Para este texto, parto de uma
reflexão, cujo autor desconheço, que diz: “veja se você não está encostando
a sua escada na parede errada.”
Tenho dúvidas se estamos
enxergando as escadas, que dirá as paredes, que somente podem ser percebidas se
os nossos olhares abrirem mão de serem vagos e alheios.
Escadas são o ferramental da
vida: o nosso prego, martelo, enxada. A forma como afetamos a vida, como
construímos e destruímos, tratamos e destratamos. Há pessoas que nascem com
escadas prontas, apenas precisam aprender a usá-las. No entanto, há pessoas
cuja estrada se faz longa, e princípios de construção precisam ser aprendidos.
Porque esta pessoa irá, antes, construir a escada para, somente depois, e se
der tempo, usá-la. Para esta segunda pessoa (porque há só dois tipos de pessoas
no mundo: as que nascem com escadas prontas e as que precisam construí-las), a
vida será mais dura e mais exigente. Ela não nasceu com todos os pré-requisitos,
e o currículo está no final de uma fila grande. Mas também para a primeira
pessoa, talvez a vida seja, num primeiro momento, mais fácil e menos exigente.
Afinal, o currículo estava quase pronto. Contudo, ter escadas prontas não será
sinônimo de saber usá-las. E não sabendo usá-las, o apodrecimento será certo,
ainda mais se o material for de madeira.
Paredes são as nossas fronteiras,
os nossos vizinhos, o nosso mundo em branco, o nosso lembrete de que subir se
faz necessário, mas que descer também é uma realidade. Mais que realidade:
probabilidade. Paredes são transportes ora públicos, ora privados. São caminhos
a serem percorridos por alguém que somos nós, ainda que esta imagem de quem
somos nós, se vai longe, quase inalcançável. É preciso escalar, subir.
A subida nos lembra de que é
constante o exercício. De que a dinâmica da vida é viva. O bom de o cume estar
longe é que diminuem as chances de acharmos que merecemos apenas sombras e
frescas. O sol ainda está alto.
É preciso que as linhas da
nossa identidade não fiquem em branco, como disse José Saramago. Para justificá-las
e preenchê-las, saber aonde encostamos as nossas escadas será primordial.
Para onde estamos indo? O que
buscamos? Qual o sentido disso? Por que fazemos o que fazemos? Não são
perguntas genéricas. São perguntas feitas a nós, pela vida, cujas respostas
ainda buscamos. Estarmos com as nossas escadas encostadas nas paredes certas é
uma das formas de localizarmos estas respostas. Nestas paredes certas, o eco
será a nossa própria voz, as pichações serão as nossas e a tinta gasta deverá
ser refeita por nós. Por quem mais?
Buscamos sorrisos em paredes
opostas às nossas. Buscamos o nosso tamanho encostados em paredes que nos
diminuem. Somos um marketing de graça para uma empresa que nos dá uma
casquinha de sorvete de graça às custas de duas horas nossas, na fila. Somos
respostas prontas de perguntas que não sabemos fazer. Aliás, não fazemos
perguntas porque elas cansam e nos gastam. E se estamos gastos, como iremos
representar numa sociedade que, por acaso, é a nossa? Sorrimos sorrisos
esquecidos nos cantos da boca porque assim fomos educados. Representamos. Fingimos
que gostamos. Fingem que acreditam no nosso gostar. E de fingimento em
fingimento daqui a pouco nos esquecemos sobre o que falávamos.
Fazemos propaganda sobre coisas
que nos devolvem ao lugar que, duramente, conseguimos sair. Paredes tristes
criam necessidades que agora não vivemos sem. Nossas escadas já viram estas
necessidades vendidas que, alegremente, compramos e ainda exibimos os tickets
pagos. As televisões, os smartphones e os eletrônicos são os grandes
campeões da Black Friday. Quem vive sem eles? Queremos escadas melhores?
Por favor, sem críticas. Apenas uma sugestão de estabelecermos relações mais
lúcidas com eles. Televisores vendem entretenimento barato, mas também saudável.
Vendem sensacionalismos, mas também documentários. Vendem um marketing
cruel. Vendem ilusões, mas também aprendizados e conquistas. Qual
buscamos? Celulares salvam, matam, revelam, invadem, ensinam, facilitam, prendem.
O que buscamos? Quem está com o controle remoto em mãos? Quem clica no link?
Quem doa o tempo a troco de falsas conquistas?
“Veja se você não está
encostando a sua escada na parede errada.” Seja você a primeira pessoa ou a
segunda, é preciso franqueza com os nossos passados, com aquilo que nos
construiu. Não são mais lugares vivos para se viver, mas como baús ambulantes
que nos acordam de tempos em tempos nos lembrando do nosso tamanho e da nossa
responsabilidade. Somos pedreiros, pintores, engenheiros e arquitetos de nossas
escadas. Aonde elas estão encostadas? Não adianta impor os nossos intervalos,
brechas e bastidores aos outros. No final, é com a gente.
Estratégia e disciplina são duas
grandes aliadas daquele que vai lúcido na própria escada, daquele que conhece
com propriedade a parede sobre a qual encosta o seu ferramental. Pessoas
lúcidas costumam ser mais comedidas e econômicas com o sorriso porque sabem que
o trabalho é grande. Como podem sorrir sem medidas se a maturidade ainda vai
longe? Um sorriso restrito, mas sincero, já é o suficiente.
Não posso deixar de mencionar as
múltiplas escadas que influenciam na nossa. Perceptíveis ou não como se fossem
verdadeiros roteiros. Às vezes, nos deixamos apedrejar e apedrejamos por pura
cópia do que vivemos e somos vividos. Retirar pedras exige muita destreza de
nossas mãos que ainda seguem trêmulas. Ter consciência sobre quais são as
nossas escadas, quais têm sido as paredes sobre as quais encostamos os nossos
aparatos, independentemente, de qual pessoa somos, se a primeira ou a segunda,
é um exercício permanente, vitalício. É preciso silenciar vozes que se confundem
com as nossas. É preciso colocar luvas e mudar a nossa escada de lugar, se
assim for preciso. Enxergarão a nós e a nossa escada mudando de parede. Darão
risada de nós por puro gosto de nos esmagarem. Apontarão dedos. Seremos
excluídos. Ridicularizados, será? Teremos de dar satisfações, muitas vezes, nos
tribunais de pessoas que só levam recados. Mas este é o preço daquele que ousa
questionar se a escada dele está encostada sobre a parede certa. Antes ser
ridicularizado, mesmo que por aqueles que encontram, apenas, no caminho linear
o sentido da vida, do que chegar, hipocritamente, ao último andar da nossa
escada e enxergar parcas moedas.
A vida não é linear. Aquele que
busca somente a linearidade e a convergência chegará ao último degrau da escada
e nada encontrará. Paredes lisas, sem rachaduras, imperfeições,
irregularidades, desnivelamentos não é uma parede merecedora da nossa atenção:
é apenas uma venda casada imposta (e compramos) de comércio de falsificações
com contas hipocritamente dobradas para que não vejamos o valor.
Escadas e paredes: como estão as
nossas? Se chegamos com elas prontas ou não, o caminho somente reconhecerá os
nossos passos. Há rastreamento e câmeras por todos os lados. De nada adiantará
dizer que temos parentescos com aqueles que já vão nos últimos degraus das
escadas certas nas paredes certas enxergando as paisagens que vão muito além de
periferias.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um verso do poema Das Utopias, de Mario Quintana,
que diz:
“Se as coisas são
inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!”
Querer pisar sobre os degraus da
escada certa, na parede certa pode estar, momentaneamente, inatingível. Mas
isto não será motivo para não buscar estes degraus, como nos ensinou o mestre
Quintana. Recomeçar é a regra da vida. Afinal, todos os dias o sol se levanta e
os pássaros retomam os seus afazeres. Que a gente não obedeça ao senso comum do
risível, do visível e do geral, daquele que acha que semeia. Que a alma dos
grandes nos povoe e que não tenhamos orgulho de mostrar a nossa facilidade de
adaptação.
O pomar nos espera para o
plantio. O quintal já foi varrido. As frutas amadurecem. A escada existe. A
parede persiste. Os degraus estão firmes. Os nossos pés cabem. A mudança de
parede existe. Se precisar mudar, será possível. Pagaremos contas altas por
mudarmos de paredes. Mas os parcelamentos em doze vezes, sem ou com juros,
existem para darem conta disso, mesmo.