domingo, 29 de março de 2015

Quem matou o seu sonho?


Mario Quintana. Um poeta singular e de uma sensibilidade inigualável. Em uma das passagens de sua vida, estando ele em dificuldades financeiras, foi morar num pequeno quarto de hotel cedido por um amigo. Disse Quintana a uma pessoa que achou o quarto muito pequeno: "Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas".

Uma pessoa que diz isto só poderia ser poeta, mesmo. Um poeta com alma. Assim era Mario Quintana. Uma pessoa que tinha autoridade para falar sobre sonhos. Disto ele entendia.

Olhando a imagem dele, penso que Mario Quintana devia ser uma destas pessoas deliciosas de se estar perto. Aquele dia em que você pega um café, senta-se no sofá e bate um papo tranquilo sobre coisas importantes. Coisas que a pressa e a urgência se envergonhariam de falar ou não achariam apropriado.

Mario Quintana, no texto acima, faz uma provocação. E esta foi apenas uma das muitas que ele fez. E quão atual ela é! Escritores de primeira grandeza são assim: escrevem coisas atemporais. Elas não cabem no tempo, estão acima dele.

Fiquei pensando na palavra abandono e seu pesado significado. O que poderia ser pior que o abandono? Ah, sim, tem algo pior...a indiferença. Mario Quintana tinha toda razão. O abandono cria mato, mas a indiferença cria abismos. O mato eu corto. Mas e o abismo? Certamente eu não teria pernas para ultrapassá-lo.

Estava no metrô um dia destes, e uma criança de seus 06 anos entrou com o seu pai. Sentaram-se um ao lado do outro. Mas esta proximidade era apenas física. Logo eu saberia disto. O menino com um tablet nas pequenas mãos. Aliás, o tablet era maior que suas mãos. Mas isto é só um detalhe. E o pai com outro tablet. Este sim, cabia em suas mãos. Estava perfeito para alguém que talvez tivesse deixado de sonhar há bastante tempo. A única diferença era que no tablet do menino havia um joguinho e no tablet do pai, um filme qualquer passando.

O vagão estava vazio, ainda bem. Assim pude acompanhar de perto aquela cena. Ambos com os seus olhos grudados na tela. O mundo ao redor deles simplesmente não existia. Não havia interação senão com a tela, principalmente o pai. Por que, então, o filho olharia para outro lugar? O exemplo, muitas vezes, fala mais que palavras.

O diálogo que se segue foi o que presenciei.

- Pai, o menino chama.

- Hum...o pai responde. (A economia de palavras me chamou a atenção. Para falar “oi, meu filho”, levaria mais tempo do que dizer simplesmente “hum”...).

- Pai, o menino chamou novamente.

- Fala, o que é? O Pai responde sem olhar para o menino, continuando a olhar para a tela do seu computador.

- Olha, aqui, Pai, olha o que eu consegui! O menino com suas pequenas mãos estendia o tal do tablet para o seu pai ver algo que ele tinha conseguido.

Mas o Pai, em sua indiferença adquirida ao longo da vida e ao longo dos seus sonhos esquecidos, desta vez olhando rapidamente para a tela do menino, disse:

- Ah, tá. Legal. Mas não me atrapalha aqui...E voltou o seu olhar para a sua própria tela.

O menino, então, recolheu o seu tablet, desligou o aparelho e o repousou em seu colo, também bem pequeno para isto. Deu um leve suspiro, se abraçou naquele apoio que há no metrô (aonde as pessoas se seguram) e encostou a sua cabeça lá. Neste momento, o menino, agora sem mais a distração do tablet, ficou com o seu olhar vago e disperso e deu de cara com o meu olhar pra ele. Um olhar que ele, em sua pouca idade, não conseguiria entender. Ficamos nos olhando por alguns segundos. Havia tantas coisas a dizer mas o momento era de silêncio...

Queria dizer três coisas a ele:  nunca permita que alguém o faça desistir de seus sonhos, apenas você tem este direito; sempre se orgulhe de suas conquistas e seja surdo para a indiferença das pessoas. Mas não pude falar nada.

E o pai? Ah, sim, claro, ainda assistia ao seu filme.

Não sei o gênero do filme que aquele pai assistia. Mas para mim, o gênero era de terror. Pelo menos foi o que presenciei naqueles segundos. Um terror silencioso que só o tempo saberia as consequências para aquele pequeno sonhador.

Culpar aquele pai seria inútil. Ele desaprendeu a arte de sonhar com alguém, também.

Mario Quintana tinha toda razão. A indiferença daquele pai, com aquele “Hum...”, era cruel.

Buscamos o tempo todo aprovação, queremos ser aceitos, amados, incluídos. Que dirá as crianças! Quando as crianças fazem as coisas elas sempre buscam o olhar de aprovação dos Pais, que são sua primeira fonte de autoestima.

O tablet não tem culpa. Aliás ele é maravilhoso...quando se sabe usá-lo. Mas ele também sabe ser bem cruel nas mãos de quem desaprendeu a sonhar, de quem acha que sonhar é piegas. Alguém um dia disse que sonhar era piegas, meio fora de moda. Penso que fora de moda é quem pensa assim.

É preciso sonhar.

Sonhar nos ajuda a colorir o mundo, a ir até um lugar mais agradável e voltar com mais força, vitalidade e vontade. Deixar de sonhar é começar a morrer. E a indiferença é esta morte lenta, imperceptível porque estamos muito ocupados pra isto. Já dizia o coelho branco de Alice no País das Maravilhas: “estou atrasado, estou atrasado, estou atrasado”! De posse daquele imenso relógio que o apressava insistentemente. O tamanho do tablet do menino, em suas mãos, me lembrava o relógio do coelho branco, de Alice. E estar atrasado é uma forma de estarmos indiferentes ao que realmente importa.

Fingimos, muitas vezes, não ver os nossos sonhos porque eles dão trabalho. Sonhar não se compra no supermercado, se constrói. E a construção leva tempo, o supermercado a gente faz mais rápido, principalmente se for um supermercado pequeno. Em dias de chuva, é preciso parar a construção e esperar, aguardar pacientemente até que a chuva dê uma trégua. Mas se está chovendo eu consigo fazer o meu supermercado bem confortavelmente, lá dentro, no coberto e no quentinho. E ainda se eu der sorte, haverá uma degustação de vinho com queijo no mercado para eu me distrair enquanto faço as compras. Dizer “Hum...” é muito mais rápido do que construir e se interessar por algo. Queremos o produto, não queremos construí-lo. Queremos as respostas, não queremos as perguntas. Queremos o fast food, não queremos cozinhar. Queremos resultados, não queremos e nem valorizamos o esforço. Queremos o destino, não queremos a estrada. Queremos estar, e não ser. Então por que vamos querer sonhar? Deixa isto para os poetas, já disse alguém...

E como vamos aprendendo a doce arte da indiferença no dia a dia! Não sonhamos mais, e também não deixamos que o outro sonhe. Se eu não sonho por que você vai sonhar? Não falam que precisamos ser solidários? Então, está aí a grande chance...

Estamos perdendo a nossa capacidade de sonhar exatamente por causa da indiferença, do embrutecimento das nossas emoções.

Quando sonhamos, nossos sonhos ganham uma personalidade, uma forma, uma imagem, asas. E o que a gente faz? Abandonamos ou os deixamos lá, em alguma gaveta que demoraremos a abrir.  Temos o direito de desistir deles? Sim, claro, mas só a gente, não o outro. Aliás deixar alguns sonhos para trás faz parte da vida. Não podemos ter a expectativa de achar que vamos realizar todos. É preciso maturidade para deixar alguns irem embora para outros chegarem. Mas somente nós temos este direito. Abrir mão de alguns sonhos faz parte do processo de amadurecimento e de crescimento, mas abandonar a arte de sonhar e ser indiferente a ele, jamais. Isto seria um crime.

Queremos realizar os nossos sonhos. Isto nos move. Isto nos sustenta. Mas teimamos em permitir que o outro sonhe por nós ou nos diga quais sonhos devemos ter ou se devemos ter sonhos. Cansamos de abrir concessões para que os outros digam quais sonhos deveremos sonhar. Não. Eu sei o sonho que eu quero sonhar e quero realizar. Não o outro.

José Saramago, escritor português, disse que “Todo homem é uma ilha” referindo-se ao autoconhecimento, necessário a todos nós. E eu arrisco em dizer que os nossos sonhos também são estas “ilhas”, até que sejam resgatados por nós e concretizados.

Matar sonhos às vezes é necessário, é a arte do desapego. É um exercício diário. Mas nunca a arte de sonhar. A natureza do sonho é encontrar alguém que o realize, que faça esta ponte. Ele precisa de você, de todos nós.

As distrações diárias brigam entre si para tomarem a nossa atenção. E os nossos sonhos ficam à espreita, apenas a nossa espera. Mas como as distrações são muitas...talvez os sonhos ainda tenham de esperar bastante para serem encontrados e quem sabe, um dia, realizados.

Ouço muito a frase: “devemos pensar em deixar um mundo melhor para os nossos filhos”. Mas será que também não devemos pensar em deixar filhos melhores para o mundo? Querer um mundo melhor para se viver implica, obrigatoriamente, ser uma pessoa melhor porque eu não posso querer um mundo melhor se eu não for uma pessoa melhor. E ser uma pessoa melhor passa pela arte de sonhar e por deixar o outro sonhar, também.

Deixar um mundo com pessoas melhores é deixar um mundo com capacidade de sonhar que é o primeiro passo para a realização. Queremos protagonistas, gente de ação, somos cobrados por isto o tempo todo. Mas uma das primeiras coisas que a gente faz, na convivência com o outro, é matar o sonho dele e dizer aquela frase célebre: “eu não te disse?” Matamos o sonho do outro porque deixamos de acreditar nele há tempos. É uma maldade, mas matamos o sonho dos outros, sim. Como diz a música: “...e a ferrugem no sorriso, só acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção...”. E o que fazemos quando sonhamos? Procuramos abrigo e proteção. Alguém que nos ouça, que não nos seja indiferente.

O perigo de matar o sonho de alguém é que este alguém pode acreditar. Quando somos indiferentes a alguém ou quando sofremos uma indiferença, nos questionamos se devemos continuar, se o caminho vale a pena. E em meio a estes questionamentos, paramos e vamos engordando a fileira dos indiferentes. Vamos dando voz a isto. Não quero mais do que o mundo possa me dar, apenas o direito de sonhar.

Não é só de taxa Selic e de operação lava-jato que vivemos. Felizmente. Sonhar me faz acreditar que um dia sairemos da inércia que nos levou à operação lava-jato, por exemplo. E a taxa Selic com isto? Bem, a taxa Selic, coitada, fica ali só acompanhando os fatos. E é obrigada a subir de patamar por causa do nosso abandono e da nossa indiferença. Ela é uma arma na mão dos desavisados.

Se o que presenciei foi abandono ou indiferença, quem sou eu para julgar. Mas de uma coisa estou absolutamente certa: Mario Quintana tinha toda a razão. Aliás, mesmo à distância, acho que ele escreveu este texto para este pai e para este filho que, simbolicamente, representam boa parte de todos nós em algum momento de nossas vidas.

domingo, 22 de março de 2015

Apertem os cintos...a água sumiu...

...e com ela os valores, a vergonha, a decência, o respeito, a dignidade.

Mas uma coisa não sumiu, pelo menos ainda: a nossa capacidade de indignação. Ainda vejo, e muito, pessoas indignadas. E isto é bom, desde que aliado à ação. Indignação sem ação é só um discurso vazio. E eu acho que é este poder de indignação que ainda nos sustenta, que ainda nos faz acreditar em algo. Quando perdermos isto, certamente o respeito, a vergonha, a decência e os valores já terão ficado para trás há muito tempo.

O fato é que estamos sentindo falta de muitas coisas, de coisas boas, decentes, honestas. E fartos de tantas outras coisas fúteis, indecentes, desonestas. Sentimos falta e estamos fartos. Falta e farta. Falta do que é certo, farta do que está demais. A brincadeira com as palavras mostra que brincar deveria ser algo saudável e verdadeiro, mas brincar com a gente deveria ser proibido.

Uma vez perguntaram para Ferreira Gullar, Poeta, qual era o principal gatilho para a sua inspiração. E ele disse: “um dos principais gatilhos para mim é a indignação ou algo sobre o qual eu não tenha gostado. Isto desperta em mim um sentimento de indignação que se transforma, muitas vezes, em textos”. E eu acho que foi este o meu gatilho para escrever este texto: indignação. Não há como não se indignar com a capacidade alheia de nos subestimar.

Subestimar significa não nos respeitar, não nos aceitar, não confiar em nós. E é disto o que estou farta. Farta desta falta de respeito, deste descaso que fazem conosco. Somos desrespeitados a todo o momento, somos postos à prova diariamente. Nosso estoque de paciência e de tolerância se esgota mais rapidamente do que a Cantareira. E isto não é bom.

Estamos mais arredios, sem paciência uns com os outros. Estamos grosseiros, mal educados. Um pedido de passagem no trânsito é motivo para sinais obscenos e para palavrões. Estamos ultrapassando os limites da decência e do respeito.

Enquanto um de nossos bens mais preciosos está dando sinais de revolta e reivindicando os seus direitos, ameaçando a nos deixar e a nos faltar, a fartura de outras coisas está a nossa disposição. É só escolher. O que vai ser hoje? Corrupção, ganância, enganação, roubo, abuso de poder, guerras? Oras, é só escolher...

A falta de água me faz pensar no que não pensamos e no que não fizemos. No enfoque da relação do homem com o mundo. Não este mundo que aí está, bem à frente de nossos narizes, mas o mundo que vai se destacando e aos poucos mostrando sua face, que até então, era obscura, abstrata e desconhecida. E que medo de saber o que há por trás desta face. Medo porque não fizemos a nossa lição direito, e agora a conta está chegando. Mas quem vai pagar esta conta? Todos nós, pelo menos assim deveria ser. Fizemos. Pagamos. As contas dos débitos morais e financeiros deveriam ser pagas por todos nós. Só que já disseram que haverá mais um aumento nas contas elétricas para cobrirem o rombo que há no setor. Rombo de quem? Como o governo não repassará o valor ao setor em função de “cortes de gastos”, quem o leitor acha que pagará esta conta? Será que é a gente? Bingo! E a conta moral? Quem paga? Quem paga a vergonha de assistir ao jornal e só ver descaso com a população? Com a gente?

O setor elétrico alegou que vai precisar de R$ 23 MM para cobrir as despesas, e entre elas há o custeamento de programas sociais, como tarifas sociais, etc. E isto é só uma das coisas que me deixa farta.  

A crise da água faz-nos perceber nossas limitações. Isto é ruim porque não aprendemos pelo amor, mas sim pela dor, no caso a dor da privação, da corrupção, do roubo escancarado. De toda forma, se isto nos levar a compreender e a usar melhor o nosso poder de superação já será um bom começo...

Antigamente o conhecimento era intuitivo, não havia muitas técnicas e ferramentas para fazermos as coisas. Mas elas aconteciam e eram feitas, de uma forma ou de outra. E hoje, mesmo com tantas ferramentas e técnicas a nossa disposição, não fomos capazes de intuir que a água, um dia iria dar o ar da graça de seu cansaço com o descaso que fizemos com ela. Alguém lá atrás disse que parece que alguém, não sei quem, avisou alguém sobre o problema, e este alguém levantou uma bandeira dizendo que seriam necessárias obras de curto e longo prazos para que este problema com a água não acontecesse. Se esta pessoa falou isto ou não, pouco importa agora. Quem é esta pessoa, também não importa. Um alguém desconhecido, conturbado e confuso, talvez. O que importa é que o problema está aí, e sem uma solução aparente, apenas paliativa.

Temos uma desatenção generalizada para com aquilo que realmente importa. Damos muito mais importância àquilo que dá estatus e fama. Mas o que realmente fará a diferença, seja pra nós quanto para o nosso próximo, não dá ibope. Então pra que nos importar?

Recentemente, assistindo a um programa de televisão, um professor disse que, obviamente, a questão da falta de chuva foi determinante para a falta de água. Porém, o que agravou esta crise foi a arrogância e a sede pelo poder e pelo estatus, por parte dos nossos governantes. E aí ele explicou: uma obra deste porte demoraria cerca de doze anos para ser realizada ou até um pouco mais. E como a sede pelo poder e pelo estatus sempre falaram mais alto, as obras mais longas e que correriam o risco de não levarem o seu nome, devido à extensão do prazo, não foram priorizadas. E como o governo quer deixar sua marca, seu famigerado legado, se fizesse esta obra longa, quem se lembraria dele? Quem ficaria com o bônus da obra? Certamente o governo que a inaugurasse. Então fica a certeza de que ele vai fazer o que for bom pra ele e não para o País. Estou farta disto.

Acho que estamos passando por tantas questões críticas porque descuidamos, seriamente, do que realmente importa. Outro dia uma pessoa sofreu um acidente de carro. Felizmente não se feriu gravemente, mas foi um acidente. Em meio aquilo, esta pessoa pegou o seu celular e fez uma selfie (socorro!) e a colocou nas redes sociais. (!)

Enfim, críticas à parte, afinal quem sofreu o acidente foi ela e ela tem todo o direito de fazer o que quiser com ele, vale uma reflexão se estamos dando muito mais importância para aquilo que é perecível do que para aquilo que deveríamos estar cuidando, no caso do exemplo, a nossa integridade física.

Estamos sendo vítimas de nossas próprias ações. Ou alguém tem dúvidas sobre isto? O governo tem a sua participação? Claro que tem, mas a gente elegeu o Collor novamente! Vamos reclamar do quê? Ele foi o segundo senador empossado em fevereiro deste ano, há bem pouco tempo. Uso o Collor porque acho que é uma figura emblemática para representar todos os demais. Pessoas morreram na época do seu governo, pessoas enfartaram porque foram impedidas de sacarem seus valores nos Bancos, empresas faliram, aulas foram interrompidas, as pessoas saíram para as ruas, pintaram as suas caras e pediram o impeachment. Para que tudo isto? Para colocá-lo lá novamente, agora como Senador! A única coisa leve que ele fez foi chamar os nossos carros de “carroças”, proporcionando assim, a retomada de um setor, até então, longe de nossos domínios. A discussão sobre a importação foi retomada o que forçou uma mudança e ruptura comportamental de nossas indústrias. E foi só.

A corrupção está nas entranhas, grudada. Coisa difícil de sair...Sabe aquela coisa encardida que não sai nem com o melhor dos produtos químicos? Pois é, a nossa política, com raríssimas exceções (se é que tem) está assim. A corrupção está entranhada porque está lá há muito tempo. A gente permitiu que isto acontecesse, temos a nossa parcela. E aí fico pensando nas nossas corrupções pequenas e inocentes do dia a dia:

- molhar a mão do guarda no trânsito;

- furar fila;

- andar pelo acostamento;

- molhar a mão do guarda para olhar o seu estabelecimento comercial;

- fraudar a carteirinha de estudante (esta é clássica);

- passar a nota falsa recebida pra frente (afinal, a culpa não foi sua);

- grudar adesivos na placa do carro para furar o rodízio;

- não devolver o troco recebido a mais;

- pedir para o seu filho passar por baixo da catraca do metrô e se alguém perguntar, mentir a idade;

- fraudar e roubar o sistema hídrico (somente em São Paulo, uma média de 40 fraudes por dia);

- fazer gato com a NET, com a água do vizinho (afinal, ele paga pra você);

- não se importar com a quantidade de água gasta porque você está na lista da tarifa social do governo;

-  pegar o dinheiro do “bolsa moradia” do governo (uma das milhões de bolsas que existem) e pedir para o caixa do Banco depositar na sua caderneta de poupança;  

- fazer de conta que estamos dormindo, no metrô, só para não cedermos o lugar (que achamos que é nosso) a quem mais precisa;

- colocar o pé no banco do ônibus, do metrô (afinal eu já me sentei, o próximo que se vire).

Enfim, eu ficaria aqui listando nossas pequenas fraudes do nosso pequeno universo.

Estamos fartos de tudo isto. Fartos nos dois sentidos: fartos de fartura, ou seja, temos muito disto e fartos de cansaço, chega, não aguentamos mais.

Na escola sempre ouvi dizer que o Brasil é o País do futuro. E lá isto é verdade: precisa saber só que futuro é este e quando ele vai chegar. Alguém me avisa, por favor, para eu ir lá também?

Agora a crise da água e as demais crises estão aí, impostas, sem dó nem piedade. E será a hora de duramente aprendermos a lidar com tudo isto. Aliás, já passou da hora. Ou será que já perdemos a hora? Sinto como se usássemos o “soneca” do rádio-relógio em excesso. Agora é chegar atrasado e encontrar uma boa explicação pra isto tudo.

Tudo isto me faz pensar numa palavra só, que acho que resume as demais: falta de se apropriar. Não nos sentimos donos do nosso País, estes problemas não são nossos. É como se isto tudo fosse desconhecido para nós. Desconhecido não porque não tivéssemos condições de aprender ou porque não nos era falado; desconhecido porque a gente não quis saber, simples assim. Não é de hoje que os problemas insistem em se apresentarem para nós. O que de efetivo a gente faz?

Sabemos do problema da água, mas enquanto a água não acaba na minha casa e no meu chuveiro …vou levando enquanto o tempo me deixar, já dizia a música.

Não estou falando só das leis, das regras e de tudo errado que há aqui, de injusto, estou falando sobre o nosso estar no mundo, sobre o nosso compromisso de fazermos algo melhor e mais justo. O que nos orienta? Se continuar a ser o egoísmo e o poder, difícil será cada vez mais trilhar este caminho. Para que roubamos tanto dinheiro, meu Deus? Que poder é este que nos corrompe? Talvez este dinheiro todo roubado seja para comprar milhares de caminhões-pipa, porque a água vai acabar!

Acho que estamos nos perdendo de vista, por isto a água está indo embora. Setenta por cento do nosso corpo é composto por água: estamos indo embora então?

Percebo uma indiferença no olhar de alguns, como se aquilo não pertencesse a eles. Acho que é uma forma de se protegerem daquilo sobre o qual eles não conseguirão se defender.

Precisamos perceber, nos envolver, nos desenvolver. A propósito, a origem da palavra “desenvolver” que é o ato de desenrolar, permitir a saída e/ou o aparecimento de algo que estava tolhido”. Quem sabe se sairmos um pouco do nosso eu, das nossas selfies e não se preocupar tanto com as curtidas do facebook conseguiremos nos desenvolver, ou seja, deixar aparecerem os nossos valores, aquilo que estava tolhido?

É uma indiferença que se origina do distanciamento que colocamos nas questões. Eles e eu. Não, somos uma coisa só. Esta indiferença está atrofiando nossas emoções, nossos sentimentos.

Nosso mundo é tão belo, mas está doente, sente dor. Isto me faz ficar nostálgica: vejo uma criança correndo pela calçada correndo atrás de uma pomba, e dando muitas gargalhadas. Lembrei da minha infância e de como foi bom ser criança e de ter podido ter uma infância saudável: a minha preocupação era ir para a escola e querer que o sol aparecesse a tarde para brincar na rua, pular corda e sujar bem os pés, sentindo a vida pulsando e valendo a pena. Estávamos, até então, numa zona de conforto e de falso controle. Mas era bom, bom demais! Ser adulto é bom também, muito bom, traz inúmeras satisfações, alegrias e compensações. Mas o problema de ser adulto é que às vezes (ainda bem que poucas!) a pomba vai passar na sua frente e você não vai sentir vontade de correr e de sorrir. Mas fazendo força a gente consegue e vence!

Estamos em conflito não pela coisa em si, mas porque não nos entendemos. Queremos nossas verdades absolutas, a verdade do outro é sempre uma mentira.

Penso que estas contradições nas quais vivemos reflete um profundo esquecimento dos verdadeiros conceitos.

Às vezes, sinto que nos comportamos como se fôssemos uma visita indesejada, aquela que veio sem avisar e que, para piorar, não trouxe algo para contribuir para as despesas. Chegamos sem avisar, usufruímos do mundo e ainda levamos um “pratinho” para mais tarde. Não nos apropriamos dos problemas. É como se estes problemas que aí estão não fossem nossos, não nos pertencessem. É uma alienação generalizada.

Numa cidade do interior de Minas, o carnaval foi cancelado por conta da questão da água. Em uma entrevista, ouvi a seguinte frase: “o governo gasta mal o dinheiro e agora EU fico sem carnaval?” Concordo com a parte do “gastar mal o dinheiro”, acho até que este problema não acontece só na cidade dela (risos), mas um pouquinho de senso de prioridade e de urgência não fazem mal a nós.

Ouvi também, na Globonews, que os impostos subiram para o equilíbrio da máquina pública e para (eles) poderem colocar as contas em ordem. O Ministro falou que as contas estão “desarrumadas”. Contas de quem? Eles desarrumam e a gente arruma. As contas não estão “desarrumadas”, mas sim fomos e somos descaradamente roubados. Se “desarrumar” agora virou sinônimo de “roubar”, o meu diploma de Letras precisa ser revisto.

Acho que se a natureza tivesse este poder ela nos interditaria, e, de verdade, acho que ela ganharia em primeira instância. O livre-arbítrio nos foi concedido, mas de verdade, questiono se Deus não se equivocou. Acho que ele acreditou demais em nós.

E a crise da água nisto tudo? Pois é, enquanto estivermos mais preocupados em postarmos selfies, em poder, estatus, dinheiro e em nos afligirmos em quantas “curtidas” tivemos, a água, realmente, não será um item de primeira grandeza pra nós, porque se assim o fosse, certamente não estaríamos nesta situação. Se estamos, é porque fizemos por onde.

domingo, 15 de março de 2015

É muito bom estar aqui!

A realização deste blog era um sonho antigo. Há tempos eu queria criar um espaço para escrever, e aqui está ele. De verdade, espero que gostem, que compartilhem, que participem como puderem, e que me ajudem a divulgá-lo, caso ele esteja agregando valor pra vocês.

Sempre gostei muito de escrever. Se escrevo bem, não sei, mas o fato é que tenho muitos escritos, pensamentos, insights, frases, poemas, ideias. E tudo isto anotado em vários papéis e cadernos! Num mundo tecnológico, ainda utilizo, e muito, o papel para expressar e tentar construir as minhas ideias. E somente quando elas ganham forma é que vão para o mundo tecnológico. Talvez não seja a forma mais inteligente, afinal eu poderia escrever diretamente no computador, mas a tela inibe...Somente o aconchego da velha caneta e papel compreendem a minha necessidade de usá-los. Aquela coisa de rabiscar, reescrever, jogar, desamassar o papel e aproveitar aquela frase que, num ímpeto de intolerância, rasguei, mas que, graças a Deus (!) rasguei de uma forma que deu para aproveitar. Enfim, doideiras sem explicações. No papel você apaga coisas que são recuperáveis, muitas vezes; já no computador, será mais difícil recuperar, até porque a nossa lixeira eletrônica está sempre limpa e vazia! O imperativo da ordem!

O papel me permite pensar com mais calma, sem pressa. Ele me deixa refletir, fica ali, só me fazendo companhia enquanto coloco minhas ideias nele. O computador é cruel, não me dá tempo para pensar, me apressa o tempo todo com aquele cursor saltitando na tela. A pressa faz você não ver e não pensar sobre questões importantes. Por isto prefiro, enquanto ainda o tempo permitir, a calmaria do papel, que com sua tolerância, vai dando forma aos meus escritos.

Neste espaço vou compartilhar textos escritos por mim sobre as diversas facetas do comportamento humano, suas angústias, alegrias, medos, realizações, paradoxos, contradições, enfim todo o universo que nos cerca, e a minha visão sobre este tema. Vou adorar saber a opinião de vocês.

Tem uma frase que gosto muito, dita pelo Fundador da Revista Time, Henry Luce: “O importante não é o que você coloca na página, mas o que sai da página para a cabeça do leitor”.

Gosto muito desta frase porque ela traduz exatamente o objetivo do meu blog MenteseFrutos: o de compartilhar percepções e conhecimentos e saber o que eles estão despertando e se estão despertando e produzindo algo em nós, que seriam os nossos frutos.

Uma das ideias de o blog se chamar “MenteseFrutos” é a de compartilhar algo com vocês, e frutos serem produzidos a partir disto.

Escolhi um texto de abertura que tem tudo a ver com o propósito do blog: o de compartilhar.

O texto chama-se: Escutatória, de Rubem Alves, que fala sobre a arte de ouvir, um artigo de luxo para os seres humanos (nós!), às vezes não tão humanos assim!

Para quem já teve o prazer de ler Rubem Alves, sabe da relevância deste escritor para o mundo. Infelizmente ele nos deixou em julho de 2014. Além de tudo, um Educador que dispensa apresentações. Para quem tiver a oportunidade, fica aí a dica para conhecer melhor sua obra e suas provocações. Em meio a tantas provocações que ele fez, uma delas foi:

“Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.”

Uma mente brilhante e com frutos incontáveis. O nome do meu blog também não deixa de ser uma singela homenagem a ele.

Boa leitura!

Renata Mathias de Lima


Escutatória

Por Rubem Alves

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar... Ninguém quer aprender a ouvir.

Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil.

Diz Alberto Caeiro que... Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro: Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito.

É preciso também que haja silêncio dentro da alma.

Daí a dificuldade:

A gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor...

Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.

Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração...

E precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade.

No fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64.

Contou-me de sua experiência com os índios: Reunidos os participantes, ninguém fala.

Há um longo, longo silêncio.

Vejam a semelhança...

Os pianistas, por exemplo, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio...

Abrindo vazios de silêncio... Expulsando todas as ideias estranhas.

Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala.

Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio.

Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos...

Pensamentos que ele julgava essenciais.

São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou.

Se eu falar logo a seguir... São duas as possibilidades.

Primeira: Fiquei em silêncio só por delicadeza.

Na verdade, não ouvi o que você falou.

Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala.

Falo como se você não tivesse falado.

Segunda: Ouvi o que você falou. Mas, isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo.

É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.

Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.

O longo silêncio quer dizer: Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.

E, assim vai a reunião.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos.

E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.

Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência...

E, se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras... No lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa.

No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos.

Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia...

Que de tão linda nos faz chorar.

Para mim, Deus é isto: A beleza que se ouve no silêncio.

Daí a importância de saber ouvir os outros: A beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.

Obra retirada do livro O amor que acende a lua, de Rubem Alves.



Pois é, escutar realmente é difícil porque implica me calar diante o outro. E me calar significa deixar que o outro fique em evidência, pelo menos enquanto ele falar. E num mundo preocupado com selfies e quantidades de likes, fica, de verdade, complicado deixar o outro se expressar e falar. Rubem Alves tinha toda razão.