agora é a hora do agora. Agora é a hora. A hora é agora. E o significado de agora é “nesta hora”. Portanto, lembre-se: o arco-íris não vai te esperar.

imagem tirada da internet

Aquelas duas senhoras, apesar de terem em mente ajudarem aquele homem, excederam no tempo, passaram do ponto, e perderam a chance de ajudar. Elas queriam fazer uma doação, ajudá-lo, mas desde que a doação fizesse parte dos excessos delas, do supérfluo, e não de algo realmente que importasse a elas.

Aquela blusa a mais nas mãos de uma delas denuncia os excessos, seja de planejamento, seja de atitude. É preciso abrir mão dos excessos, do supérfluo, daquilo que nos aliena do mundo.

Os excessos e o supérfluo nos encastelam. São redomas de vidro criadas por nós próprios. Assim como as privações também têm a mesma força. Eles não podem ser os nossos orientadores, os nossos direcionadores. Caso sejam, ainda ficaremos com muitas blusas nas mãos e deixaremos de ver muitos arcos-íris.

Aproveitar as oportunidades e saber a hora de realizar é saber enxergar o arco-íris. Nem sempre ele virá após uma chuva, mas se estivermos preparados quando ele passar, certamente o enxergaremos. No entanto, se estivermos muito mais preocupados com questões irrelevantes, como qual blusa vamos doar, certamente quando ele passar não estaremos na janela para vê-lo. E quando haverá outra oportunidade? Ninguém sabe. Assim como aquele homem que jamais voltou, na história das duas senhoras.  A oportunidade é agora. E só quem estiver pronto saberá.

Obviamente há que se preocupar com a chuva e saber aonde se abrigar. Ou seja: planejar. Mas o mais importante é saber o que fazer depois de a chuva passar. E tendo isto em mente, aguçaremos os nossos olhares para as oportunidades da vida.

Então, enquanto chover e estivermos aguardando a chegada do arco-íris, é bom sabermos...

- planejar, planejar e planejar. Seremos gratos a nós por isto. Mas não podemos nos esquecer de viver, também. Viver é tão importante quanto planejar;

- buscar o aperfeiçoamento de nossas atividades, e nunca a perfeição, uma vez que ela não existe. Buscar a perfeição é nos perder na nossa vaidade e na nossa arrogância. As imperfeições são bem-vindas;

- pedir desculpas hoje. Não sabemos se teremos outra oportunidade;

- ser feliz hoje. Não sabemos se teremos outra chance;

- valorizar a simplicidade, a honestidade, a lucidez, a humildade, a ética. Somente eles poderão nos mostrar o arco-íris. Sem eles, nem adianta aumentarmos a graduação de nossas lentes;

- abrir mão de ofender e de nos sentir ofendidos: quem ofende é pobre de espírito, e quem se sente o tempo todo ofendido é um vaidoso de plantão;

- construir a nossa base de valores naquilo que é sólido, e não naquilo que é efêmero. Os likes que o digam...;

- ousar desconstruir modelos que não servem mais. Trilhar caminhos não trilhados;

- construir nossa morada para o inverno. Mas não nos esquecer de termos tempo de apreciarmos o sol que bate em nossa janela;

- lembrar de que a racionalidade não pode tomar o lugar da sensibilidade. Quando isto acontece, há o embrutecimento da alma e a nossa sensibilidade se revolta;

- dar continuidade às coisas, mas não nos esquecer das possibilidades;

- lembrar de plantar, mas não nos esquecer de regar. O regar traz esperança;

- abrir mão de coisas que dificultarão enxergarmos o arco-íris;

- colocar mais cores no nosso arco-íris. Quem falou que ele só tem sete cores? Termos sempre, por perto, um baldinho para pintá-lo quantas vezes for necessário. E se manchar alguma cor, usarmos o baldinho de novo;

- acreditar no arco-íris. Insistirmos;

E o principal:

- nunca perdermos a oportunidade de olharmos para cima e enxergarmos o arco-íris que chegou. Precisamos nos lembrar de que ele nunca tocará a campainha para nos avisar. Se quisermos vê-lo, deveremos percebê-lo. E isto é para poucos. Muito poucos. Somente para aqueles que, raramente, têm blusas desnecessárias em mãos.

Para finalizar, deixo uma bela frase de Mário Quintana. Um escritor que certamente foi um apreciador de arco-íris:

“Não faças da tua vida um rascunho. Poderás não ter tempo de passá-la a limpo. ”

Portanto, que cada um de nós possa ter racionalidade de ver a chuva, porém sem descuidar da sensibilidade de enxergar e de perceber o arco-íris.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O que nos representa?

Muitas coisas. Nem sempre as coisas que me representam são as mesmas que te representam. Somos representados por coisas afins e distintas; semelhantes e opostas. O dinamismo da vida se dá nisto: nesta singularidade de diferenças de representações; nesta similaridade de forças.

A singularidade de diferenças de nossas representações será vivida e descoberta ao longo de nossa existência, de nossa relação e convivência com o outro. É isto o que também nos constrói e que vamos conhecendo no decorrer da vida. Não há um mapa a respeito, apenas trilhando o caminho é que se conhecerá esta singularidade de diferenças de nossas representações.

Ao passo que a similaridade de forças, que nos constrói da mesma forma, pode ser mais facilmente percebida por meio do comportamento do outro. E a angústia é um exemplo muito forte. Reconhecemos a angústia no outro porque também é facilmente percebida em nós. Percebemos quando o outro está angustiado pelo fato de isto nos ser familiar. Infelizmente ou felizmente, a angústia faz parte da vida, da nossa vida, e é uma velha companheira.

Digo infelizmente porque a sensação da angústia não é agradável. Mas se fizermos as pazes com ela, colheremos bons frutos, uma vez que ela é uma das nossas forças poderosas capazes de nos fazer conversar com as nossas sombras.

Há um poema maravilhoso, de Álvaro de Campos, que retrata bem este tema. Chama-se Esta Velha Angústia.

Esta velha angústia, esta angústia que trago há séculos em mim,

Transbordou da vasilha, em lágrimas, em grandes imaginações,

Em sonhos, em estilo de pesadelo sem terror, em grandes emoções súbitas

sem sentido nenhum.

Transbordou.

Mal sei como conduzir-me na vida, com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre, este quase, este poder ser que..., Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,

Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.

Estou doido a frio, estou lúcido e louco, estou alheio a tudo e igual a todos:

Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura

Porque não são sonhos. Estou assim... Pobre velha casa da minha infância perdida!

Quem te diria que eu me desacolhesse tanto! Que é do teu menino? Está maluco.

Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano? Está maluco.

Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou. Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! Por exemplo, por aquele manipanso que havia em casa, lá nessa, trazido de África.

Era feiíssimo, era grotesco, mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.

Se eu pudesse crer num manipanso qualquer: Júpiter, Jeová, a Humanidade.

Qualquer serviria,

Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

(Álvaro de Campos, Obra: Poemas. Heterônimo de Fernando Pessoa).

Fernando Pessoa costumava dizer que era impossível ser um só. Daí a criação de vários heterônimos. E Álvaro de Campos é um dos mais conhecidos. Fernando Pessoa foi um poeta e escritor português do século XIX. Criou heterônimos como extensões dele próprio, que funcionavam como representantes de seus outros “eus”. Apesar de os heterônimos serem autores fictícios, tinham sua personalidade e sua biografia. Heterônimos criados por Fernando Pessoa que, de forma brilhante, fizeram de sua obra uma referência na literatura mundial.

imagem tirada da internet

Encontramos nossos “eus” neste poema. Quem nunca se sentiu angustiado? Impossível.

Alguns filósofos defendem a tese de que a angústia é um sentimento moderno. Mas não sei se concordo. Talvez, no passado, não tínhamos este nome, angústia, mas acredito que ela sempre existiu, obviamente com as características de cada época.

A passagem que diz: “...Se ao menos endoidecesse deveras! Mas não: é este estar entre. Este quase, este poder ser que...”.

Estar entre. Este quase. Este poder ser que.

A angústia nos faz sofrer e fazemos sofrer o outro também. Ela é uma das marcas da nossa condição humana.

Somos complexos porque é muito difícil sermos simples. Vivemos numa inconstância e numa incerteza porque não sabemos quais são as nossas certezas. O que é certo?

A convivência nos é imposta, muitas vezes, por causa da conveniência de uma época. Mas não porque aquilo dá som a nossa voz. As conveniências impostas impedem a nossa expansão.

Eu só não faço o mal porque não tive oportunidade. Mas a intenção estava lá. É angustiante constatar isto. Mas somente quando constato, a oportunidade de mudança se apresenta para mim. É um convite à renovação, à mudança para melhor, porém por caminhos árduos.

A angústia do ser e do se tentar ser alguém.

Vivemos sonhos porque temos dificuldades de construir realidades ou de viver nelas. A imaginação e o sonho ganham forças frente às incertezas e os medos reais.

Pedem criatividade, mas punem os que erram. Só que não existe criação sem erro.

As novas gerações estão sendo reverenciadas como revolucionárias e com a missão de “consertarem” o mundo, mas quem começou a revolução, com todo o respeito, não foram eles. Aliás, foram pessoas que nem aqui estão mais. Dar sequência em algo criado e pensado não pode ser considerado revolucionário. É como caminhar por caminhos trilhados. Mastigar e engolir o pão é completamente diferente de fazer o pão.

É a angústia de assinar uma obra que não foi você quem fez. Aprenda a admirá-la primeiramente, depois certamente você terá seus créditos. Mas numa obra sua.

Exigimos protagonismo do outro, mas o que é ser protagonista? Não é ser o centro das atenções e ter o papel principal. Isto só funciona nas novelas e nos filmes. Ser protagonista é ter maturidade e responsabilidade na vida. Encarar as subidas, as descidas e os atolamentos dos pneus com a mesma disposição.

E ser coadjuvante? É saber a hora de se calar quando o outro precisar falar; é saber ceder o seu lugar para quem mais precisar sentar; é saber pedir desculpas a alguém. É saber abrir mão do seu desejo em prol do que é melhor para o grupo. É entender o seu papel no mundo e ter, na humildade, uma aliada e não uma propaganda para sua vaidade.

O que importa é a construção da obra que se dá por meio das duas forças: protagonista e coadjuvante. Portanto, as duas são necessárias.

Somos cobrados por coisas que não estamos preparados para dar. Mas não querem, muitas vezes, receber o que estamos preparados para dar. Por isto somos angustiados. Nossa sociedade é uma sociedade angustiada, vivendo em meio ao caos, à mistura de sensações. Vivemos tentando nos adequar em meio as nossas inadequações. Somos maiores do que os espaços que, muitas vezes, nos dão. E nos apertamos nos espaços. Isto é angustiante.

Passos iguais e passos adversos. Ora na igualdade; ora na adversidade. Reconhecemo-nos nas nossas representatividades de alegrias e de dores.  Nas diferenças e nas igualdades, somos únicos no nosso sentir, somos únicos no expressar aquilo que nos representa.

A angústia é uma força, porém precisamos enxergá-la como tal. Querer ganhar é saudável, mas querer ganhar sempre é doentio. Esta busca pelo inacessível (ganhar sempre) é o que nos angustia. Somos cobrados por vencer e ganhar troféus concretos. Mas não somos incentivados a vencermos e a ganharmos troféus intangíveis. Isto não cabe na nossa sociedade. Não há muito espaço para esta conversa.

É preciso usar a angústia como uma ferramenta de busca por nós mesmos. Valorizar o intangível. Aquilo que não se mede. O controle é importante, mas em excesso angustia. Querer ter todas as respostas angustia.

Usamos a angústia contra nós, e não a favor. E isto não é um sinal de inteligência. Estamos tão avançados no que se copia, como as commodities, e tão imersos no primitivismo daquilo que nos forma, como a ética, os valores, a relação com o outro. Temos uma relação de submissão com muitas coisas. Porém é preciso construir uma relação de troca, e sairmos desta submissão. Construir esta migração angustia porque não se aprende isto nos livros, só na vida.

Quando usamos a angústia a nosso favor e a favor do outro, construímos. Quando usamos a angústia contra nós e contra o próximo, destruímos. Aquilo que nos constrói nos destrói. E isto parte do sentimento de angústia, de nos sentir ameaçados, de não sabermos o caminho a seguir. É preciso criar mecanismos que nos façam enxergar o diferente apenas como diferente e não como inimigo, para que a gente não queira destruí-lo.

A angústia se dá porque não há fronteiras, não há métodos. Para muitas coisas não há regulação. Precisamos saber lidar com as nossas inquietudes, com as nossas sombras, com as nossas dualidades. Isto é a vida. E isto angustia.

É preciso valorizar a caminhada e não só a chegada. Querer ser o campeão é louvável, saudável e mais que isto: é uma busca plausível daqueles que querem se superar. Mas saber que a vida também é feita de vice-campeonatos e saber aplaudir, de verdade, quem chegar em primeiro lugar, é nobre. E somente aquele que aceita a força da angústia como ferramenta de autodescobrimento e de autodesenvolvimento conseguirá fazer isto.

Encerro o texto com uma frase de Fernando Pessoa, que diz:

“É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. ”

E uma das nossas companheiras no tempo da travessia será, certamente, a angústia. Se soubermos respeitá-la e acolhê-la, ela nos mostrará belas paisagens quando chegarmos.