domingo, 11 de novembro de 2018

De grão em grão...

...entope o ralo da pia, na casa da minha vó.

Esta foi a resposta que a minha irmã recebeu de uma aluna, em sala de aula. O estudo era sobre ditados populares, significados e a influência que eles exerciam na língua e no dia a dia de cada um. Parece-me que “...a galinha enche o papo” não é tão óbvio assim. Pelo menos, não para aquela menina de pouco mais de dez anos.

Quando a minha irmã me contou esta história, confesso que ri. Achei divertido. Não no sentido da gozação pelo erro, na resposta, mas pelo lado da ingenuidade que todas as crianças carregam. A espontaneidade do infantil é algo que nos faz rir. A ausência de filtros que há, na fala de uma criança, diz muito, e traduz uma leveza de sentidos e de um leve estar, no mundo. Além da ingenuidade da criança, pensei na questão cultural: nem todos conhecem os ditados populares, por mais populares que sejam. Portanto, não ter conhecimento sobre eles diz mais que sabê-los. Mas enfim. O fato é que ri e, ao mesmo tempo, pensei nesta diversidade de culturas que temos, o que justifica os nossos não saberes.

Passado um tempo, e estudando sobre comportamento humano, a palavra inferência veio muito a minha mente. O que é inferência? Por que inferimos na fala do outro? Qual é o impacto da inferência no nosso discurso? Qual é a imagem que construímos quando inferimos? Quando bem utilizada, a inferência ajuda a construir conclusões, une pensamentos soltos, incentiva a reflexão sobre o que se pretende construir. Fatos são conectados graças, inclusive, às inferências.

imagem tirada da internet

No entanto, como nem tudo são flores, quando mal utilizada, cometemos desalinhos que, de tão íntimos da gente, não percebemos que os cometemos. Tenho a impressão de que gostamos de nos conectar às partes menos nobres das coisas. E com as palavras não seria diferente.

Esse estudo me fez lembrar daquela menina que um dia disse que “...de grão em grão entupia o ralo da pia, na casa da vó...”. Percebi o quanto eu havia inferido, naquele momento, quando ri da resposta da menina. Uma inferência sem perceber e sem a intenção de reparar no erro da resposta, mas uma inferência que reparou em respostas diferentes das que eu assumia como certas e óbvias. No meu conjunto de verdades, no meu bloco de modelos, não cabia a resposta que ela havia dado. Por isso, eu ri. Foi muito mais que achar graça numa ingenuidade infantil. Muito mais que me encantar com a ausência de filtros que toda criança tem. Foi, além disto tudo, uma inferência de minha parte. Uma inferência que, por fazer parte da minha construção, tem dificuldades de aceitar respostas absurdas e às margens do óbvio.

Não se trata de críticas a nós, mas reflexões: aquela menina me trouxe, por meio da fala absurda, engraçada e errada, um contexto. Um contexto que eu não tenho, mas ela tem. E é preciso respeitar isso. ‘Entupir o ralo da pia, na casa da minha avó, não existia, para mim.’

A falta de respeito não ocorre somente na transgressão verbal, no papo seco e intolerante, mas sim no riso fora de hora, na ironia, na displicência, na ausência de interesse pela realidade do outro. Não que achar graça na fala do outro seja motivo de nos punirmos, mas ao mesmo tempo que rimos, é importante saber o porquê de a pessoa ter dito aquilo.

Interessar-se pelo contexto do outro é uma forma de inferir na vida do outro, mas no bom sentido. Apenas rir, mesmo que seja uma ‘bobagem de criança’, como dizemos, é uma forma de marginalizarmos a construção dela. O mundo precisa deixar de ser um lugar de ameaça e de segregações, para ser um lugar de junções e de sentido.

Este foi apenas um exemplo. Mas e quantos há? Por que o diferente e o ‘fora do padrão’ é sempre alvo de observações? Por que aquele que traz outra realidade, passos dados em ruas opostas àquelas que pisamos, precisa se explicar?

Mesmo sendo um exemplo simples de uma aula sobre ditados populares, ainda assim, o riso precisa ser contextualizado. Não é, em todo o momento, que ele caberá. O discernimento ainda é uma das nossas mais nobres armas.

Rimos do outro porque inferimos o saber que achamos que ele tem de ter. Quando o outro não corresponde a uma expectativa que temos, uma das formas de marginalizá-lo, é rindo dele. Mas há muitas outras.

A irmã da inferência é a arrogância. Inferimos porque já sabemos as respostas. Inferimos porque o nosso tempo é muito mais valioso que o tempo do outro. Inferimos porque nos achamos no direito de completar o raciocínio do outro, mesmo que depois ele nos diga: “..., mas não era isso o que eu ia dizer...”. Inferimos porque sempre nos colocamos em degraus maiores e mais altos do que aqueles aos quais, realmente, fazemos jus.

Achamos que as nossas respostas cabem na vida da outra pessoa. Inferimos.

Acreditamos que o outro nos ocupa com as miudezas dele. Inferimos.

Insistimos que a forma é a nossa gestora e a nossa mediadora. Os nossos modelos mentais são os guias. Inferimos.

Temos fissuras e rachaduras, mas as escondemos. Somos ensinados para o supérfluo. Temos tantos pontos soltos. Ainda demora muito para que estejamos prontos.

Inferimos porque exigimos respostas aonde as perguntas ainda nem começaram a ser feitas.

Uma menina me trouxe um contexto. E quando aceitamos que aprendemos com o outro, nosso horizonte se alarga.  Entupir o ralo da pia, na casa da vó dela, era o contexto da menina, e não o meu. Portanto, lição primordial: jamais rir de contextos diferentes dos meus. Eu já sabia disto, mas no momento em que ouvi a história, me esqueci deste precioso conselho.

Somos construídos por meio da realidade dos outros. Somos feitos das paredes que encerram as paredes do outro. O mesmo tijolo que alimenta os nossos intervalos é o mesmo que constrói o que nos leva ao outro. Mas também o que nos afasta dele. Uma resposta tão óbvia como “a galinha enche o papo” somente é óbvia porque conversa com a minha realidade e de tantas outras pessoas, mas não com a daquela menina.

As lições, muitas vezes, vêm de pessoas e de lugares impensados.

As pessoas são construídas, inclusive, por causa das vivências experimentadas. Acreditamos que temos os elementos suficientes para compreendermos a realidade do outro. E de longe temos. Somos ausentes na vida do outro. Nossas ausências não nos permitem conhecê-lo. Mas como precisamos preencher os espaços, no outro, que causamos por causa da nossa ausência, inferimos.

Sempre temos as respostas. Nossas opiniões adoecidas nunca saíram das formas. O outro ainda não mencionou a doença que possui, mas temos o remédio em nossas prateleiras empoeiradas por causa da nossa ociosidade que dificulta, inclusive, enxergarmos as nossas doenças.

Para nós, é difícil nos ocupar da realidade do outro geralmente porque ela não nos interessa. Mas fica deselegante sermos tão sinceros...

A resposta daquela aluna rompeu uma fala pronta, um trecho da história que já conhecemos. Houve um silêncio na sala. E depois, um riso. Ela trouxe uma resposta de acordo com a realidade dela, e não com a fala pronta construída por uma sociedade que não a conhece e que a marginaliza não somente por dar respostas diferentes, mas por esta resposta ser pequena, aos olhos dos falsos grandes.

“De grão em grão a galinha enche o papo” é uma metáfora para traduzir que não devemos desistir, que de pouco em pouco, chegaremos lá. O ditado traz uma subjetividade que, somente por meio de elementos concretos e experimentados, poderemos ter. Como exigir uma resposta de tanta subjetividade de uma criança que, além de tudo, ainda vive numa realidade precária e, certamente, de direitos cerceados?

A subjetividade é desenvolvida por meio da oportunidade de vivê-la e de construí-la. Por meio da abstração. Como tratar da abstração, conhecimento fundamental para a formação do nosso estar no mundo, se o concreto ainda não se firmou? Além da subjetividade, a metáfora contida no ditado carrega um sentido de perseverança, de não desistência, e, acima de tudo, de afirmação de que de grão em grão a galinha enche o papo.

O que é encher o papo quando, no máximo, vejo entupir a pia, na casa da minha vó?

Somos uma sequência de rupturas e de contradições, o que dificulta a construção de um claro projeto de vida para nós. Crescemos com a conquista de alguns isolamentos. Somente o silêncio e o isolamento nos trazem determinadas reflexões. Entrar e acessar os nossos silêncios nos provoca atitudes. Aceitando este convite, damos chance para que a nossa vida se estenda.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Eugene Delacroix, pintor francês do século XIX, que diz:

“que eu não atrase a evolução do outro por causa da ausência das minhas medidas.”

Viver é transitar nos nossos escuros e labirintos, sem a mínima certeza se seremos merecedores da luz. Mas se aceitarmos que temos corredores obscuros que necessitam de luzes, o caminho será mais fácil. Brilharemos.

Nossos bastidores se esbarram, e mesmo assim, não somos capazes de abrir as portas para mais pessoas passarem e entrarem. É uma pena o desperdício de não dedicarmos tempo para o olhar interno. Se o fizéssemos, saberíamos que ‘entupir o ralo da pia, na nossa própria casa’, é uma realidade de todos nós, muito além de um inocente ditado popular.