terça-feira, 6 de outubro de 2020

No aquário da vida

Para este texto, parto de uma reflexão que diz: “quem menos entende de água é o peixe”.

Há vários recortes que podem ser feitos para esta reflexão. Escolho o recorte da contradição porque ela nos explica e nos situa, no mundo. Somos o que somos por causa das nossas contradições, por causa daquilo que expõe as nossas fragilidades e sutilezas. Se o peixe, que é aquele quem mais contato tem com a água, por que é quem menos a compreende? Porque somos contraditórios. Há uma contradição em nós. Inclusive nos peixes.

O excesso rouba o distanciamento necessário para que algo possa ser conhecido. Por ficar tempo demais em contato com a água, o exercício essencial do conhecimento, do aprofundamento sobre quem e o sobre o que é a água não foi criado. Sem o conhecimento, a possibilidade de criarmos significados é drasticamente reduzida, e as nossas relações tornam-se superficiais. O conhecimento necessita, diretamente, de um tempo de construção, de uma descida à essência, ao planejamento, à valorização do caminhar, ao esvaziamento dos entulhos, ao reconhecimento de espaços e vãos livres para que o saber possa se dar.

Construção requer silêncio e tempo. Mas como em meio ao excesso? O peixe vive neste excesso. Neste excesso de água. Por isso, não a conhece. Por não a conhecer, não cria significados. E assim, tem uma relação superficial com a água. Apenas sente a falta dela, a percebe, literalmente, quando é abordado por uma isca que o pega desprevenido. Desespera-se ao ser retirado da água. Somente nesta hora é que percebe que estava inserido num contexto necessário à própria sobrevivência, mas que, até então, devido aos excessos, não havia percebido.

Excessos nos cegam. Privam-nos do diálogo acerca de quem somos. Distanciam-nos do conhecimento, da criação de significados. Nossas relações se tornam superficiais porque nos tornamos superficiais. Nesta superficialidade, delegamos o indelegável, e pagamos para que outros pensem por nós.  Mas por que o peixe não percebe o excesso? Porque os excessos trazem conforto e, geralmente, camuflam os problemas. Viver no excesso cega, mas traz uma sensação de pseudo paz. Viver na ignorância é uma forma triste de adiar compromissos. Eles são inevitáveis, mas enquanto o faz-de-contas nos alimentar, os aquários tranquilos, serenos e repletos de água nos satisfarão, ou o próprio mar, se assim estiver repleto de água.

Pobres que somos. Buscamos atalhos que somente encompridam o nosso caminho. O excesso nos acaricia. Há muita água ao nosso redor nos afogando, mas como percebê-la se o excesso faz por nós e preenche nossas ociosidades? Que reforcemos os nossos pés porque eles serão convocados, apesar de os nossos sapatos já estarem bem gastos.

Há muito excesso. De tudo. Como percebê-lo? Lidando com a realidade. No entanto, lidar com ela requer, de nós, e do peixe, certa disposição para suportar a dor, a frustração, a insegurança, a tensão, a angústia e a contradição. Já falei que somos contraditórios. Mas apenas não tinha falado que fazemos de conta que não somos. E isto faz toda a diferença. Somos andarilhos em nós mesmos em busca de algo que nem sabemos o que é. “Esta fila é para pagar?”, perguntei à moça, certa vez, numa loja. “Acho que sim, pelo menos estão todos aqui. Acho que sim.” Andarilhos. Nem se é a fila certa para nós, nos certificamos. Não critico. Sou parte disso. Esta alienação faz parte do excesso no qual estamos, todos, submersos.

Vivemos numa sociedade de excessos de falta de essência, que foi construída por nós. Por mim e por você. Nossos dicionários caem em desuso a passos largos: assertivo é aquele que diz tudo o que precisa num áudio de zap de um minuto, enquanto prolixo é José Saramago, porque escreve livros extensos, sem imagens, de pontuação confusa (!), cujas letras pequenas e cansativas não são um convite para leitores estreantes. Sermos pessoas mergulhadas neste funesto excesso nos faz chamar assertivos alguém ou algo, muitas vezes, raso, sem essência e superficial. Equívocos desta natureza são inerentes àquele que dialoga com os excessos.

O que buscamos? A água excedida ou a água na medida? Se for a água excedida, nada há a fazer porque já está tudo certo. Se for a água na medida, será bom abrirmos os nossos guarda-chuvas porque o trabalho virá forte e será intenso.

Temos um déficit de maturidade que nos faz terceirizar responsabilidades. Nossa disposição para o debate, para o diálogo é praticamente zero. Sem diálogo, não há construção, apenas acúmulos de excessos. Nossos espaços são autoritários: eu falo, você escuta. Possuímos vocação para o autoritarismo que anula o diferente, o outro. Aquele que envia um áudio de dois minutos, praticamente, é uma pessoa à parte. Nossa capacidade de esvaziar o outro por meio da marginalização é assustadora. Esvaziamos porque priorizamos o excesso. E ele não nos permite enxergar o outro, a água na qual o outro está mergulhado.

Somos commodities ambulantes. Deixamo-nos conduzir pelo conforto de velhas ideias, costumes, excessos. Precisamos abandonar o nosso conforto para acessarmos o problema do outro. Necessário conhecer aquele que transita na nossa estrada, dedicar tempo a ele, a nós, ao entorno, às curvas que mostram os deveres pendentes e não cumpridos.

Abandonar o nosso conforto é aceitar sair do excesso. Isso dói. Mas se conseguirmos, alcançaremos certa mobilidade para caminharmos em direção ao outro. Para dizer e criar algo com significado é preciso conhecer quem sou. E para me conhecer, preciso abandonar o excesso disfarçado de conforto. Necessária uma dedicação de tempo para o conhecimento. Mas como esta dedicação exige muito de mim, delego, e se não delego, alguém chega e diz que pensa por mim e faz todo o trabalho.

Não podemos desempregar os outros. E é o que fazemos por meio dos nossos excessos. Isto traz a superficialidade.

São excessos de palavras ociosas, mas as essenciais não são ditas. Excessos de imagens, mas as vivências estão esquecidas. Excessos de ações, mas as oposições estão afônicas. Excessos de entretenimento porque o pensar foi deposto. Excessos de comida porque o alimento vai para o apetite e não para a fome. Excessos de abreviaturas porque o pensamento fragmentou-se. Excessos porque nos faltam essências. Temos dados. Falta-nos o conhecimento para interpretá-los. Temos. Porque não somos.

Falta-nos disposição para a experiência de composição e de movimento de quem somos. Dá muito trabalho. Mas há outro caminho?

Não há respostas para tudo isso. Somente a autoajuda tem respostas prontas, eficientes, rápidas, fáceis. O que há é trabalho a ser feito em cada cômodo de nossa residência, como disse Lya Luft. Façamos o trabalho. Ele espera por nós.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Mario Quintana:

“Sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas.”

Que as águas nas quais estivermos mergulhados sejam valorizadas sem, contudo, que o excesso delas turve a nossa visão. Que nossas contradições possam ser concertadas como num grande musical, cujo conjunto da obra, das notas e dos sons possua a beleza do espetáculo. Que as nossas contradições estejam concertadas, reunidas em um conjunto harmonioso para que possam dar o tom certo a todos nós.  Talvez assim, a água passe a ter outro significado porque, agora, terá sido construído. Por mim. Por nós. Pelo peixe.

Que possamos sair das nossas minorias para que a maioridade possa ser alcançada. Não há espaço para os dois. Qual será a nossa escolha?