...entope o ralo da pia, na casa
da minha vó.
Esta foi a resposta que a minha
irmã recebeu de uma aluna, em sala de aula. O estudo era sobre ditados
populares, significados e a influência que eles exerciam na língua e no dia a
dia de cada um. Parece-me que “...a galinha enche o papo” não é tão óbvio
assim. Pelo menos, não para aquela menina de pouco mais de dez anos.
Quando a minha irmã me contou
esta história, confesso que ri. Achei divertido. Não no sentido da gozação pelo
erro, na resposta, mas pelo lado da ingenuidade que todas as crianças carregam.
A espontaneidade do infantil é algo que nos faz rir. A ausência de filtros que
há, na fala de uma criança, diz muito, e traduz uma leveza de sentidos e de um
leve estar, no mundo. Além da ingenuidade da criança, pensei na questão
cultural: nem todos conhecem os ditados populares, por mais populares que
sejam. Portanto, não ter conhecimento sobre eles diz mais que sabê-los. Mas
enfim. O fato é que ri e, ao mesmo tempo, pensei nesta diversidade de culturas
que temos, o que justifica os nossos não saberes.
Passado um tempo, e estudando
sobre comportamento humano, a palavra inferência veio muito a minha mente. O
que é inferência? Por que inferimos na fala do outro? Qual é o impacto da
inferência no nosso discurso? Qual é a imagem que construímos quando inferimos?
Quando bem utilizada, a inferência ajuda a construir conclusões, une
pensamentos soltos, incentiva a reflexão sobre o que se pretende construir.
Fatos são conectados graças, inclusive, às inferências.
imagem tirada da internet
No entanto, como nem tudo são flores, quando mal utilizada, cometemos
desalinhos que, de tão íntimos da gente, não percebemos que os cometemos. Tenho
a impressão de que gostamos de nos conectar às partes menos nobres das coisas.
E com as palavras não seria diferente.
Esse estudo me fez lembrar
daquela menina que um dia disse que “...de grão em grão entupia o ralo da pia,
na casa da vó...”. Percebi o quanto eu havia inferido, naquele momento, quando
ri da resposta da menina. Uma inferência sem perceber e sem a intenção de
reparar no erro da resposta, mas uma inferência que reparou em respostas
diferentes das que eu assumia como certas e óbvias. No meu conjunto de verdades, no meu bloco de modelos, não cabia a
resposta que ela havia dado. Por isso, eu ri. Foi muito mais que achar graça
numa ingenuidade infantil. Muito mais que me encantar com a ausência de filtros
que toda criança tem. Foi, além disto tudo, uma inferência de minha parte. Uma
inferência que, por fazer parte da minha construção, tem dificuldades de
aceitar respostas absurdas e às margens do óbvio.
Não se trata de críticas a nós, mas reflexões: aquela menina me trouxe,
por meio da fala absurda, engraçada e errada, um contexto. Um contexto que eu
não tenho, mas ela tem. E é preciso respeitar isso. ‘Entupir o ralo da pia, na
casa da minha avó, não existia, para mim.’
A falta de respeito não ocorre
somente na transgressão verbal, no papo seco e intolerante, mas sim no riso
fora de hora, na ironia, na displicência, na ausência de interesse pela
realidade do outro. Não que achar graça na fala do outro seja motivo de nos punirmos,
mas ao mesmo tempo que rimos, é importante saber o porquê de a pessoa ter dito
aquilo.
Interessar-se pelo contexto do outro é uma forma de inferir na vida do
outro, mas no bom sentido. Apenas rir, mesmo que seja uma ‘bobagem de criança’,
como dizemos, é uma forma de marginalizarmos a construção dela. O mundo precisa
deixar de ser um lugar de ameaça e de segregações, para ser um lugar de junções
e de sentido.
Este foi apenas um exemplo. Mas e
quantos há? Por que o diferente e o ‘fora do padrão’ é sempre alvo de
observações? Por que aquele que traz outra realidade, passos dados em ruas
opostas àquelas que pisamos, precisa se explicar?
Mesmo sendo um exemplo simples de
uma aula sobre ditados populares, ainda assim, o riso precisa ser
contextualizado. Não é, em todo o momento, que ele caberá. O discernimento
ainda é uma das nossas mais nobres armas.
Rimos do outro porque inferimos o saber que achamos que ele tem de ter.
Quando o outro não corresponde a uma expectativa que temos, uma das formas de
marginalizá-lo, é rindo dele. Mas há muitas outras.
A irmã da inferência é a
arrogância. Inferimos porque já sabemos as respostas. Inferimos porque o nosso
tempo é muito mais valioso que o tempo do outro. Inferimos porque nos achamos
no direito de completar o raciocínio do outro, mesmo que depois ele nos diga: “...,
mas não era isso o que eu ia dizer...”. Inferimos porque sempre nos colocamos
em degraus maiores e mais altos do que aqueles aos quais, realmente, fazemos
jus.
Achamos que as nossas respostas cabem na
vida da outra pessoa. Inferimos.
Acreditamos que o outro nos ocupa com as
miudezas dele. Inferimos.
Insistimos que a forma é a nossa gestora e a
nossa mediadora. Os nossos modelos mentais são os guias. Inferimos.
Temos fissuras e rachaduras, mas
as escondemos. Somos ensinados para o supérfluo. Temos tantos pontos soltos.
Ainda demora muito para que estejamos prontos.
Inferimos porque exigimos respostas aonde as perguntas ainda nem
começaram a ser feitas.
Uma menina me trouxe um contexto. E quando aceitamos que aprendemos com
o outro, nosso horizonte se alarga. Entupir
o ralo da pia, na casa da vó dela, era o contexto da menina, e não o meu.
Portanto, lição primordial: jamais rir de contextos diferentes dos meus. Eu já
sabia disto, mas no momento em que ouvi a história, me esqueci deste precioso
conselho.
Somos construídos por meio da
realidade dos outros. Somos feitos das paredes que encerram as paredes do
outro. O mesmo tijolo que alimenta os nossos intervalos é o mesmo que constrói
o que nos leva ao outro. Mas também o que nos afasta dele. Uma resposta tão
óbvia como “a galinha enche o papo”
somente é óbvia porque conversa com a minha realidade e de tantas outras pessoas,
mas não com a daquela menina.
As lições, muitas vezes, vêm de pessoas
e de lugares impensados.
As pessoas são construídas,
inclusive, por causa das vivências experimentadas. Acreditamos que temos os
elementos suficientes para compreendermos a realidade do outro. E de longe
temos. Somos ausentes na vida do outro. Nossas ausências não nos permitem conhecê-lo.
Mas como precisamos preencher os espaços, no outro, que causamos por causa da
nossa ausência, inferimos.
Sempre temos as respostas. Nossas
opiniões adoecidas nunca saíram das formas. O outro ainda não mencionou a
doença que possui, mas temos o remédio em nossas prateleiras empoeiradas por
causa da nossa ociosidade que dificulta, inclusive, enxergarmos as nossas
doenças.
Para nós, é difícil nos ocupar da
realidade do outro geralmente porque ela não nos interessa. Mas fica
deselegante sermos tão sinceros...
A resposta daquela aluna rompeu
uma fala pronta, um trecho da história que já conhecemos. Houve um silêncio na
sala. E depois, um riso. Ela trouxe uma resposta de acordo com a realidade
dela, e não com a fala pronta construída por uma sociedade que não a conhece e
que a marginaliza não somente por dar respostas diferentes, mas por esta
resposta ser pequena, aos olhos dos falsos grandes.
“De grão em grão a galinha enche o papo” é uma metáfora para
traduzir que não devemos desistir, que de pouco em pouco, chegaremos lá. O
ditado traz uma subjetividade que, somente por meio de elementos concretos e
experimentados, poderemos ter. Como exigir uma resposta de tanta subjetividade
de uma criança que, além de tudo, ainda vive numa realidade precária e,
certamente, de direitos cerceados?
A subjetividade é desenvolvida
por meio da oportunidade de vivê-la e de construí-la. Por meio da abstração.
Como tratar da abstração, conhecimento fundamental para a formação do nosso
estar no mundo, se o concreto ainda não se firmou? Além da subjetividade, a
metáfora contida no ditado carrega um sentido de perseverança, de não
desistência, e, acima de tudo, de afirmação de que de grão em grão a galinha enche o papo.
O que é encher o papo quando, no máximo, vejo entupir a pia, na casa da
minha vó?
Somos uma sequência de rupturas e
de contradições, o que dificulta a construção de um claro projeto de vida para
nós. Crescemos com a conquista de alguns isolamentos. Somente o silêncio e o
isolamento nos trazem determinadas reflexões. Entrar e acessar os nossos
silêncios nos provoca atitudes. Aceitando este convite, damos chance para que a
nossa vida se estenda.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento de Eugene
Delacroix, pintor francês do século XIX, que diz:
“que eu não atrase a evolução do
outro por causa da ausência das minhas medidas.”
Viver é transitar nos nossos
escuros e labirintos, sem a mínima certeza se seremos merecedores da luz. Mas
se aceitarmos que temos corredores obscuros que necessitam de luzes, o caminho
será mais fácil. Brilharemos.
Nossos bastidores se esbarram, e
mesmo assim, não somos capazes de abrir as portas para mais pessoas passarem e
entrarem. É uma pena o desperdício de não dedicarmos tempo para o olhar interno.
Se o fizéssemos, saberíamos que ‘entupir o ralo da pia, na nossa própria casa’, é uma realidade de todos nós, muito além de
um inocente ditado popular.