domingo, 29 de novembro de 2020

O quintal varrido

Para este texto, parto de uma reflexão, cujo autor desconheço, que diz: “veja se você não está encostando a sua escada na parede errada.”

Tenho dúvidas se estamos enxergando as escadas, que dirá as paredes, que somente podem ser percebidas se os nossos olhares abrirem mão de serem vagos e alheios.

Escadas são o ferramental da vida: o nosso prego, martelo, enxada. A forma como afetamos a vida, como construímos e destruímos, tratamos e destratamos. Há pessoas que nascem com escadas prontas, apenas precisam aprender a usá-las. No entanto, há pessoas cuja estrada se faz longa, e princípios de construção precisam ser aprendidos. Porque esta pessoa irá, antes, construir a escada para, somente depois, e se der tempo, usá-la. Para esta segunda pessoa (porque há só dois tipos de pessoas no mundo: as que nascem com escadas prontas e as que precisam construí-las), a vida será mais dura e mais exigente. Ela não nasceu com todos os pré-requisitos, e o currículo está no final de uma fila grande. Mas também para a primeira pessoa, talvez a vida seja, num primeiro momento, mais fácil e menos exigente. Afinal, o currículo estava quase pronto. Contudo, ter escadas prontas não será sinônimo de saber usá-las. E não sabendo usá-las, o apodrecimento será certo, ainda mais se o material for de madeira.

Paredes são as nossas fronteiras, os nossos vizinhos, o nosso mundo em branco, o nosso lembrete de que subir se faz necessário, mas que descer também é uma realidade. Mais que realidade: probabilidade. Paredes são transportes ora públicos, ora privados. São caminhos a serem percorridos por alguém que somos nós, ainda que esta imagem de quem somos nós, se vai longe, quase inalcançável. É preciso escalar, subir.

A subida nos lembra de que é constante o exercício. De que a dinâmica da vida é viva. O bom de o cume estar longe é que diminuem as chances de acharmos que merecemos apenas sombras e frescas. O sol ainda está alto.

É preciso que as linhas da nossa identidade não fiquem em branco, como disse José Saramago. Para justificá-las e preenchê-las, saber aonde encostamos as nossas escadas será primordial.

Para onde estamos indo? O que buscamos? Qual o sentido disso? Por que fazemos o que fazemos? Não são perguntas genéricas. São perguntas feitas a nós, pela vida, cujas respostas ainda buscamos. Estarmos com as nossas escadas encostadas nas paredes certas é uma das formas de localizarmos estas respostas. Nestas paredes certas, o eco será a nossa própria voz, as pichações serão as nossas e a tinta gasta deverá ser refeita por nós. Por quem mais?

Buscamos sorrisos em paredes opostas às nossas. Buscamos o nosso tamanho encostados em paredes que nos diminuem. Somos um marketing de graça para uma empresa que nos dá uma casquinha de sorvete de graça às custas de duas horas nossas, na fila. Somos respostas prontas de perguntas que não sabemos fazer. Aliás, não fazemos perguntas porque elas cansam e nos gastam. E se estamos gastos, como iremos representar numa sociedade que, por acaso, é a nossa? Sorrimos sorrisos esquecidos nos cantos da boca porque assim fomos educados. Representamos. Fingimos que gostamos. Fingem que acreditam no nosso gostar. E de fingimento em fingimento daqui a pouco nos esquecemos sobre o que falávamos.

Fazemos propaganda sobre coisas que nos devolvem ao lugar que, duramente, conseguimos sair. Paredes tristes criam necessidades que agora não vivemos sem. Nossas escadas já viram estas necessidades vendidas que, alegremente, compramos e ainda exibimos os tickets pagos. As televisões, os smartphones e os eletrônicos são os grandes campeões da Black Friday. Quem vive sem eles? Queremos escadas melhores? Por favor, sem críticas. Apenas uma sugestão de estabelecermos relações mais lúcidas com eles. Televisores vendem entretenimento barato, mas também saudável. Vendem sensacionalismos, mas também documentários. Vendem um marketing cruel. Vendem ilusões, mas também aprendizados e conquistas. Qual buscamos? Celulares salvam, matam, revelam, invadem, ensinam, facilitam, prendem. O que buscamos? Quem está com o controle remoto em mãos? Quem clica no link? Quem doa o tempo a troco de falsas conquistas?

“Veja se você não está encostando a sua escada na parede errada.” Seja você a primeira pessoa ou a segunda, é preciso franqueza com os nossos passados, com aquilo que nos construiu. Não são mais lugares vivos para se viver, mas como baús ambulantes que nos acordam de tempos em tempos nos lembrando do nosso tamanho e da nossa responsabilidade. Somos pedreiros, pintores, engenheiros e arquitetos de nossas escadas. Aonde elas estão encostadas? Não adianta impor os nossos intervalos, brechas e bastidores aos outros. No final, é com a gente.

Estratégia e disciplina são duas grandes aliadas daquele que vai lúcido na própria escada, daquele que conhece com propriedade a parede sobre a qual encosta o seu ferramental. Pessoas lúcidas costumam ser mais comedidas e econômicas com o sorriso porque sabem que o trabalho é grande. Como podem sorrir sem medidas se a maturidade ainda vai longe? Um sorriso restrito, mas sincero, já é o suficiente.

Não posso deixar de mencionar as múltiplas escadas que influenciam na nossa. Perceptíveis ou não como se fossem verdadeiros roteiros. Às vezes, nos deixamos apedrejar e apedrejamos por pura cópia do que vivemos e somos vividos. Retirar pedras exige muita destreza de nossas mãos que ainda seguem trêmulas. Ter consciência sobre quais são as nossas escadas, quais têm sido as paredes sobre as quais encostamos os nossos aparatos, independentemente, de qual pessoa somos, se a primeira ou a segunda, é um exercício permanente, vitalício. É preciso silenciar vozes que se confundem com as nossas. É preciso colocar luvas e mudar a nossa escada de lugar, se assim for preciso. Enxergarão a nós e a nossa escada mudando de parede. Darão risada de nós por puro gosto de nos esmagarem. Apontarão dedos. Seremos excluídos. Ridicularizados, será? Teremos de dar satisfações, muitas vezes, nos tribunais de pessoas que só levam recados. Mas este é o preço daquele que ousa questionar se a escada dele está encostada sobre a parede certa. Antes ser ridicularizado, mesmo que por aqueles que encontram, apenas, no caminho linear o sentido da vida, do que chegar, hipocritamente, ao último andar da nossa escada e enxergar parcas moedas.

A vida não é linear. Aquele que busca somente a linearidade e a convergência chegará ao último degrau da escada e nada encontrará. Paredes lisas, sem rachaduras, imperfeições, irregularidades, desnivelamentos não é uma parede merecedora da nossa atenção: é apenas uma venda casada imposta (e compramos) de comércio de falsificações com contas hipocritamente dobradas para que não vejamos o valor.

Escadas e paredes: como estão as nossas? Se chegamos com elas prontas ou não, o caminho somente reconhecerá os nossos passos. Há rastreamento e câmeras por todos os lados. De nada adiantará dizer que temos parentescos com aqueles que já vão nos últimos degraus das escadas certas nas paredes certas enxergando as paisagens que vão muito além de periferias.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um verso do poema Das Utopias, de Mario Quintana, que diz:

“Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!”

Querer pisar sobre os degraus da escada certa, na parede certa pode estar, momentaneamente, inatingível. Mas isto não será motivo para não buscar estes degraus, como nos ensinou o mestre Quintana. Recomeçar é a regra da vida. Afinal, todos os dias o sol se levanta e os pássaros retomam os seus afazeres. Que a gente não obedeça ao senso comum do risível, do visível e do geral, daquele que acha que semeia. Que a alma dos grandes nos povoe e que não tenhamos orgulho de mostrar a nossa facilidade de adaptação.

O pomar nos espera para o plantio. O quintal já foi varrido. As frutas amadurecem. A escada existe. A parede persiste. Os degraus estão firmes. Os nossos pés cabem. A mudança de parede existe. Se precisar mudar, será possível. Pagaremos contas altas por mudarmos de paredes. Mas os parcelamentos em doze vezes, sem ou com juros, existem para darem conta disso, mesmo.

domingo, 15 de novembro de 2020

Competência incompetente

Para este texto, parto de uma reflexão da escritora brasileira Nélida Piñón que diz: “se Machado de Assis realmente existiu, não temos desculpas para sermos incompetentes.”

Estamos sendo incompetentes, então? Se a incompetência não fizesse parte do nosso roteiro, a escritora não teria feito esta referência. Uma característica presente, e de tão presente, tem-se tornado uma marca quase pessoal, uma extensão nossa.

No dicionário, a palavra competência significa autoridade, domínio, alçada sobre uma coisa e/ou assunto. E a palavra incompetência é o contrário disto: falta de conhecimento, de habilidade, ignorância. Como sabemos que conhecemos muitas coisas e desconhecemos tantas outras, podemos dizer, então, que somos competentes e incompetentes, a depender do assunto em questão. Incompetentes somos todos. Competentes somos todos. Mas será que a provocação de Nélida Piñón se referia ao sentido literal da palavra?

A ironia é um convite, mesmo sendo de difícil digestão. Ela cria impasses, em nós, porque despertam as nossas dores e os nossos estranhos que moram dentro e fora de cada um de nós.

Não. Ela não se referia ao sentido literal da palavra, até porque, como disse, cada um de nós traz as incompetências inerentes ao nosso não saber. Ela se referia, portanto, ao nosso já saber, mas que, nem por isso, se fazia presente entre nós. Referia-se à competência incompetente, ou seja, aquela que sabe o que tem que fazer, mas não faz. Aquela competência que escolhe o não fazer, que escolhe a uniformização e o superficial. Aquela competência que aprendeu o que fazer, mas que desaprendeu porque não conseguiu estabelecer uma conexão corajosa consigo. Aquela competência que se tornou conivente com a falta de vontade forte. É sobre este sentido, cuja fala de Nélida se propôs, que não poderíamos aderir.

Uma competência adiada. Uma competência incompetente. Não um sentido literal de competência, mas um sentido indigesto de se saber conhecedor do que precisa fazer, mas abdicar, por querer, deste fazer.

Não podemos adiar esta conversa antiga e necessária. Mas adiamos. O calendário avança em retrocessos, apesar do otimismo do tempo que, esperançoso, renasce como sinalizador de recomeços inadiáveis. Se é necessária esta conversa, por que, ainda, não está nas nossas promessas? Por desculpas. Por esta conversa estar espalhada de propósito. Porque encontrar esta conversa cansa e nos traz um grande desgaste em frente aos espelhos.

Temos uma competência com vontade firme para se tornar incompetente. Temos tido êxito nesta nossa empreitada de soluções inconsequentes. Fazemos liquidações. Naturalizamos os horrores e as dores. Fazemos coro com a má-fé. Alimentamos a ignorância que sempre está pronta a se manifestar. Buscamos confundir para evitar o pensar. Afinal, não é prático incentivar uma fala de análise, de busca, de pesquisa quando a mentalidade do delírio resolve tudo, ou quase tudo. As mentes destras e lúcidas sinalizam, a todo instante, os equívocos destas nossas criações. Mas o conhecimento parcial que enxergamos não tem sido o suficiente para que a compreensão possa emergir. Uma pena. Se fizéssemos um pouquinho mais de esforço, talvez a luz, há tempos lá, pudesse ser vista por mais pessoas.

O que temos acumulado? Cansaços, personalidades incertas, chão de areia, descontinuidades, falta de percepção da realidade. O que temos acumulado? Vitórias, conquistas, avanços, descansos, certezas, pisos sólidos e lucidez. Mas por que nossas balanças não conseguem equilíbrio vivo?  Por que invasões arbitrárias têm sido as nossas escolhas? Por que nossas buscas não buscam o conciliável ao invés do inconciliável? Por que não paramos de lutar? Por que o diálogo tem sido constrangido ao esquecimento?

Não há desculpas para a nossa incompetência. Sabemos. Machado de Assis também sabia disso. Por isso ele fazia com maestria. Fez tanto com tão pouco, com o pouco recebido. Um gênio da literatura. Um homem além dos impositivos e das dificuldades impostas pela vida.

Nossas incompetências têm corrido mais depressa do que a vontade pelo ser competente. Somos vendedores de coisas que não existem. Nossas vozes estão sobrepostas a dos outros. Temos um civismo questionável. Não colaboramos com a cooperação. Sem ela, como nos trouxe Cecília Meireles, “não há como termos grandes realidades”. Nosso hino possui uma letra incompreensível para a maioria, mas todos nós fomos obrigados a decorá-lo.

Não há desculpas para a nossa incompetência. Nossas burocracias existem porque não confiamos uns nos outros. Assinamos sem ler porque ler dá muito trabalho, exige tempo e disposição. O código de ética é escrito por muitos que não a possuem. A feira talvez faça menos barulho do que a nave de uma igreja. Fazemos mais do mesmo, lotamos as agendas dos nossos filhos e, ao findar do dia, exaustos estamos do não fazer, nos envaidecemos pelas entregas, muitas vezes, inúteis. E a agenda de nossos filhos? Cumprida com louvor, enquanto recebemos, pelo whatsapp, o diagnóstico de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade dos nossos, ditos, filhos.

Somos todos estes. Se há críticas, é para todos nós. Se há discussões, todos nós deveríamos estar nelas. Desagregamos. Como não adoecermos? Como não sermos incompetentes? Mas não há desculpas. A culpa talvez seja de Machado. Não temos a genialidade dele.

Precisamos ser um nítido conhecedor sobre nós mesmos. E para isso, somente permitindo que a nossa competência trabalhe, ao mesmo tempo que a nossa competência incompetente se recolha ao lado, como aprendiz. Mas é um longo trajeto. Bom será reforçarmos as solas dos nossos sapatos porque a caminhada se configura a nossa frente.

Temos cotidianos desorganizados. Como a nossa competência se realizará? Sem ordem, difícil encontrar o que precisamos. Não falo de uma ordem parasita, arbitrária, que imobiliza, mas de uma ordem que nos ajuda a buscar a nossa trajetória com serenidade, e a, principalmente, nos dedicar à vida com destreza, ritmo e velocidade compatíveis com quem somos.

Perdemos a conexão com a nossa essência. A investigação acerca de quem somos se perdeu.  Estamos concentrados no indivíduo que devemos representar para que ninguém nos cobre aquilo que não podemos dar. Um abismo que abrimos de forma competente. Desta forma, serenados, vivemos a vida de seres que esperam e que, há tempos, abdicaram das perguntas. Seres que caminham por trajetos ilusórios.

Criamos uma conveniência do atraso e da incompetência. Reagendamos prazos. “Tivemos um imprevisto”, dizemos. Somos inabilitados para os compromissos de longa duração. E a competência é algo a ser atingido somente para um projeto de longa duração. Mas em função da enorme ênfase que damos ao conhecimento de curto prazo, nossas realidades se explicam por si só. Intérpretes são desnecessários.

Muitas vezes, somos uma sequência de rupturas e de contradições, o que dificulta a construção de um claro projeto para as nossas vidas: competência.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Cecília Meireles, que diz: “Viver é uma obra de paciência e de disciplina”.

Paciência e disciplina são resultados da competência. Não há como avançarmos sem elas. Competência requer tempo de construção, transcorrer de passos favoráveis ao nosso desenvolvimento e a nossa expansão.

Há caminhos e rotas de saídas. E as sinalizações destas rotas e destas saídas estão evidentes.

Queremos?

domingo, 8 de novembro de 2020

Convento inabitado

Para este texto, parto de uma reflexão que diz: “não é freira, mas trabalha lá há tanto tempo que adotou o mesmo tom”, do livro Exílio, de Lya Luft.

Qual seria o tom da fala de uma freira?

São muitas as reflexões que podem ser feitas acerca deste pensamento. Mas o recorte que faço, para poder escrever este texto, relaciona-se com a palavra influência.

Somos influenciados. Influenciamos. Somos influenciáveis. Em todos os tempos. Em todos os modos. Em todas as conjugações.

O verbo influenciar nasceu no século XIX, formando-se a partir do termo influência, palavra com origem no latim medieval influentia, cujo sentido era o da ação exercida pelos astros sobre os homens. Com o passar do tempo, o conceito de influência permaneceu, independentemente da questão sobre os astros, no entanto, agora, com o sentido de exercer uma ação sobre algo ou alguém.

Somos resultados. Não somos inéditos. Somos a soma de estranhos e de influências, em nós. Somos uma peça de teatro já na quarta edição, revisitada, reescrita e reeditada. Somos a fala da freira, e também a do padre. Somos o grito da feira e da fera. Somos a raspa do tacho e o começo do pote. Somos a gíria e o culto. Somos povo. Somos indivíduos. Somos a sequência dos gestos dos nossos pais, no mesmo minuto que somos o filtro do que não queremos dizer. Somos a fala da freira porque não percebemos que o convento fez morada, em nós, e nós fizemos morada, há tempos, nele. Nosso convento habitado.

Somos excessos de escassos em forma de desperdícios. E também reciclamos o lixo. Falamos como estrangeiros numa terra que deveria ser conhecida. Exilamo-nos. Um exílio à moda de Lya Luft, mas também à nossa moda, porque de exílio entendemos. Num convento, exilar-se é quase uma segunda pele, que faz parte do nosso projeto de anulação, de alienação e de nosso projeto vitorioso de ativismo de sofá. Adotamos o mesmo tom da fala de uma freira porque servimos as nossas contradições, as nossas conveniências, as facilidades. Somos influenciáveis: nem percebemos que já estamos falando como elas. Quando nos dermos conta, rejeitaremos a originalidade da nossa voz porque já teremos nos acostumado ao som desta segunda voz, uma voz que talvez vá mais ao encontro das nossas necessidades. Imitamos. Seguimos modismos. Imitamos sem perceber. Imitamos porque percebemos.

Adotamos tons iguais por pura convivência, por pura anuência, por pura conivência. Por puro cansaço, pelo quase, pela dúvida, pela naturalização, pela preguiça, pelo não perceber, pelo perceber, pelo ceder. Pela opressão. Pelo gosto do igual. Para passar despercebido como um uniforme vestido, bem passado e sem vincos. De forma consciente ou não. Qual tem sido o nosso caminho?

Somos habitados por influências, por isso nossos conventos vão habitados e habituados e cheios de habitantes. Necessário fazer mais quartos. Alguém ficará feliz com tantas construções. O que segue vazio, sem tantas demandas de construção?

Alguns lugares esvaziaram-se e esvaziaram para que conventos fossem preenchidos. E como há vozes de freiras que, imitadas, seguem preenchidas! Pobre que somos. Tudo o que nos cerca escreve um pedacinho, em nós. Esses pedacinhos construídos debruçam-se sobre nós com muita curiosidade, e nos formam, como o tom da fala de uma freira. Muitas vezes percebemos, outras tantas, não.

Influenciados somos porque o nosso estar, no mundo, esbarra no outro. Para vivermos, precisamos conviver. Para convivermos, precisamos nos misturar ao estar do outro, no mundo.  Influenciáveis somos todos porque a fragilidade, a incompletude e a complexidade nos formam. Nossas fronteiras não são fixas, e ao mudarmos de lugar, outras áreas ficam descobertas. E nestas áreas descobertas, o nosso lado influenciável mostra-se sem muitos esforços.

O dia a dia copiado, imitado, seguido vai se desenhando e perdendo o sentido de tanto ser repetido. Começamos a falar uma gíria que não falávamos, a imitar um jargão vulgar, a colorir os nossos cabelos do mesmo tom, a frequentar lugares que nada nos dizem. De tantas influências que recebemos, passamos a naturalizar o que não poderia ser naturalizado, passamos a utilizar o mesmo tom de fala de uma freira...quem é a freira? Quem somos nós? Nossas vozes sobrepostas, desconhecidas, inabitadas não habitarão os conventos, nossa nova casa...

Influências que nos burilam, formam, nos fazem melhores. Influências que nos imprimem em folhas tortas, amassadas, velhas. Podemos escolher as nossas influências? Apenas as conscientes, as visíveis, as fáceis de serem percebidas. Se viver e acertar fosse fácil, qual seria a nossa razão?

A convivência nos faz adotar hábitos dos outros. A anuência nos ajuda a consentir aquela fala emprestada. Por puro cansaço, a busca do sentido perde o sentido. Por puro quase, o “deixar pra lá” passa a ser um lugar bastante frequentado por nós. Por pura dúvida, deixamos de perguntar e, assim, proliferamos dúvidas que nos deformam de tal modo que não nos reconhecemos mais. Por pura naturalização, o tom de fala de uma freira não nos incomoda mais, gostamos, e os nossos ouvidos passam a confundi-lo com a nossa voz. Por puro não perceber, passamos a caminhar de forma bem parecida com aquele que nos influenciou. Por puro perceber, fazemos de conta que está certo e que os absurdos são construções arbitrárias da nossa mente acostumada ao pranto. Por puro ceder, fortalecemos a banalização das nossas lutas e erguemos estátuas ocas. Por pura opressão, falar passa a ser uma arma contra nós. Por puro gosto do igual, os conventos vão ficando habitados, lotados e acessíveis.

Inabitados, vazios e isolados seguem aqueles que insistem no equilíbrio, lutadores de uma luta insolente e ingrata. Inabitados porque emprestam as próprias possibilidades àquele que vai.

Somos conventos habitados porque não nos frequentamos. Não construímos intimidade conosco, por isso não há como percebermos os nossos detalhes. Não há convivência. Falamos o mesmo tom da fala de uma freira porque conviver conosco é exaustivo, dolorido e difícil. O pouco tempo que temos conosco dedicamos ao externo.

Somos um ir-e-vir, somos um e o outro. Influências que nos constroem e que nos destroem. Que nos formam e que nos deformam. Somos um aglomerado de vivências, experiências e falas dos outros. Somos sequências de algo que foi começado por alguém, que não sabemos quem. Somos seres em construção, inacabados, como nos disse Paulo Freire. Somos andanças pelo mundo. A influência, portanto, é inerente à vida.

Da influência, em si, não há como escaparmos. Denota lacuna grave aquele que acha que pode contê-la, detê-la, impedi-la de exercer o seu poder. Não há como fazermos uma revisão de quem somos, e dividirmos a nossa individualidade em partes iguais de influência que sofremos versus construções puramente nossas.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensando de John Adams, o sexto presidente dos Estados Unidos, que diz:

“a influência de cada ser humano nos outros, na própria vida, é um tipo de imortalidade”.

Adotarmos o mesmo tom de fala de uma freira pode ser uma possibilidade. De uma possibilidade, nasce uma realidade. De uma realidade, nasce uma vivência. De uma vivência, nasce uma experiência. De uma experiência, nasce um valor. E um valor encerra, em si, uma certa imortalidade. Somos todos imortais, uns nos outros, por tudo o que fazemos, não fazemos, influenciamos.

E como sabermos se as influências têm sido boas ou não, em nossas vidas? Vários devem ser os caminhos e as respostas. Mas penso que uma possível resposta a esta pergunta seja começarmos a perceber se estas influências têm nos levado de volta para o nosso verdadeiro lar, que é o espaço que há dentro de cada um de nós. Não um convento. Não uma feira. Não um local externo. Mas dentro de nós. Se estivermos fazendo este caminho de volta, as influências terão valido a pena.

Uma influência boa nos leva de volta para casa, nos ajuda a renunciarmos ao nosso próprio ego e nos faz, sem interrupções, um convite para a paz que trabalha e para uma esperança que não espera. Uma influência ruim nos coloca num estado de emergência, nos proporciona conexões falhas, supérfluas e doentias, e nos dá poderosas ferramentas para explorarmos o lado esgarçado e cansado.

É preciso abdicarmos das influências que nos diminuem. Mas fazer isto cansa e dá trabalho.

Que os conventos, verdadeiros, sigam operantes, assim como as freiras e as próprias vozes. Mas que estes lugares comecem a dar sinais de esvaziamento, de desocupação porque muitos de nós estarão voltando para as suas casas, para os seus interiores, para os seus lugares. E, agora, nas nossas casas, como gratidão pela nossa volta, elas começarão a nos devolver os ecos de nossas vozes esquecidas que, há tempos, não ouvíamos porque ficamos muito tempo imitando o tom das falas das freiras. Nossas casas começarão a nos devolver os sons de nossas vozes, marcados em nossas paredes que, a partir de agora, e já não sem tempo, precisarão ser reinterpretados, reescritos e recordados.

E o som da fala de uma freira? Este será apenas uma recordação de uma viagem que fizemos, um dia, para um lugar chamado: convento, agora, inabitado.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

No aquário da vida

Para este texto, parto de uma reflexão que diz: “quem menos entende de água é o peixe”.

Há vários recortes que podem ser feitos para esta reflexão. Escolho o recorte da contradição porque ela nos explica e nos situa, no mundo. Somos o que somos por causa das nossas contradições, por causa daquilo que expõe as nossas fragilidades e sutilezas. Se o peixe, que é aquele quem mais contato tem com a água, por que é quem menos a compreende? Porque somos contraditórios. Há uma contradição em nós. Inclusive nos peixes.

O excesso rouba o distanciamento necessário para que algo possa ser conhecido. Por ficar tempo demais em contato com a água, o exercício essencial do conhecimento, do aprofundamento sobre quem e o sobre o que é a água não foi criado. Sem o conhecimento, a possibilidade de criarmos significados é drasticamente reduzida, e as nossas relações tornam-se superficiais. O conhecimento necessita, diretamente, de um tempo de construção, de uma descida à essência, ao planejamento, à valorização do caminhar, ao esvaziamento dos entulhos, ao reconhecimento de espaços e vãos livres para que o saber possa se dar.

Construção requer silêncio e tempo. Mas como em meio ao excesso? O peixe vive neste excesso. Neste excesso de água. Por isso, não a conhece. Por não a conhecer, não cria significados. E assim, tem uma relação superficial com a água. Apenas sente a falta dela, a percebe, literalmente, quando é abordado por uma isca que o pega desprevenido. Desespera-se ao ser retirado da água. Somente nesta hora é que percebe que estava inserido num contexto necessário à própria sobrevivência, mas que, até então, devido aos excessos, não havia percebido.

Excessos nos cegam. Privam-nos do diálogo acerca de quem somos. Distanciam-nos do conhecimento, da criação de significados. Nossas relações se tornam superficiais porque nos tornamos superficiais. Nesta superficialidade, delegamos o indelegável, e pagamos para que outros pensem por nós.  Mas por que o peixe não percebe o excesso? Porque os excessos trazem conforto e, geralmente, camuflam os problemas. Viver no excesso cega, mas traz uma sensação de pseudo paz. Viver na ignorância é uma forma triste de adiar compromissos. Eles são inevitáveis, mas enquanto o faz-de-contas nos alimentar, os aquários tranquilos, serenos e repletos de água nos satisfarão, ou o próprio mar, se assim estiver repleto de água.

Pobres que somos. Buscamos atalhos que somente encompridam o nosso caminho. O excesso nos acaricia. Há muita água ao nosso redor nos afogando, mas como percebê-la se o excesso faz por nós e preenche nossas ociosidades? Que reforcemos os nossos pés porque eles serão convocados, apesar de os nossos sapatos já estarem bem gastos.

Há muito excesso. De tudo. Como percebê-lo? Lidando com a realidade. No entanto, lidar com ela requer, de nós, e do peixe, certa disposição para suportar a dor, a frustração, a insegurança, a tensão, a angústia e a contradição. Já falei que somos contraditórios. Mas apenas não tinha falado que fazemos de conta que não somos. E isto faz toda a diferença. Somos andarilhos em nós mesmos em busca de algo que nem sabemos o que é. “Esta fila é para pagar?”, perguntei à moça, certa vez, numa loja. “Acho que sim, pelo menos estão todos aqui. Acho que sim.” Andarilhos. Nem se é a fila certa para nós, nos certificamos. Não critico. Sou parte disso. Esta alienação faz parte do excesso no qual estamos, todos, submersos.

Vivemos numa sociedade de excessos de falta de essência, que foi construída por nós. Por mim e por você. Nossos dicionários caem em desuso a passos largos: assertivo é aquele que diz tudo o que precisa num áudio de zap de um minuto, enquanto prolixo é José Saramago, porque escreve livros extensos, sem imagens, de pontuação confusa (!), cujas letras pequenas e cansativas não são um convite para leitores estreantes. Sermos pessoas mergulhadas neste funesto excesso nos faz chamar assertivos alguém ou algo, muitas vezes, raso, sem essência e superficial. Equívocos desta natureza são inerentes àquele que dialoga com os excessos.

O que buscamos? A água excedida ou a água na medida? Se for a água excedida, nada há a fazer porque já está tudo certo. Se for a água na medida, será bom abrirmos os nossos guarda-chuvas porque o trabalho virá forte e será intenso.

Temos um déficit de maturidade que nos faz terceirizar responsabilidades. Nossa disposição para o debate, para o diálogo é praticamente zero. Sem diálogo, não há construção, apenas acúmulos de excessos. Nossos espaços são autoritários: eu falo, você escuta. Possuímos vocação para o autoritarismo que anula o diferente, o outro. Aquele que envia um áudio de dois minutos, praticamente, é uma pessoa à parte. Nossa capacidade de esvaziar o outro por meio da marginalização é assustadora. Esvaziamos porque priorizamos o excesso. E ele não nos permite enxergar o outro, a água na qual o outro está mergulhado.

Somos commodities ambulantes. Deixamo-nos conduzir pelo conforto de velhas ideias, costumes, excessos. Precisamos abandonar o nosso conforto para acessarmos o problema do outro. Necessário conhecer aquele que transita na nossa estrada, dedicar tempo a ele, a nós, ao entorno, às curvas que mostram os deveres pendentes e não cumpridos.

Abandonar o nosso conforto é aceitar sair do excesso. Isso dói. Mas se conseguirmos, alcançaremos certa mobilidade para caminharmos em direção ao outro. Para dizer e criar algo com significado é preciso conhecer quem sou. E para me conhecer, preciso abandonar o excesso disfarçado de conforto. Necessária uma dedicação de tempo para o conhecimento. Mas como esta dedicação exige muito de mim, delego, e se não delego, alguém chega e diz que pensa por mim e faz todo o trabalho.

Não podemos desempregar os outros. E é o que fazemos por meio dos nossos excessos. Isto traz a superficialidade.

São excessos de palavras ociosas, mas as essenciais não são ditas. Excessos de imagens, mas as vivências estão esquecidas. Excessos de ações, mas as oposições estão afônicas. Excessos de entretenimento porque o pensar foi deposto. Excessos de comida porque o alimento vai para o apetite e não para a fome. Excessos de abreviaturas porque o pensamento fragmentou-se. Excessos porque nos faltam essências. Temos dados. Falta-nos o conhecimento para interpretá-los. Temos. Porque não somos.

Falta-nos disposição para a experiência de composição e de movimento de quem somos. Dá muito trabalho. Mas há outro caminho?

Não há respostas para tudo isso. Somente a autoajuda tem respostas prontas, eficientes, rápidas, fáceis. O que há é trabalho a ser feito em cada cômodo de nossa residência, como disse Lya Luft. Façamos o trabalho. Ele espera por nós.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Mario Quintana:

“Sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas.”

Que as águas nas quais estivermos mergulhados sejam valorizadas sem, contudo, que o excesso delas turve a nossa visão. Que nossas contradições possam ser concertadas como num grande musical, cujo conjunto da obra, das notas e dos sons possua a beleza do espetáculo. Que as nossas contradições estejam concertadas, reunidas em um conjunto harmonioso para que possam dar o tom certo a todos nós.  Talvez assim, a água passe a ter outro significado porque, agora, terá sido construído. Por mim. Por nós. Pelo peixe.

Que possamos sair das nossas minorias para que a maioridade possa ser alcançada. Não há espaço para os dois. Qual será a nossa escolha?

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Simplicidade desprezada

Para o texto de hoje, parto de uma reflexão de Clarice Lispector que nos diz:

“Que ninguém se engane: só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.”

Clarice escreve de uma forma como se a simplicidade fosse a pauta. Ela fala de um jeito que dá a entender que queremos e buscamos a simplicidade. Mas que, no entanto, somente será atingida após muito trabalho. Mas, de verdade, buscamos a simplicidade?

imagem tirada da internet

Somos contraditórios: quando temos folgas, dizemos que estamos cansados de não fazermos nada. Brigamos com o tempo, fazemos dele a nossa desocupação, e buscamos formas que julgamos lícitas para matá-lo. Quando não temos folgas, e os dias parecem reduzidos para tantos afazeres, invejamos aquele que caminha pela ciclovia vazia, em plena terça-feira. Remarcamos várias vezes aquele almoço devido à demanda urgente, mas quando o almoço veste ares de realidade, enviamos uma mensagem, desmarcamos o almoço e alegamos um motivo que mente, mas que somente nós sabemos. Dizemos “a gente se vê”, “a gente vai marcar”, “a gente precisa se ver mais”, “te ligo” como mera força de expressão. Falas vazias que não se preenchem porque não nos compromissamos com o preenchimento delas.

Por que? Porque complicamos tudo. Dizer “te ligo” e não ligar, faz o outro esperar. E nesta espera, ele sofre. Ele espera. Ele chora. Ele sente raiva. Ele cria fantasmas. Dizer que “está cansado de não fazer nada” cria uma realidade de inutilidade cujo protagonista somos nós. E nesta realidade, duelamos conosco. Andamos de lá pra cá. Olhamos o celular várias vezes. Nenhuma mensagem nova. E as novas são velhas. Observamos a vida alheia, muitas vezes publicada e não vivida, e neste complexo de inutilidade consumimos um consumo inconsumível. Damos visibilidade a muitas coisas inúteis. Por quê? Porque complicamos tudo.

Muitos choram porque não podem visitar seus familiares, devido à pandemia. Mas e quando podiam? Iam? Buscamos o resumo do livro porque lê-lo dá trabalho. No entanto, os resumos nos privam da experiência. E somente ela é a garantia da vivência. É preciso resgatar a importância e o lugar da experiência. Ela nos ajudará na busca pela simplicidade e a saída de uma vida de improvisos, achismos, esnobismos, imobilismo.

Complicamos tudo. Falamos, falamos, falamos. O silêncio nos constrange. E ao preenchê-lo, abrimos mão de lermos as entrelinhas que são a alma da vida.

Clarice tem razão. Como sempre. Uma autora atemporal. Ela nos espia com seu olhar assertivo e nos diz: “Que ninguém se engane: só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.”

Apesar da contradição como característica principal de quem somos, Clarice parece acertar quando dá a entender que queremos esta simplicidade e que, somente por meio do trabalho, ela será atingida. Não é razoável achar que queremos complicação ao invés da simplificação. O problema é que não estamos todos conscientes deste nosso querer. Se assim estivéssemos, agiríamos de outra maneira. Queremos uma vida mais simples e sem tantas visitas inesperadas. A questão é que estamos à cata de facilidades, técnicas milagrosas, autoajuda, salvadores, paternalismos, truques infalíveis para a próxima dieta, entretenimentos, coisas que nos dão a certeza de uma vida confusa, complicada, cheia de sobressaltos.

Simplificar não significa ser simplista. Talvez seja por isso que alguns não gostem muito desta tal simplicidade. Soa piegas. Ser simples é como se estivéssemos privados de sofisticação, de estatus, de porte, de crachá.

Simplificar tira etapas. Ficamos visíveis. Complicar inclui etapas desnecessárias. Ajuda a dificultar que o outro nos encontre. Assim, ele precisará falar com o secretário e marcar hora conosco. Isso dá uma falsa imagem de pessoa importante com inúmeras ocupações inúteis.

Quem cultiva a simplicidade sempre tem tempo. Trabalha para isso. Quem cultiva a complicação nunca tem tempo porque não trabalha para isso.

O simples, infelizmente, na nossa sociedade, não dá ibope. É chique falar difícil, assim ninguém nos entende e passamos por pessoas cultas. É muito mais chique dizer que saboreou, após o almoço, um creme anglaise do que um creme simples à base de leite, açúcar e ovos. Mas é a mesma coisa! Ou um doce com callets, que nada mais são do que gotas de chocolate. Mas o complicado dá estatus de um chique desnecessário. Você conhece alguém que seja role model, que nada mais é do que alguém que serve de referência para determinado assunto? Por que não dizemos: “você tem uma referência neste assunto para me indicar?” Por que insistimos em role model? Descomplicar a vida dá trabalho, realmente.

Uma vida simples não significa uma vida sem problemas, apenas significa uma vida com mais facilidade para enxergá-los e lucidez para buscar soluções. Apenas isso. Mas como estamos distantes do trabalho necessário referido por Clarice, ainda não desfrutamos da companhia da simplicidade.

Trabalhar é aparar arestas. É dizer que vai ligar e ligar. É dizer que vai marcar e marcar. É dizer que está chegando e chegar. É vencer o hábito nocivo do rápido ineficiente, do trocadilho barato, da piada pronta, do cacófato, do descompromisso. É romper com o sujo. É “examinar tudo e reter, apenas, o que for bom”, como disse Paulo de Tarso. É duelar com desconhecidos solitários e saber que não há guerras sem perdas. Trabalhar cansa. Dói. Descortina. Exige. Obriga-nos a jejuar a preguiça, o atalho, o adiamento e a procrastinação, o jejum verdadeiro. E não o jejum hipócrita que perdoa os pecados após palavras decoradas. Ser simples dá trabalho. Como abrir mão da vaidade de assumir que precisamos aparar arestas? A simplicidade escancara os nossos espaços aleatórios e marginalizados.

Trabalhar nos desmente. O que fazemos para nos desmentir? Trabalhar é ler quem somos. Ler: “um verbo insistente”, disse o escritor.

Somos atravessados pelos ensinamentos da vida. Não adianta medirmos forças com ela porque perderemos. Uma luta desigual. Mas para não sermos vencidos, somente aprendendo a linguagem dela: simplicidade, que é uma verdadeira revolução que se dá no nosso cotidiano. Um cotidiano que precisa ser refeito do simples, de infância, de conversas, de diálogos e de convivência conosco, porque parece que há tempos não nos encontramos.

Encontrarmo-nos com a vida é quase uma certa erudição. Sem solenidades por parte dela. Desconfio que ela espera o mesmo de nós.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de um gênio da História, Leonardo da Vinci, que dizia:

“a simplicidade é o último grau de sofisticação.”

Enquanto o mundo complica e cria lendas para explicar o mistério de Monalisa, Leonardo da Vinci, na verdade, cria a Monalisa a partir de um reaproveitamento de telas. A habilidade dele com as tintas e com as técnicas resultou numa das maiores obras da nossa História. Um simples reaproveitamento que resultou numa obra-prima, tamanha a sua perfeição. Um retrato inacabado, de uma senhora de época, não entregue. Um segundo retrato, na mesma tela, de outra senhora, inacabado, não entregue. O terceiro retrato, na mesma tela, reaproveitado. Concluído. Resultado? Monalisa.

Enquanto uns complicam. Outros trabalham. E por isso, alcançam a simplicidade. Leonardo Da Vinci foi um gênio inalcançável a cada um de nós. Não nos é possível alcançá-lo. No entanto, aprender com a simplicidade dele, isso nos é possível.

Que nossas telas inacabadas, incompletas e esquecidas possam ser resgatadas e concluídas. Não faremos Monalisas, certamente, mas nossas obras, se forem construídas à base da simplicidade, terá valido todo o esforço.

domingo, 2 de agosto de 2020

Ecos revelados

Para o texto de hoje, parto de uma reflexão do filósofo, escritor e crítico alemão Friedrich Nietzsche, que diz:

“...quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo também olha para você.”

Este pensamento, extraído da obra Além do Bem e do Mal, é parte de um diálogo maior, mas fiz este recorte, desta parte, para a escrita deste texto. É um convite para o nosso pensar, que poderá ser aceito ou não.  Caso aceito seja este convite, por nós, a chance de permanecermos no mesmo lugar de partida será remota. Avançaremos. E assim, encurtaremos caminhos e passos. Não um encurtar para abreviar a vida; mas um encurtar para se viver com mais lucidez, sentido e coerência. No entanto, caso não aceito seja este convite, por nós, a chance de estagnação será próspera e nossas pernas estarão descansadas devido ao pouco andar, e nossas mãos seguirão sem cicatrizes e marcas porque não terão sido tão usadas.

A superficialidade ou a profundidade? Nietzsche, assim como outros Filósofos essenciais, nos faz o convite à profundidade, e não à superficialidade. Contudo, a profundidade traz marcas, cicatrizes, dores e luz; a superficialidade traz mar calmo, nuvens distantes, conquistas rápidas, mascaramento e alienação.

O essencial e permanente ou o superficial e transitório? Marcas, cicatrizes e caminhos andados ou pele lisa, pés descansados nos sapatos novos e perfumarias cheias de novidades entristecidas?

imagem tirada da internet

Várias são as leituras que podemos fazer acerca do pensamento proposto por Nietzsche, um autor complexo que fala sobre coisas cuja consciência ainda não está despertada, em nós. A escrita dele alarga caminhos, estruturas e pensamentos. Um autor que nos conduz para lugares que desconhecemos porque nunca os visitamos. Nietzsche utiliza-se de martelos para nos lembrar de que há massa crítica, em nós, e que, portanto, é preciso usá-la. Autor que não dialoga com a escrita única, com o caminho único, com o sentido exclusivo. A extensão e o alcance da escrita de Nietzsche o tornaram um dos clássicos da literatura. Ele sempre tem o que dizer, e o que ele diz ainda faz muito eco, em nós.

Neste pensamento, uma palavra tensa: abismo. Não há como dialogar de forma calma, ponderada e civilizada diante o abismo. Diante dele, apenas uma necessidade: sobrevivência. Etimologicamente, a palavra vem do latim abyssus (“a” significa “sem” e “byssus” significa “fundo”). Literalmente, a palavra abismo significa “sem fundo”, sem profundidade. Cair num abismo significa que nunca vamos parar de cair simplesmente porque não há fundo, não há fim, em si. Uma ação contínua, ininterrupta.

Qual abismo nos observa? “...quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo também olha para você.” Muitas são as leituras para este pensamento, recordando que Nietzsche era um autor de muitas compreensões. Se são muitas as leituras permitidas, ouso escolher a compreensão do abismo como uma metáfora da profundidade ininterrupta que vai em cada um de nós. Somos este abismo, este sem fundo. Quando ousamos nos conhecer, nos aproximamos deste abismo. Espiamos. O que enxergamos? Que ele também nos vê.

O olhar do abismo traz nossos ecos, agora revelados. Nossos ecos revelados mostram tudo aquilo que não está nas nossas mãos, como a natureza transitória e aleatória da vida, que tanto nos intimida, amedronta e assusta.

O abismo nos traz a consciência sobre ele. Agora ele existe. Está ali. Como escondê-lo? Tapá-lo com areia e cimento? Pode funcionar, se quisermos continuar com as nossas regras de vidas superficiais, se quisermos lutar ao lado da mesmice, se defendermos conteúdos de estruturas supérfluas. O nosso padrão de fingimentos atende a uma certa demanda. Pode funcionar. Mas, no mesmo instante em que pensamos que estas pinturas manchadas de precarização do ser podem funcionar, silenciamos. No silêncio, nos lembramos das cicatrizes como sinônimo do essencial. Decidimos, então, voltar para a ponta do abismo para tentarmos ouvir o que ele nos diz e nos revela. Percebemos que este será um trabalho infinito e que, todas as vezes que olharmos muito para um abismo, ele também olhará muito para nós.

Somos feitos do mesmo papel, então? Somos feitos das mesmas perguntas? Qual tecido nos forma? O abismo tem linguagem distinta a minha? Descobrimos que há muito trabalho a ser feito. E que as vozes do abismo somente nos serão claras, ou pelo menos um pouco claras, se buscarmos simplicidade. E simplicidade somente com muito trabalho. Mas me parece que temos induzido a nós, e aos outros, a muito sofrimento na criação de muros. Adoramos brincar de esconde-esconde o tempo todo. A infância é aqui, nesta “...terra de gigantes, que trocam vidas por diamantes...”, como disseram os Engenheiros dos Hawaii. Uma infância de narrativas criadas na superficialidade, e não na naturalidade.

Somos contraditórios e equivocados. Mas ainda há tempo. Não podemos olhar para tudo e para todos ao mesmo tempo. Mas ainda há tempo. Basta iniciarmos abrindo mão da compra de certas coisas. Mas me parece que têm havido diálogos que não estamos dispostos a ter.

Precisamos nos mover para que posições possam ser revistas. Irmos além da superfície. Este é o convite do abismo. Ele nos olha porque ressoa sobre nós. Ele diz o que insistimos em calar. Se olhamos para ele, ele também tem o direito de olhar para nós. Talvez seja por isso que conviver com ele seja amedrontador. Mais fácil será permanecermos na permissividade, na acomodação do discurso da reverência, na inutilidade da busca do inédito. Isto não funciona. Nunca funcionou. Sabemos disto. Mas adiamos esta conversa.

Descermos no abismo. Mas até onde? Não há “onde”. Um trabalho ininterrupto. Conhecer-se não está na delimitação do transcorrer do tempo, mas no sentido desta ação. Um trabalho ininterrupto de saída da alienação, essencial para deixarmos de engordar a fileira dos esgotados.

“...quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo também olha para você.” Um fragmento de um diálogo maior de Nietzsche, mas só este trecho já nos traz muitas reflexões. O abismo sou eu, você, o mundo, o desconhecido, o igual, o escondido, o contraditório, a dor, a crítica, a inveja, o eco que tudo faz em mim, em você. Muitas possibilidades, muitas explicações, mas, acima de tudo, um lugar que nos observa, mesmo alheio a nossa vontade. Observa-nos porque faz parte de nós, indissociável, indivisível. O abismo é o caminho que provoca o reencontro com o escondido, um reencontro conosco. O abismo faz o papel de anfitrião da festa: as devidas apresentações da gente pra gente mesmo. Muito prazer!

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação do Professor Cortella, que diz:

“Viver é subjetivo, não é um exercício de precisão. Despencamos de nós mesmos porque não temos a mínima intimidade conosco.”

Que a gente olhe para o nosso abismo, para aquilo que vai no nosso sem fundo, no nosso infinito e reconheça a nossa imprecisão, a nossa dúvida, as nossas precariedades. Isso tudo nos molda, nos faz, nos torna. Não há como atingirmos um certo patamar de Ser sem aceitarmos o que dificulta sermos. Estamos numa condição de homens esgotados porque não estamos conseguindo lidar com o que nos esgota. Estamos sendo marcados por uma condição de insuficiência, o que nos torna reféns de uma angústia triste.  Mas ainda há tempo. É preciso buscar esta intimidade conosco, como disse Cortella. E essa intimidade está a nossa espera, bem no fundo do abismo, do nosso, do meu e também do seu. Íntimos, eu de mim, e você de você, não teremos mais medo do abismo, e o olhar dele será parte do meu. Simples assim.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Pintor de horizontes

“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.”

Este pensamento do escritor russo Tolstói, um dos maiores da literatura mundial, é um clássico. Atemporal.

E por que seria um clássico?

O escritor Ítalo Calvino diz que “um clássico é um clássico porque ainda não terminou de dizer tudo o que precisa dizer”. São obras inacabadas, inconclusas, no bom sentido. O que está por ser dito, pelos clássicos, é um constante diálogo entre nós e a vida, entre a vida e nós. Há sempre o que dizer, porque sempre haverá vazios e preenchidos a serem questionados, compreendidos e conhecidos. Vazios que insistem em nos preencher e preenchidos que insistem em serem ilustres moradores desconhecidos. Clássicos permanentes que sempre nos trarão perguntas e sempre nos lembrarão do que está por fazer.

Clássicos se impõem pelo respeito. Eles nos silenciam porque ouvi-los se faz necessário. Tolstói, portanto, nos trouxe um destes clássicos, numa reflexão preocupada em nos relembrar a relevância do pensar. Quando pensamos, damos volume a nós, tamanho e importância.

“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia” traz inúmeras reflexões e aprendizados. Para cada um de nós, um eco diferente deste pensamento, uma morada distinta, em nós. Reflexões inúmeras, variadas, diferentes. Todas certas. Todas válidas.

Tolstói: imagem tirada da internet

Para mim, destaco o autoconhecimento como eco que o pensamento de Tolstói fez em mim. Sem o autoconhecimento, acredito que as nossas aldeias serão, sempre, paisagens distantes da gente, com tintas descascadas, arranhões nas paredes, vidraças quebradas, canos enferrujados, ilustres desconhecidas. Sem autoconhecimento, as nossas aldeias serão sempre um por fazer. Um lugar escondido, mato alto, cerca destruída e o desprezo como anfitrião.

Autoconhecimento é uma ferramenta do viver. É imprescindível termos um viver, um plano de riscado, um tracejado. Viver é um caminhar com passos, estratégia, vontade firme, espada afiada na medida e desprendimento para saber retirar-se. Viver é esta busca pela universalidade que representa não recusar o mesmo viver.

Conhecer-se é custoso, cansativo e, por vezes, exaustivo. Mas como viver sem conhecer-se? Como saber se a nossa aldeia precisa ser pintada, sem autoconhecimento? Não há receitas. Não há fórmulas. Mas estratégia e vontade firmes, coisas que não podem ser desgastadas pela continuidade.

A universalidade não é um lugar, mas um estado. É preciso maturidade para alcançá-lo. A aldeia, antes de ser um estado, é um lugar. É preciso coragem e maturidade para aceitar que se vive nela, e disposição para abandonar as derrotas conquistadas às custas da nossa precisa conivência. Para começar a pintar a nossa aldeia, é preciso se achar nela e, principalmente, reconhecê-la e não se envergonhar. Debruçar-nos sobre as nossas aldeias nos dará o tom de por onde começarmos. Mas não teremos dúvidas: pela pintura.

Há muito trabalho a ser feito. No entanto, estamos sempre olhando para lugares que ainda não chegaram, e falando sobre um tempo que, se não cuidarmos, não chegará. A universalidade está distante de nós, assim como estamos distantes das nossas aldeias.

Queremos ser universais. Queremos ser pintores de horizontes. As nossas escadas começam no degrau máximo. Os degraus menores não são para nós. Nossas aldeias choram a nossa ausência. Mas não ouvimos estes choros porque as nossas malas estão prontas para o exterior.

Temos muitas sobreposições. Interferimos e sofremos interferências o tempo todo, o que ofusca as nossas vistas. Somos frágeis. As nossas aldeias choram mais uma vez. E a cada lágrima, descascam mais. É preciso nos visitar e pintar as nossas aldeias. Apenas exercitando a limpeza e a pintura das paredes, o obscuro, em nós, se mostra. Apenas pintando a nossa aldeia saberemos aonde moramos, quem são os nossos vizinhos, qual é a natureza do nosso bairro e, principalmente, a qualidade da tinta que vai nas paredes. Passar tempo conosco. Transformar a nossa má ociosidade em diálogo conosco e com a nossa aldeia. Questionar a nós.

Evitamos o diálogo porque não assumimos o nosso não saber. Fechamos a porta da nossa aldeia para que ninguém a veja desordenada. Aquele descascado é só um detalhe.

À medida que nos questionamos, vamos dialogando com a nossa ignorância. Não uma ignorância pejorativa, mas uma ignorância como única saída que nos leva ao saber. Somente aquele que desconhece e que assume o próprio desconhecimento pode conhecer. A ignorância é alavanca. Somente conhecemos, sabemos, avançamos porque assumimos o não saber, o não conhecer. Não há como sermos universais sem passarmos pela nossa aldeia, pelo desconhecido, pelo pequeno, por nós. Não há como sermos universais se a nossa aldeia nos envergonha e, por conta disto, evitamos conhecê-la e estamos sempre de malas prontas.

A universalidade somente existe por causa da particularidade da aldeia. Universal é a soma dos pequenos particulares. A cada aldeia conhecida e pintada, um universo povoado de belas cores. A minha aldeia é a minha conversa comigo. A minha universalidade é a minha conversa com o mundo. Somente posso conversar com o mundo quando tiver aprendido a conversar comigo. Caso contrário, o eco da minha voz irá se sobrepor a ela, e não conseguirei ser ouvida. Minha voz será um barulho perdido.

Voltando para a questão do clássico, não é à toa que Tolstói é uma referência na literatura mundial: suas falas são atemporais. Ele diz coisas que ainda farão, por muito tempo, morada em nós. Tolstói ainda tem muito a nos dizer.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento incômodo de Oscar Wilde, outra referência da literatura mundial, que diz:

“viver é a coisa mais rara do mundo; a maioria das pessoas, apenas, existe.”

Aquele que vive já fez as pazes com a necessidade do autoconhecimento, e passou, há tempos, na loja de tintas. A aldeia dele é destaque e as paredes brilham. O raso, para ele, deixou de ser um lugar sem base, e as narrativas também deixaram de ser mancas.

Aquele que vive, o homem do Oscar Wilde, que não apenas existe, acaba de trancar a porta da própria aldeia. O que terá acontecido? Sim, agora ele a tranca. Não um trancar daquele homem que apenas existe, que se envergonha da própria aldeia, que a desconhece e faz de conta que ela não existe. Mas um trancar de um homem que vive e que conquistou o lugar de universal. E, por conta deste novo estado de universalidade, passou a ser um pintor de horizontes, ofício aprendido ao tomar a iniciativa, há tempos, de pintar a própria aldeia.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Viver amanhecido

Há um pensamento que diz: “se mudarmos o começo da história, mudamos a história toda.” O começo é sempre a base sobre a qual construímos, inauguramos formas de convívio conosco e com o mundo, e evitamos ausências que nos custarão caro. Todo o começo (base) é, portanto, imprescindível, porque ele permite que nossos pés conheçam a textura do caminho que começa a surgir e que será necessário percorrer.

A reflexão deste texto propõe um pensar sobre algo que dificulta, e muito, a nossa percepção de necessidade de mudança deste começo, desta base, se preciso for, para que possamos ter condições de reorganizarmos as nossas rotas, o nosso caminhar e assim, reajustarmos a nossa história toda. Quando percebemos, em tempo, que é preciso mudar este começo, temos mais chances de termos um caminho eficiente, preciso e verdadeiro. E o que dificulta esta necessidade de mudança da base, deste começo de história é o cultivo da procrastinação. Um fantasma em forma de hábito que, frequentemente, assombra aqueles que permitem intimidade e aproximação com o supérfluo, que conversa com o raso, resumido e com o oco.

Perceber as necessidades de mudanças, ao longo de toda a nossa trajetória, é essencial. No entanto, no começo, é mais crítico e crucial porque as diretrizes e as linhas ainda estão sendo traçadas. O trem ainda está parado, na estação. Os rabiscos ainda são rabiscos, passíveis de ajustes e combinações. Mudar os começos colaboram, e muito, para que o desenho e a obra possam ter roteiros consistentes, menos amadores.

Não estarmos atentos às necessidades de mudanças da base, do começo, nos coloca na banalidade, nas ocorrências em recortes, nas aparências, nos picados com intervalos. Estarmos atentos às necessidades de mudança da base, do começo, nos retira dos sintomas tolos, confusos e nos dá clareza sobre o significado dos nossos sinais, das nossas manifestações e da relevância da nossa inteireza, da nossa essência, sem ou quase nenhum intervalo.

Etimologicamente, procrastinação significa “aquele que é a favor do amanhã, coloca-se à frente da causa para o amanhã, aquele que se lança e se joga à frente, para o amanhã”. Do latim pro (em favor de, diante de, à frente) + a palavra latina crastinatus (amanhã). Aquele cras (amanhã) famoso, escrito nos pés de Santo Expedito. Uma pessoa que procrastina é alguém que desempenha um papel principal no se lançar a favor de algo para se fazer amanhã.

Temos relação com isso? Conseguimos nos reconhecer?

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Hoje ou amanhã? Não um hoje literal, sem pensar, sem planejar, não um sair fazendo. Mas um hoje que entende a urgência de buscarmos as mudanças primeiras que precisam ser feitas. Sem isso, nossa história fica à deriva, à espera de um bote que nos salve.

Sabemos que não há garantias, que a qualidade das nossas relações depende de experiências vividas e construídas por meio do tempo, do exercício diário do levantar-se, e que a imprevisibilidade é um item obrigatório da nossa lista. Mas atuar nos inícios, mudar os começos, se necessários, apesar de não haver garantias, fará que o socorro chegue mais rápido, e aumentará a chance de termos uma história menos dolorida.

Por que procrastinamos? Porque, de certa maneira, achamos que assim nos protegemos. Buscamos proteção o tempo todo. Mas a verdadeira proteção reside na avaliação acerca de quem somos, e isto é infinito, um exercício eterno, diário. Só que fazer isso cansa e muito. Dói. Por isso, deixamos para amanhã com a esperança, quase infantil, de que o amanhã nunca chegue para nos cobrar com as contas sobre o capacho. É urgente fazermos uma avaliação realista sobre quem somos e sobre o que nos acontece. De posse disso, talvez, possamos nos proteger mais, mas não procrastinar como sinônimo de proteção. Somente o fazer, o conhecer e o buscar do conhecimento protege. A procrastinação, pelo contrário, expõe, descuida e nos deixa ao relento e ao abandono.

Procrastinar é um ir adiando, agendando, protelando. É um ir para um lugar que ainda não fomos porque o adiamento foi a nossa parada de contemplação. Um adiantamento programado porque não queremos encontrar os sofrimentos presentes das nossas encostas. Um adiamento para entrarmos no mundo. É um ir à cata de facilidades, resumos, técnicas milagrosas, receitas, truques infalíveis.

Procrastinar é uma forma de fazer vistas grossas para as coisas profundas que não podem ser simplificadas. Mas como existem influências que nos diminuem, como o curto, o raso, o rápido, vamos deixando para amanhã, que o amanhã Deus pensa. Vamos sendo este “a favor do amanhã, do fazer depois” e damos graças porque o amanhã sempre, para aquele que procrastina, raramente chega.

Sentimos frio porque não fizemos as mudanças necessárias na base, no inicio da história. Por isso, agora, o frio intensificou-se, e a mudança em toda a história fica, se não impossível, prejudicada. A prevenção é vital para que a gente não se torne patológico. Prevenção como sinônimo de perceber a necessidade da mudança no início, para que toda a história possa ocupar patamares versáteis e universais.

A procrastinação evidencia o nosso lado permissivo. Acomodamo-nos como se não pudéssemos interferir. Entregamos a nossa caneta ao acaso, sem nos lembrar de que o acaso adora nos fazer companhia. Somente assim ele surge: com a nossa anuência, disponibilidade para o erro, indulgência mórbida e, o pior de tudo: receptividade. Somos um caminho de linhas retas e fáceis quando agimos desta maneira. Precisamos nos mover para provocarmos e reproduzirmos efeitos, movimentos, resultados das mudanças que fizemos no início, nas nossas bases. Ao fazermos isso, tiramos os nossos vagões estacionados para vivermos a relação com o essencial, não mais com o superficial.

Procrastinar é alongar os nossos erros, agravá-los. É mais que deixar para amanhã. É um amanhã agravado, angustiado e com lágrimas. Um viver amanhecido de um amanhã mofado que poderia ter sido, mas não foi.

Precisamos dar o espaço para que as coisas consigam andar e ajustar a nossa história. E não procrastinar será imprescindível, para que isso possa acontecer. Fácil? Não. Mas quem nos prometeu facilidades, além das fórmulas e receitas mágicas da autoajuda?

Não podemos esperar pelo “despertar da nossa conscientização” de necessidade da mudança para que o todo possa também ter chance de mudar, não acredito nisso. Acho um discurso moralizante, não funciona. Acredito, sim, numa reflexão diária, como um excelente exercício de se propor, de se lançar para o fazer com aquilo que se tem à mão. Um trabalho de obras. Somos esta obra: uma obra inacabada, inconclusa, incompleta, mas que caminha, que faz, que cai, que segue. Não há fórmulas e receitas. Não há o momento do despertar. Este momento nasce dos pequenos momentos, e não de algo pronto e imediato. Se prestarmos atenção aos aprendizados diários que a vida, de forma generosa e empática, dilui para nós, a nossa visão deixará de ficar turva e o nosso caminhar será o nosso grande gerúndio.

O convite está feito. Urgente mudarmos o eixo sobre como as coisas são apresentadas. Um olhar agudo sobre as necessidades de mudança dos começos, da base, para que o todo seja vivo. E com isso, podermos ocupar o lugar que há tempos a vida insiste em nos oferecer.

Há palavras que nunca param de nos dizer algo. São os clássicos. E procrastinação é uma destas palavras. Com um olho treinado, a procrastinação é convidada ao esquecimento.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento ácido de Santo Agostinho, um homem que, em parte da vida, procrastinou, que diz:

“Deus prometeu perdão para o seu arrependimento, mas não um amanhã para a sua procrastinação.”

Que possamos desejar e buscar um amanhã como um lugar do saber que se quer chegar. Um lugar que a construção nos ajudará a alcançar. Um amanhã como sinônimo de esperança, de possibilidades de construção, de dinamismo. Mas não desejar e buscar um amanhã para servir como depósitos de nossas pendências, de nossos viveres amanhecidos, enrugados e entristecidos por não terem tido a chance de terem sido.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Vazios ocupados

Se está vazio, como pode estar ocupado? Detalhes turvos que nos obrigam a enxergar o que as nossas estradas empoeiradas e perturbadas não permitem que a gente faça.

Santo Agostinho, um dos maiores Filósofos da História Mundial, leu menos livros que a gente. Ele teve acesso a menos informações. Viu menos coisas. O mundo e a época nos quais ele viveu eram mais enxutos, de estruturas mais simples, com menos pessoas e dados, e, principalmente, sem quaisquer facilidades. Se, então, Santo Agostinho viveu e conviveu com menos, como ele fez tanto? Como ele, tendo lido bem menos livros do que cada um de nós, produziu tanto? Teve acesso a bem menos estruturas, e construiu tanto? É inquestionável que a obra de Santo Agostinho demonstra a própria inteligência dele colocada a serviço da Humanidade. Um Homem a serviço.

Um Homem a serviço: por isso ele fez tanto e com tão pouco. Santo Agostinho foi uma destas pessoas preenchidas de significado, de conclusões, de perguntas, de narrativas essenciais e, portanto, sem vazios ocupados. Foi um Homem que não tinha, como companhia, a vaidade, cujo sentido vem do latim vanitas, que significa vazio. A vaidade não nos permite fazer quase nada com o muito que temos, que dirá com o pouco. Ela nos preenche com um vazio que nos ocupa, que nos marca, que nos impulsiona para o nada. Como resultado, o tempo passa, e nada é feito, nada é entregue, nada é produzido, e o que é lido volta para a estante.

Vivemos numa guerra constante. Apenas não damos este nome. A simples falta de diálogo é uma guerra, mesmo silenciosa. A vaidade tem sido outra guerra constante. Queremos ser o autor de tudo, cortar a fita de tudo, assinar tudo, ver tudo, ser protagonista de tudo, sem percebermos que o tudo é inalcançável. Temos horror a ficarmos de fora de uma festa, de perdermos algo, por isso estarmos em tudo é uma garantia para a nossa ingênua existência. As ausências nos constroem, nos refazem. Fundamental valorizarmos os nossos comerciais para que os bastidores possam ser refeitos, reconstruídos e remanejados, se assim for preciso. Não há a necessidade de estarmos sempre disponíveis, à mostra, à vista, presentes. Isto é vaidade.

A ausência nos torna, muitas vezes, mais presentes do que a nossa presença. Quando queremos estar em tudo nossos rostos ficam imunes à reflexão, nossas atitudes se tornam números fixos de uma apresentação circense, e repensar acerca de nós torna-se inútil. Reflexo de uma vaidade desajustada que acreditamos ser a métrica da vida. Mas não é.

Alimentamo-nos de tradicionais motivos que nos levam à irracionalidade. Sempre o mais do mesmo. Pensar dá trabalho. Ler dói a vista. Aonde estão as figuras e as letras grandes deste livro? Percorremos os caminhos mais fáceis não por ser eficiente (e muitas vezes o é), mas por preguiça de gastarmos a sola dos nossos sapatos. Não abrimos mão da vaidade desenfreada. Por isso, mesmo que a gente leia muito, qual será a nossa obra? Qual será a nossa construção? Não há espaço para fortes construções quando a base é a vaidade. Não há consenso para o avanço quando a vaidade colabora para o retrocesso.

Santo Agostinho, portanto, mesmo tendo lido muito menos que todos nós, fez muito mais. E esta é uma ironia porque podemos imaginar o que ele não faria hoje, com a inimaginável quantidade de dados e de informações. Enquanto ele se preocupava em se desenvolver e compreender o mundo no qual habitava, muitas pessoas de hoje, que leram muito mais que ele, ou nem se lembram mais do que leram ou nada fizeram com o que leram. Ficaram mais preocupadas em divulgarem suas ações do que aprenderem com ela. Santo Agostinho foi um homem que se habituou ao pensar, e isto colaborou para que ele se tornasse um Mestre.

Quando nos habituamos ao pensar, passamos a ser estruturados sob outras bases. Saímos da estandardização, da uniformização, da busca pela felicidade com fórmulas, das falas e diálogos superficiais que buscam nos manter numa monotonia profunda. A vaidade adoecida, que foge da originalidade, nos arrasta para a mediocridade e ajuda a evidenciar a nossa alienação. É preciso pensar, questionar, buscar, discordar, indignar-se. Sem isso, os vazios ocupados alargarão porque a vaidade tratará de fazer o usucapião a respeito de nós. Pobre que somos!

imagem tirada da internet

A questão não é o tempo no qual se vive, mas sim o que você faz com ele e com tudo aquilo que está sendo oferecido. Quem tem um horizonte, tem uma estrada a percorrer. Quem tem foco, assertividade e clareza sobre o que fazer com o ofertado, não busca atalhos, não desvia o caminho, não perde tempo. Quem tem um horizonte, não permite que a vaidade se torne o principal produto da própria prateleira. Quem tem uma estrada para percorrer, não se ocupa de vazios preenchidos. Ao contrário, se ocupa do que vai em si e não faz contrato com o incerto. Não podemos buscar o que é, facilmente, compreendido. É preciso recuperarmos o “gosto pelo esforço”, como nos lembra o Filósofo Luc Ferry. E esforçar-se é apartar-se da vaidade, daquilo que esconde a minha, a sua, a nossa dificuldade.

A vaidade é um destes ocupantes dos nossos vazios. Ela acomoda-se e molda-se ao nosso tamanho de forma tão perfeita, que qualquer alfaiate de alta costura não saberá diferenciar o que somos nós do que é a vaidade. Ela nos cega e acentua nossa poeira e nossa perturbação. Nossos vazios ficam vazios de tão ocupados pela vaidade. Uma ocupação inútil e consumida, mas não por traças. Estas apressaram-se e foram embora. Mas pela ferrugem, mesmo, que infelizmente, tem oxidado a nós.

Inúmeras têm sido as oportunidades de pararmos com as guerras, mas as desperdiçamos porque estamos ocupados construindo outras guerras. E a vaidade é uma forma cruel de perpetuarmos as guerras. Enxergamos sentido nela. Caso contrário, ela não estaria extinta, mas certamente, num lugar menos privilegiado da fila.

Não estamos predispostos a todas as possibilidades do que podemos ser. É uma pena. Somos produtos para um público certo, pré-definido e treinado. Somos facilmente treináveis, manipuláveis e consumidos. Se assim não fosse, nossas preocupações estariam mais na ordem do Ser do que do Ter, do transformar-se do que do acomodar-se, do esforço do que do encosto, do som das nossas vozes do que na imposição delas.

Nossos braços estão oxidados. Estamos todos cansados e exaustos por fazermos trabalhos inócuos, vazios e sem sentido. Trabalhos vaidosos que evidenciam a nossa marca construída num estreito universo. Uma vaidade que não deixa lugar para o outro, que cala o outro, que emudece o outro, que esconde o outro. Quem é o outro? Há tempos ele não existe.

Vaidade é inerente a todos nós. Não acredito que possamos nos despojar dela. Mas podemos, sim, nos apropriar dos moldes que a limita, e assim, limitada, avançarmos para que possamos fazer o mais com menos, para que nossas leituras criem rastros iluminados e saudáveis sob os nossos pés, mesmo que as nossas estradas ainda estejam empoeiradas e com algumas luzes queimadas. É preciso darmos vozes às nossas possibilidades ilimitadas, avançarmos, sairmos do trivial, do cardápio pronto e acelerarmos. Isto dará voz aos ecos roucos que tentam sobreviver dentro de cada um de nós.

Nossos vazios ocupados de vaidade, de vazio, de oco precisam ser desocupados. Quem se habilita a começar a arrumação?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Santo Agostinho, como não poderia deixar de ser, que diz:

“Não há lugar para a sabedoria onde não há paciência.”

A vaidade impede o nosso acesso à sabedoria que, para existir, precisa de paciência. Que saibamos calar a vaidade que vai em nós para que os planos, para nós, não sejam outros. Constantemente, temos conversas nossas, vaidosas, sendo interrompidas por situações e contextos relevantes que insistem em não desistirem da gente. A vida tem sido incansável em nos relembrar o que importa.

domingo, 5 de abril de 2020

Passos alargados

Estamos diluídos na nossa construção, que se traduz e se sustenta por meio dos nossos valores. Há um muito de nós em tudo que possui a nossa digital. A nossa diluição se apresenta nas nossas medidas, nas nossas brechas e nos nossos espaçamentos.

A forma como estamos diluídos na vida, na nossa construção, pode revelar-se sob três aspectos: pessimista, realista e otimista. Não há um quarto aspecto. Ou talvez um quarto aspecto seja a mistura destes três ou a combinação deles. Mas o fato é que há uma predominância na nossa construção, na nossa diluição, na nossa forma de viver e de fazer.


Quem é o mais importante? Quem é o necessário? Quem define?

O pessimista crê na ausência de luz. Esta é a base da construção do pessimista. O otimista crê na ausência de escuridão. Esta é a base da construção do otimista. O realista crê em acionar o interruptor para que haja luz. Esta é a base da construção do realista.

São formas de se viver e versões acerca de quem somos. Valores que nos representam e que nos formam, nos diluem e modelam a nossa construção. Somos a soma de cada um de nós. Ora os três aspectos, ora um, ora dois deles, ora três. Somos os intervalos deles em cada um de nós. Não há errado, não há certo: somente formas distintas de se viver, de se enxergar o que vai, de nos fazer. Todos são importantes. Todos são necessários. Todos nos definem.

Mas por que os otimistas e os realistas são pessoas cuja sombra e água fresca estão garantidas? São pessoas que não sofrem retaliações, são bem-vindas e, mesmo quando apresentam discursos hipotéticos, hipócritas, políticos e mágicos, são alimentados pelos irracionalismos e pelos tendenciosos de plantão. Já os pessimistas, cuja crença está na escuridão, são repelidos da conversa como se fossem contagiosos e inabitáveis.

A maioria de nós se coloca como otimista e/ou realista, porque assim definimos. Mesmo que esta posição não reflita a realidade que vai em nós. É esperado da gente, por causa de uma construção social, que sejamos esperançosos, alegres, otimistas, felizes. Ser pessimista, assumir-se como tal, é como se fosse uma afronta, uma ofensa, um desserviço. O pessimista é renegado, mal visto e, muitas vezes, solitário. É mais valorizado quem se mostra feliz, apesar de não o ser muitas vezes, do que o infeliz honesto. O suposto feliz não dá trabalho para a sociedade. Já o infeliz honesto demanda muito de todos.

Na nossa Cultura de atirar os que não vão com a maioria pelas portas e janelas laterais, vamos acusando, sem exceções, os pessimistas. São pessoas que têm a parte individual atacada pelos que acham que eles deveriam estar ausentes e fora das conversas. O pessimista, que possui uma forma de diluir-se na vida de forma ácida e pouco afeita à luz, é facilmente posto de lado.

imagem tirada da internet

Perdemos a nossa capacidade de reconhecer o outro exatamente por causa da incompletude que ele tem. Mas somos todos incompletos e por fazer. Estamos todos numa esteira sendo formados. É preciso resgatarmos a nossa vontade de nos debruçarmos sobre os outros para poder conhecê-los. Porque se assim fizéssemos, a chance de compreendermos o pessimismo do outro seria grande. A chance de refletirmos sobre o otimismo do vizinho talvez nos ajudasse a nos compreender. E assim sucessivamente. Como, muitas vezes, silenciamos aqueles que não possuem eco em nossas vozes, retiramos de nós a oportunidade de avançarmos. O outro não nos interessa.

Informamos, ao mundo, quem somos por meio do que possuímos e por meio do que damos. Aquilo que nos identifica, que deveria ser o Eu, puramente, está marcado na roupa que vestimos, na universidade que cursamos, na linguagem que usamos, nas crenças que temos, nos lugares que frequentamos, nas falas que pronunciamos. Nossa referência de reconhecimento do outro está no que vai lá fora, e não há mais espaço e nem vontade para nos debruçarmos sobre quem é o outro, sobre a real identidade que ele possui. O externo nos identifica e o interno não nos interessa. Mas é justamente o interno que deveria nos interessar. É ele, e somente ele, que poderá nos explicar quem é o outro. Quem é aquele pessimista, aquele otimista, aquele realista.

E neste lugar de diálogos pré-concebidos e estabelecidos, cujo esgotamento de possibilidades é evidente por parte daqueles que excluem, os pessimistas vão somando rótulos injustos de fracassados, infelizes e precários.

Obviamente, não faço, aqui, um movimento em prol do pessimismo. Mas um convite para reflexão. O pessimista, o otimista e o realista possuem nuances, ramificações que camuflam virtudes e defeitos. É preciso atenção a isso. Mas apenas para os pessimistas esta lupa está a postos.

Um otimista é essencial porque ele sempre enxerga retas no caminho. Vê curvas ainda não trilhadas. Vê possibilidades de caminhada. É um incansável na arte da não desistência. Mas é desprezível aquele típico otimista oco, cujo pensamento mágico o faz crer que bastam meia dúzia de palavras e de pensamento positivo que tudo dará certo. Um otimista que nada constrói porque acredita em fórmulas mágicas e que acha, de forma arrogante, que detém o controle das coisas e da vida. Desconsidera o lado randômico e irregular da vida.

Um realista é essencial porque ele, dificilmente, tira os pés do chão. Sabe até os centavos que possui na conta bancária. É privado de delírios e de alucinações. É um incansável na arte de trabalhar com os fatos. É um sujeito de repertório e sem apego para descontruir o que não deu certo. Mas é desprezível aquele típico realista enfadonho que acha que tudo se resume a uma planilha de Excel e que acha que a vida se traduz em números e descritivos.

Um pessimista é essencial porque ele enxerga a escuridão que, fatalmente, virá, mas que os outros têm medo de enxergar. Vê tropeços na estrada porque sabe da fragilidade dos passos dados até aqui. Ele é o único a colocar holofotes na estagnação e no cotidiano retrógrado. É um incansável na arte de nos lembrar se pegamos o guarda-chuva, porque certamente choverá. Mas é desprezível aquele típico pessimista que se limita a repetir modelos porque “sempre foi feito assim”. Um pessimista que se encosta porque “não adianta, não dará certo”, evidenciando uma postura imobilista, o que não é saudável.

Otimista, realista, pessimista: sinônimo de quem somos. Virtudes e defeitos. Ordens e desordens. Controle e descontrole. Não há como fugirmos disso. Ao excluirmos o pessimista de nossas conversas, sem percebermos, estamos nos excluindo. Porque o pessimista somos nós, também.

Todos são urgentes numa construção pendente e atrasada. Então, por que somente o pessimista paga a conta? Por que este isolamento?

O pessimista vê coisas que ninguém vê, mas que existem. São questionadores porque possuem algo necessário: desconfiança. Não uma desconfiança vazia e má, mas uma desconfiança porque conhece a natureza humana, cuja desonestidade existe. Ele percebe os furos, aquilo que está escrito nas entrelinhas daquele contrato que todos assinam sem ler. Fala dos problemas que aquele super projeto pode oferecer. Quando todos estão comemorando algo que ainda não aconteceu, ele questiona o motivo. Por ser incompreendido, é chamado desmancha-prazeres, mas todos precisam dele. Apenas não reconhecem e o afastam.

Somos uma sociedade que acredita em felicidade de fórmulas e sem construção. Somos viciados em novidades, queremos ser inéditos e achamo-nos no direito de experimentar. Acreditamos que querer é poder. E nada disso existe. O pessimista sabe disso há tempos. E como ele nos lembra disso a todo o instante, queremos afastá-los. É terrível conviver com alguém que fica, o tempo todo, nos falando a verdade e nos lembrando do que somos feitos.

Guimarães Rosa valorizava o meio, a travessia, o trajeto. Portanto, o equilíbrio é essencial. Precisamos de todos, na medida. Nem muitos pessimistas, nem muitos otimistas, nem muitos realistas. De todos. Mas na medida. Para encontrarmos esta medida, apenas fazendo a travessia de Guimarães Rosa. Caindo. Levantando. Chorando. Andando.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de um pessimista incorrigível da nossa História, Nietzsche, autor imprescindível, que diz:

“por vezes, as pessoas não querem ouvir a verdade porque não desejam que as suas ilusões sejam destruídas.”

Este é o trabalho do pessimista: árduo, difícil, indigesto, mas de autoria necessária. Ele ajuda a destruir a ilusão, a farsa, a hipocrisia. Destrói as tábuas de salvação, os falsos apoios e oferece páginas em branco para o recomeço da escrita. Ele possui passos alargados pela lucidez. Mas é incompreendido e, na maior parte das vezes, não recebe aplausos porque todos estão sentados assistindo a um filme de ficção que pela, vigésima vez, reprisa na televisão.