Para este texto, parto de uma reflexão que diz: “quem menos entende de água é o peixe”.
Há vários recortes que podem ser
feitos para esta reflexão. Escolho o recorte da contradição porque ela nos
explica e nos situa, no mundo. Somos o que somos por causa das nossas
contradições, por causa daquilo que expõe as nossas fragilidades e sutilezas. Se
o peixe, que é aquele quem mais contato tem com a água, por que é quem
menos a compreende? Porque somos contraditórios. Há uma contradição em nós.
Inclusive nos peixes.
O excesso rouba o distanciamento
necessário para que algo possa ser conhecido. Por ficar tempo demais em contato
com a água, o exercício essencial do conhecimento, do aprofundamento sobre quem
e o sobre o que é a água não foi criado. Sem o conhecimento, a possibilidade de
criarmos significados é drasticamente reduzida, e as nossas relações tornam-se superficiais.
O conhecimento necessita, diretamente, de um tempo de construção, de uma
descida à essência, ao planejamento, à valorização do caminhar, ao esvaziamento
dos entulhos, ao reconhecimento de espaços e vãos livres para que o saber possa
se dar.
Construção requer silêncio e
tempo. Mas como em meio ao excesso? O peixe vive neste excesso. Neste excesso de
água. Por isso, não a conhece. Por não a conhecer, não cria significados. E
assim, tem uma relação superficial com a água. Apenas sente a falta dela, a
percebe, literalmente, quando é abordado por uma isca que o pega desprevenido.
Desespera-se ao ser retirado da água. Somente nesta hora é que percebe que
estava inserido num contexto necessário à própria sobrevivência, mas que, até
então, devido aos excessos, não havia percebido.
Excessos nos cegam. Privam-nos do
diálogo acerca de quem somos. Distanciam-nos do conhecimento, da criação de
significados. Nossas relações se tornam superficiais porque nos tornamos
superficiais. Nesta superficialidade, delegamos o indelegável, e pagamos para
que outros pensem por nós. Mas por que o
peixe não percebe o excesso? Porque os excessos trazem conforto e, geralmente,
camuflam os problemas. Viver no excesso cega, mas traz uma sensação de pseudo
paz. Viver na ignorância é uma forma triste de adiar compromissos. Eles são
inevitáveis, mas enquanto o faz-de-contas nos alimentar, os aquários
tranquilos, serenos e repletos de água nos satisfarão, ou o próprio mar, se
assim estiver repleto de água.
Pobres que somos. Buscamos
atalhos que somente encompridam o nosso caminho. O excesso nos acaricia. Há
muita água ao nosso redor nos afogando, mas como percebê-la se o excesso faz
por nós e preenche nossas ociosidades? Que reforcemos os nossos pés porque eles
serão convocados, apesar de os nossos sapatos já estarem bem gastos.
Há muito excesso. De tudo. Como
percebê-lo? Lidando com a realidade. No entanto, lidar com ela requer, de nós, e
do peixe, certa disposição para suportar a dor, a frustração, a
insegurança, a tensão, a angústia e a contradição. Já falei que somos
contraditórios. Mas apenas não tinha falado que fazemos de conta que não
somos. E isto faz toda a diferença. Somos andarilhos em nós mesmos em busca
de algo que nem sabemos o que é. “Esta fila é para pagar?”, perguntei à moça,
certa vez, numa loja. “Acho que sim, pelo menos estão todos aqui. Acho que
sim.” Andarilhos. Nem se é a fila certa para nós, nos certificamos. Não
critico. Sou parte disso. Esta alienação faz parte do excesso no qual estamos, todos,
submersos.
Vivemos numa sociedade de
excessos de falta de essência, que foi construída por nós. Por mim e por você. Nossos
dicionários caem em desuso a passos largos: assertivo é aquele que diz tudo o
que precisa num áudio de zap de um minuto, enquanto prolixo é José
Saramago, porque escreve livros extensos, sem imagens, de pontuação confusa
(!), cujas letras pequenas e cansativas não são um convite para leitores
estreantes. Sermos pessoas mergulhadas neste funesto excesso nos faz chamar
assertivos alguém ou algo, muitas vezes, raso, sem essência e superficial.
Equívocos desta natureza são inerentes àquele que dialoga com os excessos.
O que buscamos? A água excedida
ou a água na medida? Se for a água excedida, nada há a fazer porque já está
tudo certo. Se for a água na medida, será bom abrirmos os nossos guarda-chuvas
porque o trabalho virá forte e será intenso.
Temos um déficit de
maturidade que nos faz terceirizar responsabilidades. Nossa disposição para o
debate, para o diálogo é praticamente zero. Sem diálogo, não há construção,
apenas acúmulos de excessos. Nossos espaços são autoritários: eu falo, você
escuta. Possuímos vocação para o autoritarismo que anula o diferente, o outro.
Aquele que envia um áudio de dois minutos, praticamente, é uma pessoa à parte.
Nossa capacidade de esvaziar o outro por meio da marginalização é assustadora.
Esvaziamos porque priorizamos o excesso. E ele não nos permite enxergar o
outro, a água na qual o outro está mergulhado.
Somos commodities
ambulantes. Deixamo-nos conduzir pelo conforto de velhas ideias, costumes,
excessos. Precisamos abandonar o nosso conforto para acessarmos o problema do
outro. Necessário conhecer aquele que transita na nossa estrada, dedicar tempo
a ele, a nós, ao entorno, às curvas que mostram os deveres pendentes e não
cumpridos.
Abandonar o nosso conforto é aceitar
sair do excesso. Isso dói. Mas se conseguirmos, alcançaremos certa mobilidade
para caminharmos em direção ao outro. Para dizer e criar algo com significado é
preciso conhecer quem sou. E para me conhecer, preciso abandonar o excesso
disfarçado de conforto. Necessária uma dedicação de tempo para o conhecimento.
Mas como esta dedicação exige muito de mim, delego, e se não delego, alguém
chega e diz que pensa por mim e faz todo o trabalho.
Não podemos desempregar os
outros. E é o que fazemos por meio dos nossos excessos. Isto traz a superficialidade.
São excessos de palavras ociosas,
mas as essenciais não são ditas. Excessos de imagens, mas as vivências estão esquecidas.
Excessos de ações, mas as oposições estão afônicas. Excessos de entretenimento
porque o pensar foi deposto. Excessos de comida porque o alimento vai para o apetite
e não para a fome. Excessos de abreviaturas porque o pensamento fragmentou-se. Excessos
porque nos faltam essências. Temos dados. Falta-nos o conhecimento para
interpretá-los. Temos. Porque não somos.
Falta-nos disposição para a experiência
de composição e de movimento de quem somos. Dá muito trabalho. Mas há outro
caminho?
Não há respostas para tudo isso.
Somente a autoajuda tem respostas prontas, eficientes, rápidas, fáceis. O que
há é trabalho a ser feito em cada cômodo de nossa residência, como disse Lya
Luft. Façamos o trabalho. Ele espera por nós.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação de Mario Quintana:
“Sempre me senti isolado nessas
reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas.”
Que as águas nas quais estivermos
mergulhados sejam valorizadas sem, contudo, que o excesso delas turve a nossa
visão. Que nossas contradições possam ser concertadas como num grande musical, cujo
conjunto da obra, das notas e dos sons possua a beleza do espetáculo. Que as
nossas contradições estejam concertadas, reunidas em um conjunto harmonioso
para que possam dar o tom certo a todos nós. Talvez assim, a água passe a ter outro
significado porque, agora, terá sido construído. Por mim. Por nós. Pelo
peixe.
Que possamos sair das nossas
minorias para que a maioridade possa ser alcançada. Não há espaço para os dois.
Qual será a nossa escolha?