A língua portuguesa é rica.
Sabemos disto. Pena é que esta riqueza seja subestimada pela pobreza da nossa
percepção e do nosso olhar. Uma riqueza sutil. Uma riqueza esquecida. Uma
riqueza não utilizada porque não fomos ensinados a nos apropriar dela. Uma língua
rica que nos convida a pensar. E por meio deste pensar, sair do lugar aonde
comodamente se está.
Mas como sairmos deste lugar
se nossa percepção adoeceu e se o nosso olhar anoiteceu? Não há como partirmos
sem malas. Não há como partirmos sem o mínimo para a nossa sobrevivência.
Digna, não sei. Mas sobrevivência. E sem um olhar amanhecido e uma percepção
principiada, como ir? Melhor, pois, não embarcar e tentar trocar o bilhete.
Sempre é tempo de revermos o que nos falta.
O artigo os, que antecede
o substantivo degraus, no título deste texto, é uma destas riquezas da nossa
língua. Ele identifica que o texto falará sobre algo definido, e não sobre
qualquer coisa. No exemplo que trouxe, a definição está no “os”. Não me refiro,
portanto, a quaisquer degraus: mas sim, aos meus. Além desta sutileza do artigo
definido, que é a identificação clara sobre o falar de algo determinado, ele
também é utilizado para designar algo já conhecido. Não basta, então,
ele dizer claramente que fala sobre algo determinado (os meus degraus, e
não os degraus do vizinho), mas também, que meus degraus são conhecidos.
Óbvio. Será?
Quando avançamos no conhecimento
da Língua, percebemos que dizer que ela é sutil e rica se torna pequeno. A
Língua reafirma que não estamos prontos. Há muito o que dizer a nós. Somos
famintos deste dizer porque o desconhecemos. Ele está aí, posto, mas como
enxergá-lo se ainda somos noite e insalubres?
Não só a sutileza do que o artigo
definido veio dizer, há o pronome minha, também no título deste texto, o
que reforça, mesmo de forma redundante, que os degraus são meus porque
faltam na minha escada. Mais uma vez a evidência da relação comigo, da
posse e daquilo que me pertence.
Artigos e pronomes: tão presentes
e tão ausentes. Presentes na nossa escrita e na nossa fala. Ausentes porque
nossas paredes vão alta demais. Presentes porque escrevê-los é do âmbito da
técnica, fácil de aprendê-la e de reproduzi-la. Ausentes porque percebê-los é
do âmbito da emoção, difícil de compreendê-la e de ouvi-la.
Somos a soma destas nossas
reticências. Somos construtores de um processo que desconhecemos porque não nos
preocupamos com o resultado da nossa existência. Não nos preparamos para
observar estes artigos, estes pronomes e, principalmente, o que eles dizem. Não
nos preparamos. E porque não nos preparamos, não conseguimos enxergar opções e
alternativas. Estamos vivendo vidas precárias porque nossas carências não estão
tendo saídas, opções e alternativas. Talvez a saída seja a busca por uma vida
mais simples, cujas carências nossas, que sempre existirão, enxergarão as
saídas.
Vidas precárias utilizam
artigos e pronomes sem percebê-los. Vidas simples não se conformam com o incômodo
da incompreensão.
acervo pessoal
A cena acima é real. Na saída da
peça “O Monge e o Executivo”, texto cuja simplicidade da fala incomoda e nos
ironiza, um copo sujo no chão, o próprio ingresso e restos de comida,
denunciando que por ali passou alguém ou alguéns desprovido (s) de saídas para
a(s) própria(s) carência(s). Uma pena. Uma pessoa cujos degraus faltantes na
própria escada gritam sem serem ouvidos. Uma pessoa que, ao fazer uso da
própria escada, percebe (talvez?) o degrau faltante, mas pula o espaço
em branco, o buraco presente e exatamente por ser tão presente não é percebido.
Uma pena, novamente.
Somos escadas incompletas. Temos
degraus ausentes. O que nos diferencia, no entanto, é que enquanto uns já se
deram conta da necessidade de amanhecerem o próprio olhar e recuperarem a saúde
da percepção, outros ainda buscam atalhos toscos para pularem os degraus
faltantes, freneticamente apagam as luzes que parcamente surgem e adoecem ainda
mais a própria percepção, que de tão doente, perdeu a conexão e o sentido.
Escadas quebradas porque faltam
degraus nela. Nossa realidade construída por mãos alheias, mas com a presença
ilustre das nossas digitais. Nossas eternas companheiras que fazem parte das
narrativas, excessos, ausências, retrocessos, cansaços, improvisos sem sentido,
simulações, superficialidades, composições, incompreensões, crueza, exclusões.
Tantos nomes entre vírgulas! Como nos cansam lê-los. Mas por que não nos cansam
praticá-los? Esta é uma pergunta que há tempos nos foi respondida pela noitinha
na qual vivem os nossos olhares e pela leve indisposição na qual vive a nossa
percepção.
Escadas quebradas e incompletas:
uma representação de onde estamos. Degraus faltantes e frágeis: um resultado do
que não fizemos. Mas ainda podemos ser. Ainda podemos fazer. Sem moralismos.
Apenas um olhar novo para aquilo que não precisa mais ser guardado e nem
construído por causa da nossa rigidez e por causa dos nossos pequenos olhares e
universos.
Um olhar novo que começa a ser
construído quando nos debruçamos e nos interessamos pelo contemporâneo que vai
em nós. Quando nos interessamos por falar sobre as nossas experiências de
fracasso e de fragilidade ao invés de buscarmos soluções rápidas para
consertarmos os nossos degraus faltantes. Não há atalhos. Não há soluções
mágicas. Não há receitas. Não há receita de caminho. O que há é uma luta
individual para enxergar o que falta em mim, os degraus faltantes da minha
escada. Por isso, os artigos e os pronomes são fundamentais. Tão relegados à
margem, tão essenciais à vida. Mais que itens de uma gramática que um estudante
desavisado a chamaria de chata: um antigo convite de revisitação da nossa
bagagem, da minha, mas que também é da sua.
Os artigos em nós. Os pronomes em
nós. Uma Língua rica, viva e que nos oferece os próprios braços para nos ajudar
a compreender as nossas lacunas e os nossos vazios. Sem uma reflexão sobre
eles, como compreender o que eles nos dizem? É difícil. Mas é preciso resgatar
o gosto pelo esforço. Sem isso, os atalhos toscos e podres continuarão em evidência.
Pisamos falso. Pulamos buracos.
Entortamos os nossos pés. Encolhemos as pernas. Saltamos. Mas raramente paramos
para construir os degraus faltantes na nossa escada. Poucos são os que se
debruçam sobre os buracos da própria trajetória e reconstroem os degraus
perdidos ou quebrados nos lares vazios.
É preciso recuperarmos o sentido
do útil e abrirmos mão do brilho inútil. Talvez neste dia os carpetes poderão
ser vistos, novamente, limpos naquele teatro, na nossa casa, na minha e na sua.
Um carpete fofo, cheiroso, limpo e que, antes de tudo, nos convida a pisá-lo,
porque assim é da natureza dele. Não um pisar de desrespeito, mas um pisar de
convite para estar nele. Simples assim. Talvez neste dia os degraus da nossa
escada, da minha e da sua, estejam mais sólidos, com menos buracos, com menos
espaços, com menos vazios. Não sei. Mas é uma possível chance.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma incômoda fala, presente na peça Macbeth, de Shakespeare,
que diz:
“A vida é uma história contada
por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum."
A nossa vida depende da gente
para ser vivida e contada. Que não sejamos estes idiotas aos quais se referia Shakespeare.
Acho que não era da gente que ela falava. Mas, na dúvida do sim ou do
não, que nossas escadas fiquem prontas ou, no mínimo, tenham os projetos de
restauração e de construção iniciados. Somente de posse, de verdade, das
responsabilidades que nos pertencem, e respondendo por elas, não caberemos
nesta fala de Shakespeare. Nossos sons serão cantos e nossas fúrias,
abrandadas, terão se transformado em respostas, agora com sentido.
Neste dia, nossos carpetes
poderão novamente serem vistos e pisados. Os meus e os seus. Olharemos para
trás, e não enxergaremos mais os copos, os restos de comida e o triste
ingresso, no chão. Neste dia, nossas escadas serão palcos de novas batalhas,
mas outras, e não mais as mesmas. Teremos degraus mais firmes, sólidos e nossas
escadas não terão mais espaçamentos tão visíveis com degraus faltantes que
denunciavam a nossa ausência em nós.
Os copos, os restos de comida e o
triste ingresso, no chão, infelizmente, ainda existirão, mas acredito que terão
partido para outros lugares aonde existam pessoas cujas escadas possuam degraus
faltantes. Olharemos para trás, mais uma vez, e reconheceremos aquele familiar
lugar que um dia foi nosso. Um olhar de compaixão e de melancolia, mas não de
saudade. Um olhar para um espaço cujas vidas que lá vivem, um dia, também foi
o nosso lugar.