terça-feira, 29 de maio de 2018

A leveza nos fortalece

Pierre-Auguste Renoir, essencial pintor francês do século XIX, tem uma provocação que diz:
Na vida, os blocos de granito afundam. No entanto, as cascas das árvores flutuam.”
Quando pensamos, de forma rápida, se queremos ser blocos de granito ou cascas de árvores, acredito que a maioria de nós escolherá ser blocos de granito, pela forma, pela força, pela imposição que eles têm, pela importância que se dá ao que se considera mais forte. Porém, se observarmos o que Renoir diz no início de sua frase, talvez a gente repense. Ele diz: “na vida...”, e não em situações específicas e particulares. E isto faz toda a diferença.
Os blocos de granito são, sem dúvida, algo suntuoso e que impõe. Se estamos na iminência de um bloco de granito cair sobre nossas cabeças, certamente vamos nos mexer e tomar uma atitude. Portanto, eles possuem um certo poder sobre nós, seja pelo medo que temos de ser atingidos, seja pela força que eles possuem. Em poucas palavras: os respeitamos.
As cascas de árvores são, ao contrário dos blocos de granito, simples, sem pompa e, muito menos, sem circunstâncias. Caem sob o comando dos ventos, são deslocadas facilmente, não nos oferece perigo. Talvez seja por isso que pisamos nelas. Em poucas palavras: inofensivas.
Blocos de granitos: são respeitados, mas o peso deles dificulta e, muitas vezes, impossibilita, o deslocar pela vida. E sem deslocamentos, não avançamos. Não progredimos. Morremos. O respeito observado nos blocos se esvai como a água do mar que escorre pelos nossos dedos. O respeito conquistado pelo medo não resiste à força da leveza de uma casca de árvore.
Cascas de árvores: não são respeitadas, mas a leveza delas nos facilita, e muito, o caminhar pela vida, pelos traçados que ela desenhou para nós. E caminhando pelos desenhos que a vida nos presenteou, avançamos e chegamos a lugares que nos constroem. Crescemos. Vivemos. E aquele respeito que não foi concedido antes às cascas surge, agora, manso e envergonhado por não ter percebido a força delas. Uma resposta à necessidade da nossa própria construção.
Na vida, os blocos de granito afundam. No entanto, as cascas das árvores flutuam.”
Afundam porque são vazios de significados. São rasos na sua representatividade. São pequenos no sentido. Ao primeiro chamado da vida, afundam, machucam e se acomodam no chão. Imóveis, nada são, apenas estilhaços que confirmam a falta de destreza deles para com a vida. Assim são os blocos de granito. Sermos o bloco de granito, às vezes, será essencial para regularmos as nossas marchas e reorganizarmos a nossa maleta de ferramentas. Uma parada estratégica, na vida, é imprescindível para reabastecermos. Mas que seja por pouco tempo. A dureza e a firmeza excessiva dos blocos de granito podem nos prender demais, ao chão, e correremos o risco de não nos lembrarmos de como nos levantamos e de como é boa a sensação de ser leve.
Quando demoramos demais em estágios desnecessários, nos tornamos parte dele. É uma pena. Há muita vida ao abrirmos as janelas. A vida nos chama para a vida, e é preciso aprender a ter a leveza das cascas das árvores. Um aprendizado fundamental.
Muito há o que desaprender com os blocos de granitos. Muito há o que aprender com as cascas de árvores.
A leveza nos fortalece; a dureza implacável nos aprisiona e enfraquece. Mas, tão ocupados que estamos no conservar de nossos blocos, não percebemos que afundamos. E somente aquele que se mantém leve, pode ser levado de volta à superfície, à base, ao início, aonde tudo acontece. Afundados, perdemos a dimensão do alto. E dependendo do tempo que ficamos imersos, presos aos blocos de granitos, perdemos a conexão com o alto.
As forças são necessárias, mas nunca devem ser desperdiçadas. Quando isto acontece, elas se voltam contra a gente. Força demais é um indicativo da nossa fraqueza e da nossa fragilidade. Por isso, os blocos quebram e afundam. Forças demais sendo utilizadas indevidamente.
De outro lado, as cascas de árvores flutuam porque são preenchidas de sentido, de direção e de significados. Flutuam porque já aprenderam o real valor das coisas e, portanto, não se prendem a pequenezas que somente fazem prender àquele lugar. A leveza conquistada faz as cascas das árvores caminharem na direção correta. E como são leves, maleáveis e silenciosas, chegam logo ao destino. Assim são as cascas das árvores.
A vida é um constante caderno de exigências e de conquistas a ser buscado. Um constante resolver de problemas, conflitos. Um constante despertar de gratidão pelos caminhos já percorridos. Um problema que entra, e outro que sai resolvido. Assim é a vida. E mesmo aquele que se vê sem problemas, o que desconfio, viver, em si, é um problema. Um problema na complexidade, nas inúmeras interfaces e nas escolhas oferecidas. Por isso é fundamental exercitar o peso e a leveza na medida certa, na medida que a vida nos pede.
As cascas de árvore caminham e alcançam distâncias porque se deixam conduzir. Confiam. Os blocos de granito afundam porque apenas querem controlar. São centralizadores. Possessivos. Não aprenderam a delegar. O excesso de controle nos faz usar a nossa força de forma desnecessária, o que comprova a nossa fraqueza. Provamos nossa força pela autoridade da nossa leveza em nos deixar conduzir pela vida. Provamos a nossa força não medindo forças com ela. Não propondo quedas de braços com ela. Se assim fizermos, perderemos. Ela sempre foi campeã na luta de queda de braços. Acho que não deveríamos pagar para ver. Não é necessário.
Lutar contra a vida é se colocar no alvo para ser atingido por ela. É preciso saber quais brigas comprar e quais não comprar. Sabedoria e discernimento ainda são essenciais para nós.
imagens tiradas da internet
Estarmos na condição de granito, às vezes, é necessário. Mas só às vezes. Que a gente saiba que há hora marcada para sairmos de lá. Não podemos ficar lá durante muito tempo. O “...na vida...”, como trouxe Renoir, é muito tempo. E ele já nos chamava a atenção quando nos trouxe este pensamento.
Sair da condição do granito significa abrir mão do poder para alcançar o viver. Quando abrimos mão da inflexibilidade para acessarmos a maleabilidade.
Ao contrário do que se pensa, a fragilidade está na beleza do granito. E a força na singeleza das cascas das árvores.
Buscar ter, sempre, o comando nas mãos nos afundará como granitos. Aprender a confiar e a garantir que o outro também possa falar é caminhar como a leveza das cascas das árvores.
A vida é uma escolha e uma escola. Uma escola de escolhas. Uma escolha que faz escola em nós. Uma escola com escolhas. Uma escola para escolhas. Os blocos de granito e as cascas das árvores representam esta dualidade da vida. Eles significam que temos opções na vida. Que bom. Não poderemos responsabilizar e nem colocar a culpa em outra pessoa que não em nós mesmos.
Quando a vaidade conceder espaço para a reflexão, talvez nossas similaridades comecem a se parecer mais com as cascas das árvores do que com os blocos de granito.
Muitas leituras podem ser feitas a partir desta alegoria do granito e das cascas. Mas a que propus, aqui, foi a de nos incomodarmos com o excesso que o peso dos blocos provoca, e que diariamente colocamos sobre as nossas costas e sobre as costas dos outros, e sentirmos falta da leveza das cascas que, remotamente, fazem parte do nosso cotidiano.
Podemos fazer mais, se repensarmos o nosso lugar no mundo. Podemos fazer mais se este mundo tiver um significado mais forte para nós.
Estarmos na condição de blocos de granitos é fundamental para uma atuação rápida e precisa, mas não um lugar para estarmos na vida. Por isso, Renoir chamou a nossa atenção por meio da sua arte. Que a leveza das cascas das árvores nos represente mais e que possamos desfrutar deste dançar que, somente o pouco peso, poderá nos proporcionar.
Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Fernando Pessoa, poeta imprescindível para o bem viver, que diz:
“Às vezes, ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido.”
Que a gente se permita mais o ouvir do vento. É ele que movimenta as cascas das árvores nas quais pisamos sem perceber, ou as que chutamos para que saiam do nosso caminho. Não percebemos que, somente elas, se vividas e permitidas por nós, nos mostrarão o real e o verdadeiro sentido de leveza. Leveza na alma. Leveza na vida. Uma escolha.
O vento como condutor para a leveza. O vento como um dos caminhos que nos levará como as cascas das árvores. Um convite feito. Um convite aguardando a nossa resposta. Recusá-lo será desperdiçar a sensação de sentir os nossos pés flutuando por este vento, e de se deixar levar como as sábias cascas das árvores. Aceitá-lo será fazer as pazes com a vida que, feliz, nos convidará para fazer lindos passeios por lugares que, presos pelos blocos de granito, jamais seriam possíveis.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

A visão do galinheiro

No livro, Cadernos de Lanzarote II, de José Saramago, o autor diz que quando era adolescente, costumava ir à ópera. Sem pagar. O lugar era o Teatro Nacional de São Carlos. O porteiro o deixava entrar quando faltavam poucos minutos para a sessão começar. Nesse momento, os “pagantes”, dizia Saramago, já haviam ocupado os seus lugares. O porteiro, então, o conduzia pelas escadas até o último andar, o lugar destinado aos pouco abonados, como ele. Lá, não havia acesso aos camarotes e nem aos lugares pagos. Eram os chamados galinheiros que, na fala de Saramago, dispensa explicações para o termo. Como ele não havia pago pela entrada e, muito menos tinha o dinheiro para tal, seu lugar era no galinheiro. E mesmo sendo um lugar nada convidativo, ainda havia o risco de não ter lugar para se sentar.

Do galinheiro, continua Saramago na sua fala, as pessoas se apertavam para conseguir enxergar o espetáculo. Por mais que fizessem isto, não era possível ver o palco por inteiro. Quando os atores se deslocavam em cena, dizia, era preciso aguardar voltá-los para a antiga marcação, no palco. Somente assim se poderia vê-los novamente. No entanto, enquanto observava que muitas coisas o impediam de ver o palco, os atores, a obra, percebeu que um suntuoso objeto estava bem a sua frente: uma coroa real, dourada, símbolo que sobrou das monarquias, reduzida a um adorno qualquer. Mas, como ele estava no galinheiro, somente conseguia ver a parte de trás deste objeto, enquanto os pagantes e os que ocupavam os camarotes e cadeiras requintadas, conseguiam enxergar a parte da frente deste objeto, com toda a ostentação que uma coroa impõe.

Nas palavras de Saramago, o que ele via era a ausência daquela coroa, e não a coroa em si. O que havia, naquilo que um dia foi uma coroa, era muito pó e teias de aranha, que também marcavam presença no objeto e naquele lugar. Mas as pessoas dos camarotes não viam esta poeira e estas teias. Viam a parte nobre e bonita da coroa, o que foge à realidade.

Neste momento, Saramago compreendeu que o ponto de vista observado do galinheiro é indispensável se, realmente, quisermos conhecer a coroa.

A obra de Saramago segue com muitos descortinares e com inúmeros convites para mudarmos o nosso olhar de lugar. Convites que nos fazem repensar o nosso estar e o nosso tamanho, no mundo.

Na perspectiva de um simples espectador que tenta assistir a uma peça de teatro num lugar sujo, empoeirado, mau cheiroso e apertado pode parecer uma aventura e uma angústia. Um sofrimento e um castigo, digamos assim, por não fazer parte do grupo seleto dos que podem. Como ele não pode, se submete. Um simples espectador talvez pense desta forma. Vê a peça, da forma que dá, e, amassado, busca um espaço entre os que vão a sua frente, espremidos. Nesse estado de ausência que vive, não consegue ir além. Acredito que temos um pouco deste espectador dentro de cada um de nós.

Porém, na perspectiva de um espectador como Saramago, estar no galinheiro do teatro é uma excelente oportunidade para dar uma rasteira na vida, no sentido figurado. Ao invés de raiva, nojo e frustração, olhar, foco e discernimento. Quando assim agimos, o que não é das tarefas mais simples, estar num galinheiro começa a fazer sentido. A vida, com frequência, gosta da ironia e se diverte nos colocando em alguns galinheiros. Mas se soubermos aceitar que estamos num deles, sairemos rapidamente. A vida não tem interesse em nos deixar em lugares cujo aprendizado não se dará. Se lá nos colocou, é porque alguma pendência temos com os galinheiros da vida.

Do galinheiro, podemos enxergar o lado da coroa que ninguém quer ver, assim como disse Saramago. Permite-nos ver o lado que todos tentam esconder. E pior: além de esconder, o fingir que ele não existe. O galinheiro, apesar de seu aspecto feio, ruim e barulhento, é um lugar privilegiado, cuja percepção se dará apenas aqueles que vão a frente.

Somente aquele que já entendeu o sentido de dar toda a volta, compreende o valor de se passar, pelo menos uma vez na vida, pelo galinheiro.

O galinheiro é um lugar que existe dentro de cada um de nós. Assim como o camarote, também. Galinheiros cheiram mal, mas nos dão a visão do todo. Somente nos enxergamos se tivermos a generosidade de aceitarmos o convite da vida para darmos uma passadinha lá. Camarotes existem para contemplarmos a arte. No camarote, enxergamos o resultado de um belo trabalho. Mas para valorizá-lo, somente passando pelo galinheiro.

Galinheiro é o convite para dar toda a volta em nós. É a reflexão para a existência de nossas teias e as de aranhas, também. A poeira e pó que insistem em nos lembrar que há tempos estamos devendo uma visita para nós mesmos. Que denunciam a nossa ausência, a nossa falta de interesse para vermos e conhecermos os nossos bastidores. Que reafirmam que não estamos interessados em subirmos os degraus da nossa construção. As teias das aranhas que nos provocam dizendo que até elas dedicam tempo para construírem suas casas. E nós? Como construir as nossas casas sem passarmos ao redor de nós mesmos? Sem querermos conhecer o galinheiro que habita em nós e que nos dará a visão do todo? Para quê, mesmo, ver o todo, se apenas parte dele será mostrado?

Para conhecermos as coisas é preciso dar a volta. Dar a volta toda. E muitas voltas.

O nosso olhar, de verdade, faz a diferença.  Se passarmos a olhar para a parte de trás de nossas coroas, vamos verdadeiramente conhecê-las. Brigamos por coisas que nos enfraquecem, mas acreditamos que nos fortalecem justamente por valorizarmos apenas os camarotes. Os galinheiros não nos interessam. Mas são eles que nos formam. E mesmo assim, os deixamos esquecidos com entulhos, poeiras e teias.

Escondemos nossos entulhos no galinheiro e assim ele vai ficando inadentrável porque queremos dar conta de tudo. Saber tudo. Ser tudo. E como isto é impossível, priorizamos os camarotes. Afinal, como não querer estar lá? A visão é melhor, mesmo. Mas o que nos esquecemos é que a visão é construída a partir do galinheiro. Simples assim. E abrir mão dele é abrir mão da gente mesmo.

Daí os extremos e barulhos. Os desequilíbrios. Ainda é necessário fazer barulho para ser ouvido. Por isso os galinheiros são tão barulhentos. Eles apenas querem ser ouvidos por nós.

É preciso ir contra a nossa própria inércia para podermos acessar o nosso galinheiro. No começo, ele estará escuro, sujo, feio e com ar de abandono. Mas nada que uma lâmpada nova não dê conta de iniciar uma iluminação há tempos necessária. É preciso lutar por este espaço esquecido que tanto tem a nos ensinar. Somente lá poderemos dar a volta em nós mesmos e assim, saber quem somos. Lutar pelo espaço não é abrir mão dele. Os galinheiros existem em nós, e se soubermos ouvi-los, a nossa cena ficará mais bela e verdadeira.

Nossas singularidades nos representam. Sermos quem somos somente nos fará fortes. Mas somente do alto dos nossos galinheiros teremos esta visão. Minha singularidade está representada na poeira que esqueci lá. A sua também. Enxergar esta poeira me fará mais forte porque terei sobrevivido a ela. A poeira, as traças e as teias não querem medir suas forças com a gente. Apenas querem dizer o que buscamos não ouvir durante todo o tempo em que estamos ou estivemos nos camarotes.

Camarote é um lugar de refresco e de descanso. Silêncio.

Galinheiro é um lugar de trabalho e de movimento. Barulho.

O silêncio e o barulho são as nossas melhores respostas. São os nossos mapas. Ouvi-los será como receber os aplausos da vida nos cumprimentando.

Hoje temos uma só narrativa. Não podemos ter uma só narrativa. O camarote não pode nos representar, exclusivamente. Cresce-se, e muito, do alto de um galinheiro. Aliás, desconfio fortemente, que apenas de lá se cresce. Por isso, Saramago é tão grande. Ele soube, sempre, contemplar a sabedoria do galinheiro, nem que fosse de um simples teatro.

Os camarotes são expostos. E quanto mais exposto, mais banalizado porque todos querem estar lá. Um lugar de poucos aprendizados e de muitas armadilhas. Se soubéssemos disto, talvez mudássemos de opinião ao buscarmos apenas este lugar para estar. Podemos estar em vários lugares. Isto não nos banaliza.

Os galinheiros são recuados. Ninguém quer mostrá-lo em sua propriedade. E por não serem expostos, não são banalizados. São únicos. Proporcionam-nos um conhecimento que, se aproveitado, se transformará em sabedoria. Mas isto é para poucos. É preciso saber apreciar a beleza de um galinheiro. Aprender a ver esta beleza que é nativa em nós. Mas que insistimos em escondê-la. Beleza tem a ver com a forma como eu atuo no mundo. E quando entendermos isto, teremos o poder a nosso favor, e os nossos galinheiros serão lugares mais visitados, mesmo que os camarotes estejam a nossa disposição.

Somos frágeis em nossas singularidades. Somos sensíveis em nossas particularidades. Aceitar isto é fazer as pazes com a vida. Nossas singularidades e nossas particularidades nos constroem e destroem a cada dia. Somos a soma de todos os eus que vivemos. Queremos ter uma narrativa: os camarotes. E não podemos ter uma só narrativa. Por isso, os galinheiros deveriam ser mais visitados por nós.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Nietzsche, filósofo alemão, que diz:

“Torna-te aquilo que és”.

Ao aceitarmos a trajetória que a vida nos convida a seguir, a do camarote e, principalmente, a do galinheiro, nos tornaremos naquilo que somos. Fora deste caminho, apenas nos camarotes da vida, no que quer que tenhamos nos tornado, será falso, raso e sem a visão do todo. Algo completamente distinto do que trouxe Nietzsche, nos provocando ser e exercer a nossa essência, e do que trouxe Saramago, nos convidando a dar a volta em nós mesmos para que possamos, de verdade, nos conhecer. E isto somente do galinheiro. Lugar algum da vida nos dará uma visão tão privilegiada.

domingo, 13 de maio de 2018

A eficiência ineficaz

A palavra eficiência pede férias. Não há uma palestra, treinamento, evento, reunião, trabalho que ela não seja pronunciada e requerida. Afinal, por meio dela, buscamos melhorar as nossas entregas, os nossos números, os nossos trabalhos. Ela nos ajuda a enxergar o que podemos melhorar naquilo que não vai bem.

Sempre quando ouço esta palavra me lembro da Khazzoum, uma professora de Língua Portuguesa que tive, na época da Faculdade. Ela sempre falava que o bom e velho dicionário deveria nos fazer mais companhia. Que “consultá-lo, era um sinal de inteligência”, dizia.  Lembro-me dela porque esta é uma daquelas palavras que utilizamos, indevidamente, como sinônimo de eficácia. E não é. Elas até podem ter propriedades que se entrecruzam. Mas não são sinônimos.

Eficiência é fazer bem alguma coisa. É ser rápido, preciso, conciso. É fazer bem. Cumprir o seu dever. Eficiência é dar bons resultados. Alguém competente e produtivo é alguém eficiente. Faz muito com poucos recursos e ainda com qualidade.

Eficácia é fazer a coisa certa, diferentemente de fazer certa a coisa. A eficácia, por se preocupar em fazer o que precisa ser feito, busca resultados relevantes e sustentáveis. Alguém eficaz produz um resultado que é esperado dele. Tem foco, sabe aonde quer chegar. Realiza o que precisa ser realizado, e não apenas o que foi pedido para realizar.

Eficiência é fazer certo as coisas. Eficácia é fazer as coisas certas.

Por estas e outras que, de verdade, um dicionário faz falta. Quando comparamos estes dois significados, os sentidos se descortinam e reflexões emergem.

Podemos, então, ser extremamente competentes fazendo o inútil e o desnecessário? Aquela triste sensação que certamente já tivemos ao enxugarmos gelo, na vida, acho que dá conta de nos mostrar que sim, podemos ser extremamente competentes fazendo o que não precisa ser feito ou o que não deveria mais ser feito.

imagem tirada da internet

Pensar que estamos fazendo coisas supérfluas e que muito do nosso tempo está sendo desperdiçado com o inútil e com o desnecessário é assustador. Principalmente porque corremos o tempo todo achando que, desta forma, daremos conta de tudo o que precisamos fazer. E quem falou que tudo o que precisamos fazer precisa ser feito?

Camuflamos nossas entregas sob o nome de eficiência. Muitas delas são bem-vindas e têm a sua utilidade, mas muitas não precisariam ter sido feitas. Ou seja, teríamos sido eficazes, e não, somente, eficientes.

Quando refletimos sobre esta questão, percebemos que a alienação sempre esteve ao nosso lado, nos fazendo companhia. Somos eficientes, mas não capazes de atentar para o que está sendo entregue e o porquê desta entrega. Ser eficiente é fundamental se quisermos nos aprimorar como seres, como profissionais. Mas apenas a eficiência não nos levará adiante. Ela nos deixará no meio do caminho, cheio de curvas, atalhos e placas nos indicando diversas direções cujo sentido e o significado nos escaparão.

A eficiência é fundamental no mundo da operação, mas a eficácia é essencial no mundo do sentido e da essência. Há eficiência sem eficácia. Porém, não há eficácia sem eficiência.

É preciso que estes falsos sinônimos comecem a nos incomodar. No incômodo, buscamos ajuda e conhecimento, mesmo num bom e velho dicionário. Ao começarmos a nos debruçar sobre o real sentido das palavras, a nossa vida vem atrás, querendo participar e se tornar mais eficaz, uma vez que eficiente ela já sabe que somos.

Gostamos do elogio. Somos vaidosos, orgulhosos e competitivos, muitas vezes. E a eficiência, se atingida, nos fará receber elogios, o que alimentará a nossa vaidade, o nosso orgulho e nos fará acreditar que competir é a melhor forma. Que estar no pódio é o melhor lugar.

Enxergamos alucinações do alto de um pódio e vemos coisas inexistentes em função das nossas visões deturpadas. Quando descemos do pódio, a nossa visão se amplia. Quando estamos no pódio a nossa visão se encurta.

A eficiência está para o pódio, assim como a eficácia está para a descida do pódio. Nada contra vitórias e medalhas. Mas podemos ser vitoriosos e ganharmos as nossas medalhas além desse lugar. E para enxergarmos sentido em outros lugares para alcançarmos as nossas vitórias, somente atingindo a eficácia em nossas vidas.

Conhecemos a eficiência porque somos eficientes em muitas situações de nossas vidas. Fundamental e necessária. Mas avançar para que a nossa eficiência esteja em sintonia com a nossa eficácia, é a nossa lição de casa que, a propósito, está atrasada para ser entregue.

Eficácia é a moeda de recompensa que a vida nos presenteia por ter visto o nosso esforço de desprendimento do nosso orgulho, vaidade. Pois não há como buscar a eficácia, em nós, sem encontrarmos estes ilustres visitantes tão confortavelmente alojados, dentro da gente.

Quando passamos a buscar a eficácia em nossa vida, uma angústia aflorará e dará o ar da graça. Mesmo conscientes da necessidade da busca da eficácia, precisaremos, muitas vezes, continuar no mesmo modelo por falta de condições para que a mudança se exerça. Ainda não nos é possível desvencilharmos destes velhos modelos. O fato de buscarmos as nossas reflexões, os nossos avanços e o nosso desenvolvimento não significam que os conseguiremos imediatamente. Por isso, mesmo fazendo nossas reflexões em busca da nossa eficácia, ainda assim, nos encontraremos não sendo eficazes, na vida. O tempo, a consistência da nossa busca e a regularidade darão conta de nos recolocar no caminho. Só não podemos desistir. Foi muito trabalhoso e custoso chegarmos até aqui.

Falhamos, muitas vezes, nas nossas entregas que seguem ineficientes. Mas corrigimos rapidamente a rota e seguimos. Temos facilidade de mapear os erros e reorganizar o caminho. Mas temos extensas dificuldades para perceber que ser eficaz está longe de ser eficiente.

Eficiente está no nível do intelecto, da razão, do fazer. Eficácia está no nível da emoção, do sentir, do propósito.

Para sermos eficientes, basta talento, vontade, disciplina, foco, prazo, atenção. Para sermos eficazes, no mínimo, é preciso nos conhecer. Sem isto, como fazer o que, de verdade, precisa ser feito?

Ser eficiente é fazer bem algo. Nossas mãos e mentes serão as grandes mestras. Ser eficaz é fazer a coisa certa, o que precisa ser feito. É um trabalho interno. É ouvir o que o coração tem a nos dizer. É fazer uma caminhada interna, sem guia e sem bússola.

Somos eficientes para entregar um trabalho. Mas ineficazes para perceber a necessidade do colega. Eficientes para cumprir prazos. Mas ineficazes para perceber que estes mesmos prazos não são o suficiente para que o trabalho tenha relevância e sustentabilidade.

Somos eficientes para apontar o erro. Mas ineficazes para o perdão. Eficientes para ganhar dinheiro. Mas ineficazes para fazê-lo como meio para algo maior, e não como um fim, em si.

Somos eficientes para a realização. Mas ineficazes para a compreensão. Eficientes na teoria. Mas ineficazes na prática.

Somos eficientes para a entrega de mais um brinquedo para o nosso filho. Mas ineficazes para entender a real necessidade dele. Eficientes para a realização de um curso. Mas ineficazes para aplicarmos o que aprendemos lá.

Se queremos ser eficientes, basta aprimorar a nossa técnica. Se queremos ser eficazes, imprescindível será aprimorar o nosso olhar.

Muitas vezes, somos eficientes apenas por conveniências e sustentação de nossas redes de políticas. Mas não há como sermos eficazes passando por este mesmo caminho. A eficácia exige caminhos distintos, mais tortuosos, menos lineares e cheio de incertezas. Um caminho difícil que somente aquele que iniciou sabe do que se trata. Mas ao caminhar por ele, a beleza da vista será indescritível.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Peter Drucker, considerado o Pai da Administração Moderna, nascido no início do século XX, que diz:

“Não há nada tão inútil quanto fazer eficientemente o que não deveria ser feito”.

Que a gente não fuja desta reflexão. Apesar de incômoda, ela é necessária. Quando descobrimos que fazemos coisas de forma eficientes, porém desnecessárias, e que a eficácia passa, obrigatoriamente, por uma revisitação a nós mesmos, o caminho fica mais leve.

E mais eficaz.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Os Riscados da Vida

Quando eu era criança, estudei, dos seis aos oito anos, num colégio chamado Dr. Celso da Gama, em Santo André. Um colégio cujas lembranças sempre estão presentes e que me trazem o cheiro da minha infância.

Lá, tive uma professora que, além de ensinar muito bem, como os outros que tive, me ensinou algo muito especial que carrego para a minha vida: a valorização dos meus riscados, dos riscados da minha vida.

Até os oito anos, não usei caneta na vida, apenas lápis. Em sala, no Celso da Gama, apenas podíamos usar lápis, e este era o combinado entre nós e a professora: “caneta só quando vocês forem grandes, ela dizia”. Obviamente um entre nós perguntava a ela: “e quando seremos grandes, professora?”. E ela, com paciência e um sorriso no rosto, respondia: “no ano que vem, a partir da terceira série, vocês já serão grandes. Aí, sim, vocês poderão usar a caneta.” Quando ela dizia isso, crescia um sentimento de responsabilidade dentro de mim. Uma mistura de ansiedade boa, aquela que estimula, e um sentimento de importância: afinal, no ano que vem eu seria grande e poderia usar a caneta.

O combinado de usarmos apenas lápis até esta idade era porque errávamos bastante, corrigíamos muitas coisas e não tínhamos, ainda, aquela destreza nas mãos que nos possibilitaria, um dia, escrevermos com firmeza e linearidade. Portanto, a borracha, era uma amiga diária e constante. Se escrevêssemos com canetas, os cadernos ficariam terríveis devido a tantas correções. Então, a forma que a escola encontrou foi determinar esta regra, vamos dizer assim, de utilizarmos lápis até os oito, e após esta idade, maiores, iniciarmos os nossos estudos podendo usar as canetas. Certamente continuaríamos a errar bastante a partir dos nove anos também, mas foi esta a regra adotada pela escola.

E assim seguimos. Errando e apagando bastante. Usando os nossos lápis até os oito anos. Vivíamos e estávamos num contexto no qual o erro era bem-vindo, aceito. Nunca levei uma bronca, sequer, porque eu havia errado. Nem mesmo meus colegas. Também nunca fomos repreendidos por ficarmos com as folhas dos nossos cadernos bem marcadas de tanto usarmos as borrachas. Algumas folhas dos meus cadernos chegavam a ficar escuras de tanto apagar. E como escrevíamos com força e apertávamos muito o lápis no papel, mesmo utilizando a borracha, as marcas ficavam. E ao escrevermos por cima, pareciam pequenos borrões nos cadernos. Bonito não ficava. Mas o significado de tudo aquilo já começava a se desenhar naquelas pequenas folhas escritas por mãos tão pequenas.

Lembro-me da professora passando de carteira em carteira. Eu era uma das que apertava muito o lápis no papel. E na hora de apagar, que eram muitas, os borrões ficavam marcados e manchados. Aí eu apertava mais ainda a borracha para ver se os borrões diminuíam. Apenas ouvia a professora dizer para mim: “não faz mal que você escreveu errado, é só apagar com calma e reescrever na mesma linha o certo, agora. Está tudo bem.”

Esta atitude, mesmo sem percebermos na hora e talvez sem intenções dirigidas por parte da professora, nos fazia ver o erro como parte do processo, e não como algo a ser camuflado e odiado. Não tínhamos a preocupação com o erro. De forma espontânea, aprendíamos que ele fazia parte da nossa construção, como uma etapa fundamental para nos levar adiante. A todos.

Nossas marcas, a lápis, nas folhas do caderno, mesmo apagadas, ficavam ali. Nossa história estava sendo respeitada e preservada.

A intenção da escola e dos professores, talvez, tenha sido, nas questões práticas, poupar um pouco a estética dos nossos materiais até que tivéssemos mais condições, domínio e autonomia para conquistarmos o direito de usarmos canetas. Mas também, mesmo sem propósitos previamente delimitados, nos fizeram crescer e estudar num ambiente no qual os erros, os borrões, as manchas que os grafites deixavam não eram vistos como problemas, mas sim como etapas da nossa construção cognitiva e social. Como o medo não fazia parte, tínhamos tempo de fazer o que era importante: nos conhecer por meio da nossa escrita, dos nossos erros e da nossa produção.

Com a ausência do medo, enxergávamos os nossos riscados, borrados e manchados, nos nossos cadernos, de forma espontânea.

imagem tirada da internet

O que aquela professora talvez não soubesse, na época, é que ela estava ajudando a construir a nossa autoestima. Víamos os nossos borrões, mas não nos envergonhávamos deles. Ela estava ajudando a construir a noção de trajetória e de caminhada, dentro de cada um de nós. Quando enxergávamos os nossos riscados e borrados na folha de papel, sabíamos que já tínhamos passado ali. E isto fazia e faz toda a diferença. Ela estava nos ajudando a valorizar a nossa própria história: uma história de riscados, borrões, manchas, acertos e consertos que estávamos iniciando, naquela época. Com oito anos de idade, os borrões, manchas, acertos e erros ainda são pequenos. Mas existem. E os riscados nas folhas do caderno darão conta de nos mostrar que a nossa caminhada foi iniciada.

Quando sabemos que passamos ali, o medo recua e a nossa coragem se anuncia. Quando sabemos que passamos ali, e os nossos riscados e borrões não deixam dúvidas, o caminho de volta fica mais fácil.

Os riscados, os borrões, as manchas, os acertos e os erros são as marcas dos nossos pés no chão. Reescrever sobre eles os outros passos que damos, também deverão ser feitos com os nossos pés no chão. Mas para que nossos pés caminhem mais firmes, será preciso ter acesso e enxergar os nossos riscados, os nossos borrões, as nossas manchas. E isto somente escrevendo a lápis e, de preferência, com professores que enxergam valor nisso e que não se importam com a falta de estética que terá o nosso caderno, após apagar algo escrito.

O tempo passou, fui para o ano seguinte e conquistei o direito de usar canetas. Mas confesso que nunca abandonei o uso do lápis. Minhas memórias sentem a falta dele, e ele sempre está ao alcance das minhas mãos. Ele me faz lembrar que a construção é possível, e que o erro é só uma etapa imprescindível para acerto. Gosto de escrever a lápis para lembrar que, mesmo eu errando e apagando, é preciso valorizar o traçado borrado e manchado, e saber, acima de tudo, que passei ali e que minha trajetória vem de longe.

Quando valorizamos os traçados tortos, errados e manchados, o próximo passo é sempre mais fácil. E ter tido, inclusive, professores que valorizaram estes traçados tortos e borrados, com manchas aparentes mesmo eu escrevendo por cima, fizeram toda a diferença.

Assistindo a um programa de televisão anos atrás, comecei a acompanhar a entrevista de um artista plástico que desenhava algo muito bonito. Como minha habilidade para desenho é inexistente, a habilidade e a rapidez com que ele desenhava me chamaram a atenção. Foi isto o que prendeu a minha atenção. O nome dele era Amílcar de Castro. Durante a entrevista, ele começou a dizer que trabalhava a superfície das coisas. E que somente desta maneira, chegaria à forma. Neste momento, parei de prestar atenção ao que ele desenhava, para prestar atenção ao que ele dizia. Enquanto desenhava, disse, também: “você tem que sempre trabalhar com um lápis e escrever bem forte, para ter riscados fortes. Porque se você errar e tentar apagar, você deixará a marca do lápis, do riscado no papel, para saber e se conscientizar de que você passou por aqui.” Acho que ele também escreveu muito a lápis, quando criança.

Lembrei-me, imediatamente, daquela professora. Uma pessoa simples, mas que nos trouxe aprendizados profundos. Ouvindo aquela entrevista, o famoso lápis e seu contexto me vieram à mente. Um sentimento de gratidão me preencheu por ter podido conhecê-la e mais que isto: desfrutado de seu conhecimento que carrego até hoje, nas escritas com os meus lápis. Como disse Amílcar de Castro, “...se você errar e tentar apagar, você deixará a marca do lápis no papel, para saber e se conscientizar de que você passou por aqui.” Foi o que ela fez conosco, talvez sem perceber: nos permitia apagar os nossos “erros”. Mas como eram escritos a lápis, nunca mais podíamos dizer que não havíamos passado por ali. E isto fez toda a diferença. Ajudou-nos a construir a nossa forma trabalhando na nossa superfície, como disse o artista plástico. Gratidão.

Com a tecnologia e a facilidade de escrevermos tudo diretamente no computador, inclusive as correções são feitas imediatamente, os ganhos existem, claro. Mas algo de muito valioso se perdeu: a memória dos nossos erros. Tão importantes quanto os nossos acertos. Fazemos de tudo para evidenciarmos os nossos acertos, mas fazemos de tudo, também, para apagarmos a história dos nossos erros. É uma pena. Os nossos erros são vistos por meio das marcas. E como deixar marcas escrevendo apenas com canetas? Nossas memórias nos constroem.

O lápis respeita a nossa trajetória, nos relembra que passamos ali e nos mostra, com marcas, nos riscados: os riscados da nossa vida.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento antigo, que diz:

“Quando você pensar em desistir, se lembre do trabalho que deu chegar até aqui.”

Desistir é uma das conquistas da maturidade. É importante desistir daquilo que não nos faz grandes, e que insiste em nos remodelar com moldes retrógrados. Uma desistência calculada e consciente porque sabemos que aquela rota deve ser desprezada. Mas nunca desistir por falta de crença de que podemos, conseguimos e devemos. Na dúvida, vamos olhar para os Riscados da nossa Vida. Eles não nos permitirão abandonar o caminho. Mas para isso, deveríamos ter escrito bastante a lápis quando criança, o que certamente ocorreu.

Um lápis e uma borracha: instrumentos de Vida. Para os Riscados e para os Acertos. Instrumentos solidários, atemporais, úteis e, particularmente, descortinadores de horizontes, como disse o poeta Manoel de Barros.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Nossas folhas secas

Cuidar do nosso jardim nem sempre é uma tarefa fácil e simples. Para quem tem, sabe que uma simples planta requer atenção, dedicação e cuidados. Que dirá um jardim. Por conta da correria diária, o que não poderia ser desculpa, deixamos nosso jardim ou nosso pequeno vaso de plantas aquém do merecido. E no final de semana, com mais tempo, regamos e, se lembrarmos, colocamos um pouquinho a planta ao sol. O nosso jardim recebe uma visitinha nossa, meio apressada, e tiramos algumas folhinhas secas e amareladas, caídas ali.

imagem tirada da internet

Cuidar do nosso jardim, e de tudo o que há nele, é tarefa fundamental e intransferível. Podemos até contratar um jardineiro. Mas ele imprimirá a identidade dele lá, e não a nossa. Ele até pode nos ajudar a cuidar, mas o principal trabalho deve ser feito por nós, por nossas mãos. Um trabalho pessoal, diário e intransferível.

Quando nós mesmos cuidamos do que é da nossa responsabilidade, tudo flui e parece estar no lugar. Com o nosso jardim não é diferente. Cuidado e sendo atendido como se deve, floresce. Marginalizado e demandado a terceiros, empobrece e entristece.

Ao visitar o nosso jardim com frequência, e cuidar dele, as folhas secas caídas são facilmente percebidas por nós. E se neste momento, a maturidade estiver sendo uma de nossas principais companheiras de jornada, abriremos um bom e velho saco e as colocaremos lá, tendo o cuidado de abaixarmos, com toda a humildade que ainda não temos, para pegá-las no chão. Outras, mais rápidas, se deixam guiar pelo vento, e vão mais longe. Apressar o nosso passo será preciso se quisermos alcançar as que estão distantes. Outras vão para debaixo do banco do jardim, e ali, se não percebermos, ficarão um bom tempo. Após, juntamos todas elas dentro do saco e ouvimos aquele barulhinho característico das folhas secas: um ruído incômodo nos lembrando da limpeza ainda não realizada por nós e do trabalho a ser feito.

Trabalho árduo, nossas mãos ficam doloridas e machucadas. Mesmo colocando luvas. A preguiça e a procrastinação são duas grandes aliadas do amanhã. É preciso tomar cuidado com elas. Possuem discursos mansos e convincentes.

Enchemos um saco, e percebemos que vamos precisar de outros para acomodar todas as folhas secas e matinhos do nosso jardim. E aquele barulhinho seco da planta dizendo que “há algum tempo você não passa aqui” faz eco em nossos ouvidos.

Aquele que frequentemente visita o seu jardim não abre espaço para que folhas secas se acumulem. A limpeza diária é uma grande aliada daquele que já compreendeu que o jardim é de responsabilidade dele. É até prazeroso, se souber enxergar isto.

Aquele que não frequenta o próprio jardim ou vai até ele esporadicamente, corre o risco de não mais reconhecê-lo ao vê-lo. E não reconhecer algo é abrir mão de tudo aquilo que foi construído. Um abrir de mãos da relação com a gente mesmo que favorece o enorme acúmulo de folhas secas e barulhentas.

É preciso, portanto, conhecer, reconhecer e compreender o nosso jardim, assim como a nossa relação com ele. Quando desta forma fazemos, continuamos íntimos de nosso jardim e sustentada em bases sólidas a nossa relação com ele, mesmo que algumas folhas secas estejam perdidas e esquecidas. A solidez da relação que temos com o nosso jardim nos fará irmos em busca de nossas folhas secas e darmos o devido destino a elas.

Que a intensidade e a constância sejam as armas contra a preguiça e a procrastinação no momento de limparmos o nosso jardim e de, mais importante, mantermos a frequência de limpá-lo e de visitá-lo.  Sem desculpas. Sem culpar o outro pelas nossas folhas secas. Sem jogá-las para o quintal do nosso vizinho. Podem nunca enxergarem os nossos avessos. Mas eles existem.

O cuidado que temos para com o nosso jardim está ligado ao compromisso que mantemos com ele. A solidez se firma no cuidado. Um não se dá sem o outro.

Cuidar, cuidado e compromisso criam uma relação de confiança e nos dão a condição para Ser. O contrário cria o vazio e a solidão.

Folhas secas representam a ausência. Folhas saudáveis representam a vida.

Folhas secas representam a falta de cuidado consigo, com o jardim e com a própria vida. Folhas saudáveis representam o acordo sendo seguido. As respostas sendo dadas. A atenção sendo dispensada.

Folhas secas representam o descaso, o esquecimento, o depois, a vergonha, a vaidade. Folhas saudáveis representam a plenitude, a dimensão do espaço que ocupamos no mundo, as nossas bases muito bem estruturadas.

Folhas secas. Folhas saudáveis. Possuímos as duas. De forma frequente e abundante. As secas nos chamam a atenção para o que não está sendo feito. As saudáveis nos parabenizam por termos acessado o caminho certo. Soubemos ler as placas corretamente. As secas fazem barulho porque somente assim elas serão ouvidas. As saudáveis não fazem barulho porque já conquistaram seu lugar ao sol.

As folhas secas possuem muito a dizer, se soubermos ouvi-las. Talvez, desta forma, elas se afastarão dos nossos jardins. E se afastando, é como se as tirássemos das margens da vida aonde as colocamos durante todo o tempo da nossa ausência, em nosso jardim. Uma ausência notada pelas folhas.

Um tempo de relevante ausência que foi capaz de torná-las secas.

Secas, somente nos resta recolhê-las e, jamais, jogá-las para o quintal do nosso vizinho. A maturidade não nos permitirá fazer isso, não é mesmo? De qualquer forma, somente na hora de limparmos os nossos jardins é que saberemos como, verdadeiramente, agiremos. Afinal, nos conhecemos mais observando as nossas reações do que as nossas ações. Na ação, estamos impregnados pelo estatus, pela vaidade, pelo querer aparecer. Queremos mostrar um belo jardim. Mas na reação, quando nossas folhas secas nos acusam, não temos tempo de pensar.  E, infelizmente, o quintal do nosso vizinho pode se oferecer como uma solução eficiente. Quem vai dizer que aquelas folhas não são do jardim dele?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Millôr Fernandes, que diz:

“Viver é desenhar sem borracha.”

Estejamos firmes no recolhimento de nossas folhas secas e no cuidado do nosso jardim. Durante a vida, receberemos, apenas, sacos para recolhermos as nossas folhas secas, e méritos pelas saudáveis que construímos.

Mas nunca borrachas, para apagarmos o que quer que seja. Viver é, em uma análise possível, ter atenção ao caminho que se constrói.

Um caminho que não permite voltas e nem ensaios.