Vivemos tempos estranhos. Vivemos
tempos felizes. Estranhos e felizes. Felizes e estranhos.
Consideramos o outro como
estranho a nós. Não nos é pedido sermos amigos íntimos, mas por que a dor e a
angústia dele não nos representam? Fazemos questão de considerar o outro como
estranhos.
Um distanciamento provocado,
assistido e, particularmente, calculado. Mantermos a distância das dores do
outro nos faz criar ilusões sobre a vida, e nos faz colocar tintas sobre ela
que jamais existiram na cartela. Tornar a angústia do outro parte do nosso
problema, nos obriga a conhecer as nossas dores e as nossas angústias. Talvez
seja este o problema.
Sempre quando estendemos a mão
para o outro corremos o risco de sermos derrubados pela própria força que o
outro fará quando se apoiar em nós para se levantar. E vice-versa. Mas queremos esconder. Ninguém precisa saber disto. Por
isso, quanto menos contato tivermos com a dor do outro, mais camufladas estarão
as nossas questões.
Acreditamos que viver como estranhos ajuda a evitar o nosso sofrimento.
A frieza do estranhamento causa um distanciamento e assim, apostamos numa
ilusão de proteção.
Afastar o estranhamento frente à
dor do outro não nos fará tristes e sofredores. Sermos solidários, de verdade,
à angústia do outro nos fará seres mais fortes e capazes de superarmos nossas
próprias dores. Somos seres interdependentes. Mas insistimos na tese do
individualismo. A crença na interdependência desperta a vontade de aliviar a
dor do outro. Quando aliviamos a dor do outro uma dor em nós é amenizada
também. A crença no individualismo desperta o nosso inchaço e nos faz crer no
irreal.
Esse estranhamento a tudo o que achamos que não nos pertence. Essa
alienação vivida e sentida porque estamos ocupados demais tentando disfarçar
nossas miudezas. Não se trata de acreditarmos, falsamente, que temos a solução
das coisas e sairmos buscando pessoas com problemas e angústias. Mas apenas
legitimarmos a dor do outro. Só isso.
Fugimos da dor do outro e reforçamos
a condição de estranhos porque a dor nos coloca de volta ao lugar de onde nunca
deveríamos ter saído: a da consciência de sermos apenas seres humanos, frágeis,
falíveis e incompletos. A incompletude nos completa. O que há além dela, neste
nosso estágio? A intensidade dela pode ser reduzida. Mas a linha que nos define
é esta. A fragilidade nos caracteriza, nos identifica. Afinal, o que é mais
humano que se sentir frágil e amedrontado? Vítor Hugo diz que todo mundo é
parecido quando sente dor. Quando estamos com dor e vulneráveis, parece que a
lucidez volta a ter voz em nós. Somos falíveis. Que belo golpe para o ego. Esta
descoberta traz desconforto porque somos vaidosos. E quanto mais vaidosos
somos, mais falimos. Que ironia.
Passos melhores e maiores. O sinal soou. A maioria ouviu. E por que não
avançam? Talvez pela inércia, outro recurso imprescindível do qual todos nós
somos feitos.
Somos estranhos a nós mesmos. Por
isso não há como ouvirmos a dor do estranho que passa. A dor que cala porque a
voz não cessa de falar o que não produz.
O silêncio que chega manso
buscando um espaço no conturbado lago das ilusões.
Vivemos tempos felizes, também. E
aquele que já entendeu isso, descobriu que felicidade não se define, se sente. Aquele
que mente e diz que sabe o que é felicidade, não é feliz. É só um burocrata do
conceito, do significado, um afoito de dicionários. Não há como ser feliz com
conceitos concluídos e absolutos. É só um personagem passando pela vida.
Aquele que diz saber o que a vida
nos oculta, por sabedoria, é um
fazedor de vida, e não um realizador da vida. É um reivindicador e não um
executor. É uma pessoa cansada e que cansa. É uma pessoa com a vista turva, mas
que optou por não a aclarar.
A vida sempre nos dá as opções certas de recortes. Mas a tesoura está
em nossas mãos.
Aquele que já entendeu e
descobriu que também vivemos tempos felizes sabe que a serenidade e a paz no
coração que a felicidade traz sinaliza, também, algo pontual e demarcado a
nossa frente: a tempestade que não enxergamos, mas que sabemos que ela existe.
Portanto, não a subestima.
Tempos complementares e
interdependentes. O avesso de um mostra o lado do outro.
Os limites, os excessos e os
avessos fazem parte destes tempos. Que são nossos, mas que já foram de outros.
Tempos estranhos e tempos felizes são reflexos do que fazemos deles. Os tempos,
em si, são sempre os mesmos. O que muda é a nossa relação com ele.
A vaidade que chega falando alto
porque demos voz a ela. Ela sente-se à vontade porque somos a casa dela. A
vaidade nos coloca na base da incompletude. Um lugar confortável porque aqui
somos os melhores? E quem nos disse isso? Aqueles que querem a nossa queda, o
nosso declínio, o nosso inchaço exatamente por não cabermos em nós. Somos
estranhos.
Nossos contornos refazem nossas
formas. Mas não as reconhecemos. Desfazemos as nossas recentes formas e
desperdiçamos as falas trazidas pelos contornos. Caímos em ciladas autorais que
buscam a perda de nós mesmos. Perdidos, como entender estas formas?
Valorizamos as ferramentas que
destroem e que corrompem. Elas proporcionam construções imediatas e mais
rápidas, encurtamento de caminhos obrigatórios, planejamento subestimado e
etapas desconsideradas. De posse de nossas agendas cheias, estas ferramentas
nos induzem ao cultivo do impossível, do descartável e do alienável. Nossa
atenção está direcionada para o que não precisa e, portanto, não percebemos os
sinais da construção destas grades que, livres, se perpetuam, se fortalecem e
criam raízes.
O tempo não voa. Ele só passa
mais rápido porque se chateia por não priorizarmos o que, de verdade, importa.
Tempo nosso. Tempo do outro.
Nosso tempo. Nossos tempos. Antigamente é um tempo tão próximo. O futuro
precisa dar as mãos para a antiguidade se quiser se reinventar. Os tempos que
temos são de todos nós.
Aquele que vai à frente, investe tempo. O que ficou preso às lentes
distorcidas, gasta tempo.
O tempo é lento e rápido. Depende
do tom que quisermos dar a ele. Ajudar alguém a se reestruturar é um dos
maiores investimentos de tempo. E não perceber a nossa necessidade de reajustes
e ajustes é uma das maiores perdas de tempo.
Os tempos estranhos nos fazem
estranhos em meio a conhecidos. Os felizes nos impulsionam para o despertar do
compromisso.
Somos uma sociedade de apressados
porque apressamos o tempo. E por vingança, ele nos apressa também. E assim
chegamos mais rápido a lugares desconhecidos. Os tempos estranhos pertencem a
todos nós: inconscientes, injustos e desatentos.
Nosso exacerbar dos excessos que
finge não perceber o transbordamento. Afogamos os conhecimentos alheios porque
o saber somente a nós pertence. Vivemos tempos estranhos.
Tempos estranhos. Tempos felizes.
A batalha do encontro que, aos poucos, vai fazendo as pazes. Mas antes, será
preciso fazer as pazes com a gente mesmo.
Em paz conosco, não teremos medo
de nos apropriar da dor do próximo. Teremos entendido, finalmente, que nos
apropriar da dor dele e ajudar a minimizá-la, não significa tomar a dor dele
para nós, nem mesmo abrir mão da nossa felicidade.
Exacerbamos a nossa ideia de
felicidade por isso ainda sentimos infelicidade. A nossa ilusão de felicidade
absoluta é a grande causa da infelicidade e do insucesso. Quando aceitarmos
quem somos e quando nos identificarmos como seres relativos e não absolutos, a
nossa contribuição para o mundo será enorme.
Que a gente busque tempos felizes,
e não a obrigação de ser feliz. Porque isto nos coloca num lugar apertado, na
vida, com difícil acesso a outros patamares de evolução. Mas que os tempos
estranhos sejam respeitados e ouvidos até para que os felizes façam sentido. E
que espaços de conversa com nossos tempos estranhos sejam criados.
O individual e o coletivo são um.
Que o amanhã chegue. Que o passado seja a nossa fonte para perguntas e, assim,
nos envergonharmos da nossa arrogância. O passado é sempre sábio. E que o
presente sirva para nos conscientizar sobre a ignorância de termos pressa. Assim,
todas as nossas frestas estarão cobertas.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação de Nietzsche,
filósofo alemão do século XIX, que diz:
“Quem luta com monstros deve
velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu
olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro
de ti.”
Os monstros do nosso tempo são velhos
conhecidos: o esvaziamento das relações e, como consequência, nos tornamos
seres estranhos uns aos outros, e a nossa busca doentia pela felicidade
absoluta. Algo que, ironicamente, não existe.
O cuidado para que não nos
tornemos um monstro por estarmos lutando contra os nossos monstros, é o que nos
diferencia como seres inteligentes. E se para esta luta for preciso olharmos e
contemplarmos os nossos abismos, que não tenhamos a ilusão de acharmos que não
teremos sido vistos por ele. O melhor que fazemos é cumprimentarmos nossos
abismos, dialogarmos com eles e compreendê-los. Subestimar que eles nos
observam é reafirmar a nossa condição de estranhos. Quando tivermos a coragem
de sairmos dos nossos estranhamentos, nossos abismos terão transformado nossos
monstros em coautores da nossa nova história. Uma história de escrita feliz e
sem estranhos por perto.