domingo, 30 de agosto de 2015

Filosofia do Camelo

Uma mãe-camela e um bebê-camelo estavam à toa, quando, de repente, o bebê perguntou:

-  Mãe, por que os camelos têm corcovas?

- Bem, meu filho, somos animais do deserto. Precisamos delas para reservarmos água. E exatamente por isto, somos conhecidos por sobrevivermos sem água.

- Certo. E por que nossas pernas são longas e nossas patas arredondadas?

- Filho, certamente elas são assim para permitir caminharmos no deserto. Sabe, com essas pernas longas, mantemos o nosso corpo mais longe do chão do deserto, que é mais quente que a temperatura do ar. Desta forma, ficamos mais longe do calor. Quanto às patas arredondadas, podemos nos movimentar melhor devido à consistência da areia.

- Certo. Por que nossos cílios são tão longos? De vez em quando eles atrapalham minha visão!

- Filho, esses cílios longos e grossos são como uma capa protetora. Eles ajudam na proteção dos seus olhos quando atingidos pela areia e pelo vento do deserto, respondeu a mãe.

- Deixa ver se eu entendi: a corcova é para armazenar água enquanto cruzamos o deserto, as pernas para caminhar através do deserto, e os cílios são para proteger meus olhos do deserto. Então, o que estamos fazendo, aqui, no Zoológico?

Esta história, de autoria desconhecida, é muito sábia e vale refletirmos sobre ela.

Lembrei-me dela ao passar por um comércio, que há perto da minha casa, cujo dono possui um passarinho preso numa gaiola. Ele é lindo: pequeno, gordinho, amarelinho e tem um canto delicioso de se ouvir. Ele fica sozinho, pulando ali dentro, sem perspectiva alguma de vida. Apenas a de servir ao egoísmo do dono. E que bom que aquele passarinho não tem consciência disto. De que adianta toda a habilidade e a capacidade de cantar daquele pássaro se infelizmente, ele está no lugar errado?

Penso que o bebê-camelo e o pássaro possuem várias coisas em comum. Questionar sua sorte, como fez o bebê-camelo, pelo menos no mundo animal, ainda não presenciei. Então, eles ainda vão depender, durante um bom tempo, do bom senso do ser humano em respeitar a natureza e as necessidades de cada espécie.

E conosco? Acredito que pelo menos uma vez na vida já nos sentimos ora bebê-camelo, ora pássaro. Por mais duro que sejam estas experiências, e só quem já passou por elas pode dizer o quão difícil são, com tudo aprendemos na vida. E se soubermos absorver todo o aprendizado que esta experiência nos deu e aplicá-lo efetivamente em nossa vida, certamente será difícil voltarmos a nos sentir bebês-camelo ou pássaros, dentro de gaiolas.

Aquela mãe-camela se orgulhava de responder a todas as perguntas do filho realçando a habilidade, o conhecimento, a capacidade e a experiências adquiridos ao longo de sua vida, e também realçando as qualidades da espécie, para o filho. Mas não conseguiu responder a pergunta mais importante: “Então, o que estamos fazendo, aqui, no Zoológico? ”

E por que ela não conseguiu responder? Porque aquela mãe-camela deixou enferrujar, nela, uma qualidade fundamental que todos nós temos: a capacidade de perguntar, de criticar, de não aceitar o senso comum. Esta capacidade deve ser usada diariamente e ela é uma das ferramentas poderosas que não permitirá a nossa entrada em gaiolas ou zoológicos. E se por descuido entrarmos, o questionamento nos fará sair dele rapidamente. Mas é preciso agir rapidamente, porque a ferrugem é difícil de sair. E se você deixá-la criar espaço e se estabelecer, ela poderá arranhar as suas estruturas e também coisas fundamentais como valores, crenças e propósito de vida. E quando você perceber que a ferrugem tomou conta, tentará usar aquele produto que disseram que limpa, mas poderá ser tarde demais.

Este é um cuidado muito especial que devemos ter. É preciso lembrar que a ferrugem se instala de forma silenciosa, quieta. Ela vai tomando uma cor alaranjada e se esfarela.

Estar e permanecer no zoológico ou nas gaiolas são escolhas. Escolhas nossas e que ninguém poderá fazê-las por nós. Muitas vezes nos enxergaremos e nos encontraremos em gaiolas ou em zoológicos, mas ainda não teremos forças e condições para sairmos de lá. Tudo bem. O nosso tempo vai chegar. O mais importante é descobrir se queremos ou não estar lá. Se descobrirmos que não queremos estar ali, é só uma questão de oportunidade e de tempo: na hora certa, daremos adeus às gaiolas e aos zoológicos. E o mundo se beneficiará de nossas habilidades e de nosso talento.

Mas há o grupo dos que gostam das gaiolas e dos zoológicos. Pelo menos, aparentemente. Eu conheci algumas pessoas deste grupo. Convivi bem de perto com elas. Aliás, passei tempos longos em alguns zoológicos, por isto tive a chance de conviver com muitos habitantes de lá. Aprendi muito. A convivência nestes ambientes me fez valorizar ainda mais minhas escolhas e a decidir de qual lado gostaria de estar. O processo é moroso e lento. Mas não há outro caminho. Só a construção sólida te dá a segurança de poder abrir a janela e deixar o sol entrar.

Estas pessoas que conheci, e que aparentemente diziam que gostavam dos zoológicos e das gaiolas, acreditavam que era mais fácil a convivência num zoológico: as regras estavam prontas, os horários criados e a rotina reinava. Quando eram perguntados: “vocês são felizes? ”, as suas respostas eram sempre seguidas de um longo silêncio e de um tímido gaguejar: “ah, si... sim, sou, quer dizer, acho que sou. Mas quem é de verdade? ”, logo argumentavam isto.

Mas eu sabia que no fundo não eram. Flagrei-os, muitas vezes e escondidos, procurando a chave para abrirem a porta do zoológico e saírem, mas ainda não estavam prontos. Tiveram de devolver a chave para o administrador, assim que foram pegos em flagrante. Eu mesma tive de devolver a chave inúmeras vezes, também. Estar pronto é uma construção. É uma conquista diária.

Esta construção e esta conquista poderão ser iniciadas dentro do zoológico, estejamos atentos. Lá dentro é muito comum nos darem muitas e muitas munições, e tentarem nos convencer de que lá é o lugar certo para nós. E se não concordarmos, ainda nos acharão um tanto esquisitos. “Como assim você não quer ficar aqui, neste zoológico? Tem tanta gente lá fora querendo estar aqui? Como você não enxerga isto? ” E ainda passaremos por mal-agradecidos. Mas Paulo Coelho já dizia: “só os medíocres agradam a todos. ”

Existem políticas dentro de um zoológico. Existem regras dentro de uma gaiola. E se queremos sobreviver lá ou ainda ficarmos por lá mais um tempo, será preciso segui-las. Se tivermos a coragem de questionar estas regras, estejamos preparados para sermos vistos como problemas para aquele zoológico. E consequências virão: boas ou não, o risco será nosso. Por isto nos calamos, na maior parte das vezes, dentro de um zoológico ou dentro de uma gaiola.

E se tentarmos falar mesmo sabendo das regras e das políticas, estejamos certos de que alguém, gentilmente, nos lembrará das regras e das políticas. Além disto, nos convidará a nos recolher porque estará tarde, e será preciso trancar os portões do zoológico, e colocar a manta sobre a gaiola.

Há tanto o que dizer! É preciso ouvir os silêncios. Mas como ouvir o silêncio se não o aprendemos? Não há este curso na grade corporativa de um zoológico. Muito menos na grade de uma gaiola, porque lá é menor e não tem orçamento para isto. Talvez no ano que vem, caso melhorar a economia e caso a inflação se estabilizar.

Desengavetar nossos talentos, habilidades, conhecimentos é fundamental para sermos felizes. Colocá-los em uso próprio e do próximo é o que dá sentido à vida, é o que dá sentido ao propósito. Por isto aquele camelo-bebê estava perdido. E sua mãe, mais ainda.

É preciso preparo e coragem para sair do zoológico ou da gaiola. E mais: saber se queremos sair, que é o mais importante. E depois disto, decidir e fazer, seja dentro ou fora do zoológico.

O nosso dom, talento, habilidades, missão, conhecimento são caros demais para nós. Somente nós, e ninguém mais, sabe o quão difícil foi chegarmos até aqui. É imprescindível que saibamos o valor das coisas, e não o seu preço, que é algo bem diferente. O valor das coisas, das nossas coisas, só a gente sabe. Mas o preço, ah...o preço, este está bem claro na plaquinha dentro do zoológico. Há o preço de tudo ali dentro.

E quando aprendermos, na vida, a diferenciar valor de preço, e a viver de acordo com isto, certamente não precisaremos mais devolver a chave do portão do zoológico para o administrador, se a nossa escolha foi a de sairmos de lá, porque teremos a certeza de qual lado vamos querer estar.

Para concluir este texto, deixo uma frase de Fernando Sabino, escritor brasileiro, que diz, sabiamente:

“Liberdade é o espaço que a felicidade precisa. ”

Penso que seja isto o que aquele lindo pássaro e aquele bebê-camelo precisassem. E nós também. A liberdade é umas das ferramentas que nos levará à felicidade.

A única diferença entre eles e nós é que, no caso do pássaro e do bebê-camelo, infelizmente, não tinham acesso às chaves dos portões e das gaiolas. Porém, no nosso caso, temos acesso às chaves. Basta observarmos aonde elas foram guardadas e conquistarmos o direito de possui-las e de usá-las.

O caminho é longo, mas divino.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Elementar, meu caro Watson...

Sherlock Holmes e Dr. Watson vão acampar.

Montam uma barraca e, depois de uma boa refeição e uma garrafa de vinho, deitam-se para dormir. Algumas horas depois, Holmes acorda e cutuca seu fiel amigo:

- Meu caro Watson, olhe para cima e diga-me o que vê.

Watson responde:

- Vejo milhares e milhares de estrelas.

Holmes então pergunta:

- E o que isto significa?

Watson pondera por um minuto, depois enumera:

1) astronomicamente, significa que há milhares e milhares de galáxias e, potencialmente, bilhões de planetas;

2) astrologicamente, observo que Saturno está em Leão e teremos um dia de sorte;

3) temporalmente, deduzo que são aproximadamente 03h15, pela altura em que se encontra a estrela polar;

4) teologicamente, posso ver que Deus é todo poderoso e somos pequenos e insignificantes; e

5) meteorologicamente, suspeito que teremos um lindo dia amanhã. Correto?

Holmes fica um minuto em silêncio, então responde:

- Watson, nada disso! Significa apenas que roubaram nossa barraca!

Portanto, emprestando o termo de Sherlock, elementar, também, é a arte de simplificar as coisas. A vida, acredito, é mais simples do que fazemos dela.



Sherlock Holmes dizia: “Você vê, mas não observa. ” E realmente a observação está ficando para segundo plano. Observamos pouco. Conhecemo-nos pouco. Interagimos pouco.

O descomplicar as coisas passa pela observação, pelo pensar, pelo refletir, pelo conhecer, pelo interagir. Se fizéssemos isto mais e frequentemente, seria possível aparar as nossas arestas mais facilmente e, sem arestas, enxergaríamos realmente o que precisa ser visto.

Descomplicar é complicado. É complicado ser simples. Porque o simples não tem respaldo na vaidade, nas falsas verdades. Ele é simples e pronto. Visível, aparente e transparente. No entanto, o complicado e o prolixo têm respaldos que a simplicidade, há muito tempo, abriu mão. E abrir mão tem o seu preço: o olhar descrente daquele que te critica, e diz: “mas é só isso? ” Só que este “só isso” já disse tudo e demorou um longo tempo para ser construído.  Então para que mais?

Ser simples é estar exposto a um mundo que complica demais as coisas, que vê valor no complicado. Simplificar é favorecer o acesso, a participação, o grupo, o avanço.

Ser simples significa descortinar, mostrar. Descortinar significa deixar mais pessoas entrarem na sua conversa, e não somente aqueles que fizeram um curso na faculdade de primeira linha, e que, portanto, têm visibilidade na sociedade dos vaidosos.

Ser simples é o contrário de ser complicado, que é aquele que adora uma extravagância e que faz questão de dizer coisas que as pessoas não entendem. Foi uma das maneiras que ele encontrou, na vida, de se sentir importante e melhor do que o outro.

Aquele que é simples favorece o que tem valor e significado; aquele que é complicado favorece os números, a quantidade, a propaganda, o cargo, a primeira página.

Confundimos, ainda, ser simples com ser simplista. Ser simples, como dizia Leonardo da Vinci, é “o último grau de sofisticação”, ou seja, um lugar aonde poucos vão chegar. Ser simplista é menosprezar o fundamental, o imprescindível para que todos o compreendam.

Ir direto ao ponto, sem voltas e sem rodeios, é uma construção. Não conseguiremos isto da noite para o dia. É um processo. Não dar voltas e descomplicar as coisas, o nosso trabalho e tudo o que nos cerca são pontos fundamentais se queremos ser eficientes.

Complicamos, também, porque achamos que isto nos fará ser mais respeitados. Mas o respeito nasce da admiração que se tem. E só admiramos a quem respeitamos.

Simplificar é um convite para rever etapas desnecessárias e, assim, se ter mais tempo para o que realmente importa. É destituir-se da vaidade de que somente os complicados e os muito complicados enxergam valor.

Simplificar é não ocupar o tempo do outro com as nossas prioridades, com as nossas complicações, com as nossas vaidades. Simplificar é sentir um profundo alívio ao dizer: “não sei”.

Dizer “Eu não sei” é libertador. E perigoso, também. Porque esta liberdade de dizer que não sabe fará de nós, muitas vezes, solitários no caminho. Por isto devemos escolher o nosso caminho sem olharmos para trás. E como diz a música: “não fique procurando o que perder”.

Ser simples é diminuir as etapas para se ter qualidade nas que ficarem. É preocupar-se com a qualidade e não com a quantidade. Se somente a quantidade brilhar os nossos olhos, estejamos certos de que a qualidade de tudo o que fizermos estará comprometida.

A quantidade, portanto, altera a qualidade.

Ser simples é ser eficiente. É fazer a reunião quando realmente ela for necessária, e não porque a prolixidade e a ineficiência são nossas parceiras.

Marcamos uma reunião para falarmos sobre outra reunião. Quem nunca fez isto, pode, por favor, atirar a primeira pedra?

Ser simples é ter uma linguagem cujo significado todos entendam. E ter uma linguagem simples não é falar errado, não é utilizar termos vulgares e populares. Mas sim, dizer o que precisa ser dito, é ser acessível a todos e não somente àqueles de interesses pessoais. Falar difícil e complicado cria uma barreira e afasta o outro.

Ser simples e, consequentemente, ter uma vida simples e eficiente implica uma mudança. E mudar requer uma capacidade de compreensão, de desejo de transformação e de desenvolvimento. Implica uma mudança na postura do pensamento.

A vida não é para ser vivida linearmente, alguém já disse isto.

O sucinto escorrega na falta; o prolixo no excesso.

Por que, então, complicamos? Vários são os motivos: desconhecimento, medo, vaidade, procrastinação, prolixidade, burocracia, falta de humildade, etc. Portanto, encontrar a causa do problema fará toda a diferença em nossa vida. Parece óbvio, mas não fazemos.

Por onde começar, então? Questionando-nos e buscando conhecimento. Quem não se conhece vive à deriva e viver à deriva é um convite a complicações. Precisamos ter foco e nos perguntar:  “Por que complicamos? Por que não conseguimos decidir? ”

O diálogo conosco nos levará para uma conscientização do nosso erro, das nossas negações. Porém, será preciso aceitá-los. Aceitar que complicamos as coisas ajudará bastante para iniciarmos o nosso processo de mudança. Portanto, o dialogar conosco é crucial. Precisamos nos ouvir e conversar com pessoas da nossa confiança. Aceitar opiniões diferentes. E lembrar-nos de que o diferente não é errado. É só diferente. Simples assim.

Precisamos saber qual é o nosso diferencial. Isto nos ajudará a seguir nos momentos da travessia, da mudança. O nosso diferencial não nos deixará desistir.

Para encerrar o texto, mas não a reflexão, deixo aqui uma frase do próprio Sherlock, que diz:

“O mais importante da vida não é a situação em que estamos, mas a direção para a qual nos movemos. ”

Portanto, se quisermos nos mover para a direção correta, certamente a simplicidade deverá fazer parte do nosso caminho.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Os Medalhões do Machado continuam vivos

Machado de Assis é considerado o maior escritor da nossa Literatura. Falar sobre a obra dele seria uma redundância.

Foi uma pessoa além do seu tempo. Atemporal. Viveu no século XIX e faleceu no início do século XX. Mas ele se encaixa em todas as épocas e contextos. Uma pessoa que escrevia, abertamente, sobre temas polêmicos e pouco discutidos. Não tinha medo de se expor e, por meio de suas obras, colocava o dedo em várias feridas.

Certamente fazia muitos vestirem as devidas carapuças.

Sua forma inovadora de escrever e, principalmente, sua audácia na ausência do medo de se expor, fez dele uma pessoa admirada por críticos, estudiosos e leitores do mundo todo. A obra dele foi equiparada a obras de Shakespeare e Camões.

Escreveu um conto chamado: “O Medalhão”, bastante conhecido e de leitura obrigatória nos meios acadêmicos. Trata-se de uma ironia, de uma sátira do comportamento da sociedade da época, mas que cabe perfeitamente para nossa reflexão.

Neste texto, ele pontua todas as fraquezas humanas, todos os vícios, os falsos atalhos, as pequenezas de todos nós. Fraquezas que não são consideradas fraquezas, pelos personagens do conto, mas sim como recursos poderosos para o “se dar bem na vida”.

E o que é “se dar bem na vida? ”

As diversas passagens do conto vão dar as respostas. Falsas, obviamente, mas vão dar estas respostas, estas pistas para “se dar bem”, “ser bem-sucedido”, “ser um notável”. Respostas atuais, contemporâneas, familiares.

O conto relata uma conversa entre pai e filho, na noite em que o rapaz completa 21 anos. Terminado o jantar de comemoração, o pai diz ao filho que precisa dizer coisas importantes a ele. E aí todo o conto será uma grande ironia disfarçada desta conversa, supostamente, inocente com o filho.

Logo no início, o pai diz ao rapaz que ele poderá escolher uma entre as muitas carreiras existentes. Mas, diz o pai, “qualquer que seja a profissão de tua escolha, o meu desejo é que você se torne grande e ilustre, ou pelo menos, notável. A vida é uma enorme loteria...isto é a vida. ” E aconselha o filho a “aceitar as coisas integralmente. ”

A valorização do parecer acima do ser. Como não é de hoje esta conversa!

O pai continua dizendo ao filho que nenhum outro ofício parece mais apropriado do que o de ser um Medalhão. “Ser medalhão foi o sonho de minha mocidade. Mas me faltaram instruções de meu Pai. ”

“Uma vez entrado na carreira, o melhor é não ter ideias. Você, meu filho, se não me engano, parece dotado de perfeita inópia mental (aquele que não é muito inteligente), conveniente ao uso deste nobre ofício. ”

A perpetuação dos maus exemplos (“mas me faltaram instruções de meu Pai”). Chama o filho de “pouco inteligente”. Por isto o aconselha a ser um Medalhão.

“O passeio nas ruas é utilíssimo, com a condição de você não andar desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias”, diz o pai.

E o filho diz: “mas e se eu não tiver um amigo para me acompanhar? ”

E o pai responde: “você pode resolver isto de modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, um contrabando, uma calúnia. Desta forma, dentro de algum tempo, reduzirá o seu intelecto ao equilíbrio comum. Seu vocabulário deverá ser simples, morno e reduzido. Melhor do que tudo isto, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, que têm a vantagem de não obrigarem os outros a um esforço. De resto, o mesmo ofício te ensinará os elementos desta arte difícil de pensar o pensado. ”

Pensei na mediocridade construída às escuras, às avessas, na nossa sociedade que ajudamos a construir e da qual fazemos parte.

Tudo o que Machado de Assis explora neste conto são “regras” estabelecidas pela hipocrisia e pela mediocridade. “Seja assim e se dará bem. ” E não fazer parte disto é conscientizar-se de que se pagará um alto preço por ir na contramão do estabelecido, do ajustado, do azulejado.

Questionar é para poucos. Seguir o fluxo é para muitos. Trilhar o caminho já trilhado estraga menos o calçado, mas, de verdade, não te ensina a caminhar.

A sociedade é assim. Todos fazem isto. Por que você quer fazer diferente? “Pare de ser bobo”, dirão para você.

A ironia está fortemente presente nessa última fala do pai: “...desta arte difícil de pensar o pensado. ” Como pode ser difícil pensar sobre algo que já foi pensado por alguém? Machado de Assis estava se referindo aos medíocres, aqueles que se estabelecem no meio, no trivial, naquilo que todo mundo já viu, já conheceu e já aceitou.

E o rapaz diz: “vejo que o senhor condena toda e qualquer aplicação do que é moderno. ” E o pai respondeu: “condeno a aplicação. Louvo a denominação. O mesmo direi de toda a terminologia científica: você deve decorá-la. Porque o método de interrogar os mestres, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inserir ideias novas. ”

E o filho, ironicamente, diz:

“Nossa, que profissão difícil. ” E o pai diz: “Mas eu ainda nem te falei sobre os benefícios da publicidade, que você deve requerer à força de pequenos agrados. O verdadeiro Medalhão, longe de inventar um tratado científico sobre a criação de carneiros, compra logo um carneiro e dá de presente aos amigos na forma de um jantar, cuja notícia não poderá ficar indiferente aos convidados. Uma notícia traz outra. E aí o teu nome estará nos olhos do mundo. Não recuse um lugar à mesa para os repórteres. Se eles estiverem muito ocupados e não puderem dar a sua notícia nos jornais, ajude-os e redija você, mesmo, a notícia da festa. E se por causa de algum escrúpulo você não quiser anexar os elogios ao teu nome, peça para que um amigo o faça. ”

E o filho diz: “O que me ensina não é nada fácil. ” E o pai diz: “É difícil, leva tempo, anos. É preciso paciência e trabalho. Felizes os que conseguem. Mas você triunfará. Creia em mim. Somente neste momento você poderá dizer que está estabelecido na vida. Começará neste dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões. Elas virão até você.  Toda questão é não infringir as regras. Prefira falar sobre metafísica política porque não obriga a pensar e a descobrir. Nesse ramo tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado. Em todo o caso, nunca ultrapasse os limites de uma invejável vulgaridade. ”

“Farei o que puder”, disse o filho. “Nenhuma filosofia? ”  E o pai responde: “ no papel e na língua, alguma; na realidade nada. Proíbo você de chegar a outras conclusões que não sejam as já encontradas por outros. Foge a tudo o que possa cheirar a reflexão, originalidade. Use o escárnio e a zombaria. Mas não use a ironia. ”

O conto é finalizado com o pai dizendo ao filho que, por ser já bem tarde, precisam ir dormir. Mas pede a ele que reflita bem sobre os conselhos recebidos.

Destaquei as passagens que mais me chamaram a atenção, mas ele vale uma leitura completa. Ele trata de questões atualíssimas como:

- ascender socialmente sem grandes esforços. “Faça isto e você se dará bem. ”;

- cinismo (“é preciso paciência e muito trabalho para dar certo. Mas você triunfará. ”);

- enriquecimento às custas do empobrecimento intelectual e moral (“fuja da originalidade”);

- o esforço é inútil (“compre o carneiro pronto e dê de presente”);

- vá com a maioria (assim ficará mais fácil ser aceito. E o melhor: dificilmente você será questionado na vida);

O discurso deste pai é para a visibilidade do filho, e não para a profundidade. O senso comum, o esvaziamento do valor e do sentido e o entretenimento em detrimento do conhecimento são imprescindíveis para quem quer se tornar um Medalhão.

Você não precisa pensar. Anule-se como pessoa, e tudo estará certo para você. Jogue fora suas opiniões e hábitos. Goste do gosto dos outros.

Mantenha-se neutro. A neutralidade é invisível.

Faça um MBA em aprender a jogar o jogo das relações e a arte das dissimulações. Seu currículo será priorizado. E sempre se lembre de tomar as ideias emprestado, não perca tempo pensando sobre isto. Vá em busca do que já foi criado e use o que já foi usado.

Evite dar a sua opinião, a menos que seja para concordar com o outro. E não queira entender muito bem como funciona uma coisa.

Agrade e faça elogios. Vivemos na sociedade do espetáculo. Torne-se visível, mas cuidado para não ser transparente. Lembre-se de que isto não será bem visto na sociedade do espetáculo.

Tive uma Gestora, que fez aquele MBA ao qual me referi acima, que nos pedia para “nos vender mais”. Até hoje estou tentando entender o que ela queria dizer com aquilo. Quando se faz bem algo ou alguma coisa, o reconhecimento chega. Não precisa se preocupar com ele.

A sociedade do espetáculo é excelente para criar estratégias que estejam acima da competência. A competência leva tempo para ser construída e para surgir. O espetáculo desta sociedade é imediato e instantâneo. Leva só três minutinhos. E se esfriar, é só requentar.

Decidimos para agradar ou porque é o certo e o ético?

Não precisamos pensar: apenas nos preocupar em reproduzir será o suficiente. O problema é que estamos replicando modelos ineficientes. Ainda bem que não podemos generalizar.

Faça o trivial. O refinamento não me interessa. Aonde eu compro um carneiro?

Este conto, portanto, é um paradoxo. E se há o paradoxo é porque a base ainda não está sólida, ou seja, nossos valores, nossas crenças. Quem somos?

Se os medalhões existem é porque os alimentamos. Mesmo que seja por sobrevivência. Mas os alimentamos. Ou alguém discorda?

Clarice Lispector tem uma frase que diz:

“...passava o resto do dia representando, com obediência, o papel de ser.”

Que saibamos identificar estes medalhões a quem servimos, com obediência, o nosso papel de ser. E que possamos sair do nosso papel de ser para nos transformarmos no nosso papel do ser, de preferência, com os medalhões bem longe da gente, morrendo de fome.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Você amolou o seu machado hoje?

Havia um jovem lenhador que ficava impressionado com a eficácia e com a rapidez que um velho e experiente lenhador cortava e empilhava as madeiras que cortava.

Além de admirá-lo, o jovem desejava se tornar tão bom quanto o velho homem e quem sabe, até melhor que ele na arte de cortar madeiras.

Certo dia, o rapaz procurou o velho lenhador para aprender este ofício. Alguns dias depois, o jovem entendeu que havia aprendido tudo o que podia com o velho e que, pensando bem, o lenhador não era tão bom assim.

Arrogante, o jovem propôs um desafio ao velho lenhador: ganharia o prêmio quem cortasse mais madeiras. E o experiente lenhador aceitou o desafio: de um lado, o jovem incansável. Mantinha-se firme, cortando as suas árvores sem parar; do outro, o velho lenhador, desenvolvendo o seu trabalho, silencioso, tranquilo, firme e sem cansaço.

Num dado momento, o jovem olhou para trás para observar como estava o velho lenhador, e, surpreso, o viu sentado. O jovem sorriu e pensou: “Além de velho e cansado, está ficando tolo. Por acaso não sabe que estamos numa disputa? ”

Assim, o jovem prosseguiu cortando a lenha sem parar, sem descansar um minuto.

Ao final do tempo estabelecido, foi constatado que o velho havia cortado quase duas vezes mais árvores do que o jovem. Espantado e irritado, ele questionou:

- Velho, qual é o seu segredo para cortar tantas árvores? Além disto, parei para observá-lo e o vi sentado e tranquilo. No entanto eu não parei um minuto para descansar.

E o velho, sabiamente, respondeu:

- Todas as vezes em que você me viu sentado, eu não estava parado, descansando. Eu estava amolando o meu machado!

Bela reflexão...

Existem muitas coisas na vida que são indelegáveis. E uma delas é amolar o nosso machado. Este exercício é individual, particular, intransferível. Não deve ser delegado.

Delegamos coisas indelegáveis. E deixamos de delegar aquilo que deveríamos. E com o nosso machado não seria diferente: há muitos de nós delegando este amolar.

Amolar vem de (a + mola + ar) e seu significado literal é tornar algo afiado por meio de um aparelho, o amolador ou a mola, como dizem os espanhóis. O prefixo “a”, antes do termo “mola”, de ingênuo não tem nada. Ele vem do latim e indica uma ideia de aproximação, transformação, mudança de estado. Por isto acredito que esta é uma das muitas coisas que não se deve delegar na vida. Transformação e mudança de estado são trabalhos individuais, ninguém poderá fazê-los por nós.

Amolar o machado não é para qualquer um. É só para aqueles que já perceberam a relevância de se preparar, de pensar antes de agir, de se calar quando não se tem nada a dizer. De realmente se recolher para repensar a estratégia ou, até mesmo, se firmar nela.

Amolar o machado é para poucos. A maioria quer a ferramenta pronta para o uso. Sabe aquela embalagem que diz: “pronto para servir! ”. Pois é...

Estamos desprezando o tempo do preparo, queremos tudo pronto: o frango já vem temperado e a pizza está pré-assada. Estas praticidades ajudam? E como! Mas aceitar e usar as praticidades da vida não significam abrir mão de amolar o seu machado, de fazer o que precisa e de delegar o que você não precisa fazer.  Quando estamos nos referindo ao frango, nada há de errado. Mas quando falamos sobre transferir responsabilidades e delegar coisas e assuntos indelegáveis, a conversa muda de tom.

Não queremos mais o preparo. Ele foi desprezado por nós.

Amolar o machado significa se preparar para algo que talvez não aconteça. Você já pensou nisto? Você se preparou tanto para uma reunião, estudou, simulou perguntas. E quando o Diretor entrou na sala, disse para você que ele teria somente dez minutos para te ouvir. Ou quando você estuda tanto, perde horas de sono, se esforça e a prova é cancelada.

Tive um Diretor que sempre fazia isto: pedia uma série de coisas, informações, dados. Era um tempo considerável no preparo daquele material. Invariavelmente ele chegava atrasado à reunião, se desculpava, e nos dizia que precisaríamos “acelerar” a conversa. Ouvia-nos e ao mesmo tempo verificava seus e-mails no celular, agradecia e saia da reunião.

Que bom que o contato com ele não foi suficiente para me desestimular a amolar o meu machado durante a minha vida. Sempre existirão aqueles que incentivarão você a amolar o machado e aqueles que dirão que é pura perda de tempo. Cabe a você decidir o que fazer.

Amolar o machado é o tempo do preparo. É o tempo da espera. É o tempo do plantio. E por que este tempo do preparo não é valorizado?

Porque temos urgência em estarmos sempre no amanhã, em algum lugar que talvez não chegue. E se ele chegar, esta urgência que tivemos no presente não terá tido serventia.

Amolar o machado significa olhar e entender o cenário no qual se está inserido. E mais: ver se é naquele cenário que você quer estar e se ele faz sentido para você.

Significa ausência de pressa quando a vida te pede calma e disciplina. Significa fazer o que é importante, e não aquilo que é urgente. Aquele Diretor sempre chegava atrasado porque estava sempre fazendo o que era urgente, e não o que era importante. Mas quem tinha coragem de dizer isto a ele?

Amolar o machado significa se recolher num mundo em que todos se mostram. Se você não aparece, tem alguma coisa de errado com você.

Estar em evidência. Quando estamos em evidência não há tempo para amolar o machado. Isto já deverá estar pronto. Quando a visita chega você começa a preparar o almoço ou você inicia bem antes de ela chegar? Pois é, há o tempo de amolar o machado e o tempo para usá-lo.

É preciso valorizar a ferramenta, valorizar este machado. Mas os arrogantes não sabem disto porque acreditam que parar para amolar uma ferramenta é coisa para os fracos.

O arrogante acredita que ele pode pagar alguém para amolar a sua ferramenta. “Quanto você quer para fazer isto para mim? ” Ou eles acreditam que não precisam disto.

Amolar o machado é essencial se soubermos aonde queremos chegar. É estar preparado para quando a oportunidade surgir. É recuar alguns passos mesmo quando, aparentemente, o outro estiver em evidência.

Precisamos nos reinventar e manter o que conquistamos. Isto somente é possível com ferramentas amoladas.

A pressa, a ansiedade, a necessidade de sempre estarmos ocupados, a necessidade de nos sentirmos necessários. Tudo isto se origina da ausência de amolar o machado, da ausência de ferramentas para a vida. Da ausência de se saber quem é.

Estar desocupado talvez seja essencial para nos ocuparmos do que realmente precisa: o silêncio, a ordem, a construção, a utilização das ferramentas certas.

Somos ansiosos porque todo mundo já terminou de almoçar e nós ainda estamos mastigando. E no auge da culpa, dizemos: “já estamos terminando”.

São aquelas empresas que vivem fazendo a reunião da reunião para tentarem resolver problemas insolúveis porque elas nunca param para amolar os seus machados.

Se você não parar para entender a sua ferramenta, de nada adiantará querer resolver o problema. Por isso muitas Empresas têm reuniões intermináveis sobre assuntos insolúveis porque os responsáveis não sabem amolar suas ferramentas.

E depois eles contratam uma Consultoria e delegam a solução do problema para eles. E esta mesma Consultoria, após receber os seus milhões, chegará com uma solução que a Empresa já poderia ter percebido e praticado há tempos. Coisas que acontecem com quem não amola os machados.  Mas possuem dinheiro para delegarem esta tarefa indelegável.

As pessoas que não amolam os seus machados vivem apagando incêndios porque não enxergam aonde o fogo começou. E por incrível que pareça, o fogo sempre começa no momento em que elas não quiseram amolar os seus machados ou os desprezaram. Ou estavam muito ocupadas em alguma reunião desnecessária, e, portanto, não sentiram o cheiro da fumaça vindo de pertinho, bem de pertinho.

São aquelas empresas míopes que lançam produtos sem se preocuparem, de verdade, com o real significado deles.

São aquelas empresas que, mesmo sabendo que há problemas, lançam o produto e dizem: “a gente conserta lá na frente”. Lançam apenas para satisfazer a sua necessidade de brilhar. Um brilho opaco, bem opaco. Mas eles não sabem disto porque não amolaram os seus machados.

Trabalhei numa Empresa que tinha muitos falsos Líderes que diziam: “esse negócio de cuidar de pessoas dá muito trabalho. Precisa, mesmo, dar feedback? Isto toma muito o meu tempo. ”

Comentários típicos dos despreparados, dos desajustados, dos incapazes. De quem não amola as suas ferramentas.

Amolar machados não dá visibilidade, mas dá sustentabilidade, algo que só quem amola os seus machados com frequência sabe do valor.

É aquele Trainee que mal se formou e já quer ser Gerente. Não discuto o conhecimento técnico. Isto é com cada um. Mas a atitude de buscar somente isto na vida contraria todos os preceitos do verdadeiro Líder, da verdadeira Liderança, que é servir e não ser servido. O verdadeiro Líder é escolhido pelo time e não o contrário.

Tenho um sobrinho de 06 anos. Chama-se Felipe. Outro dia ele me mostrou o feijão no potinho que havia plantado. Mas um segundo após me mostrá-lo, disse: “mas é chato, tia, demora muito para crescer. Tem que ficar esperando. Não acontece nada. É chato. ”

Ele ainda é muito pequeno para entender o tempo do preparo, o tempo de amolar o machado. Mas será um aprendizado essencial se ele não quiser se aborrecer ao ficar esperando o feijão crescer. Custo a acreditar que esta geração levou os mesmos nove meses para nascer.

Não sei como ainda não inventaram um aplicativo que apresse o nascimento. Porque o nascer de nove meses está ficando ultrapassado. Será peça de museu. A mãe dirá para o filho: “antigamente as pessoas nasciam após nove meses”. E o filho dirá: “sério? Nossa”.

Uma mãe disse: “não sei o que vou fazer com eles em casa, em férias. Preciso arrumar coisas para eles fazerem. ” Por que esta mãe não ensina a amolar os machados? Mas não sei se ensinaram para ela.

Resultados. Curto Prazo. Longo Prazo.

Amolar o machado não agrega valor no mundo fast. “Vendemos fácil o que não tem preço”, já disse o poeta.

O machado amolado te ajudará a construir pontes, a quebrar muros, a encurtar distâncias, a pular abismos, a desbravar novas terras. A encontrar abrigos no momento das tempestades.

Achar que é perda de tempo amolar o machado é criar um rótulo de arrogante para si mesmo. Achar que passará pela vida sem paradas é viver iludido, é apenas passar pela vida, mas não é vivê-la. Quando nos curvamos para amolar o nosso machado, a dignidade cresce dentro de nós, e é ela quem nos permitirá nos levantar após as quedas.

É preciso repensar este modelo construído por quem não amola seus machados. É imperativo fazê-lo se quisermos construir algo sustentável para nossas vidas.

E quando a vida te cobrar o machado amolado, espero que você não o tenha esquecido na loja de amolar, que um dia você levou. E quando se lembrou, ao ir buscá-lo, descobriu que o dono havia vendido a ferramenta para cobrir os custos.

Deixo aqui uma frase de Philip Dormer Stanhope, escritor inglês do século XVII, que diz:  “Quem tem pressa demonstra que aquilo que está a fazer é demasiado grande para si. ”

Acho que Philip disse isto justamente no momento em que amolava o seu machado. Sábio ele.

Que possamos amolar os nossos machados, sem pressa, para que sejamos dignos da nossa obra. E para que esta mesma obra não ultrapasse o nosso tamanho. Caso isto acontecer, perderemos o direito sobre ela.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Jogar sem a bola

Conheço pouco sobre futebol. Sou apenas uma torcedora. Mas gosto de observar comportamentos e prestar atenção no que não está sendo dito.

O futebol mostra bem o comportamento humano, e explica o nosso Estar e Ser no mundo. Ele é um excelente lugar para nos apontar o abismo que nos separa do que queremos ser e do que, verdadeiramente, somos.

Meu pai sempre diz que se você quiser conhecer bem uma pessoa, dê a ela dinheiro e poder. E o mundo do futebol (não somente ele) é um celeiro para provar isto.

O lado bom de conhecer pouco sobre um assunto, é que, justamente por isto, prestamos mais atenção nele do que talvez fizesse uma pessoa experiente. Isto se deve à insegurança que temos em função deste desconhecimento. Temos medo de errar. Prestamos, então, mais atenção. E isto nos faz enxergar coisas que os mais entendidos talvez não vejam.

Em contrapartida, quando conhecemos profundamente um assunto, exatamente porque o dominamos, alguns detalhes nos escapam. Contraditório. Mas é assim.

Assumindo o pouco conhecimento que tenho sobre futebol, observo com mais atenção os comportamentos, falas, gestos, posturas, entrelinhas, aquilo que querem falar, mas não podem, quem ganhou e quem perdeu, pessoas, vaidades e resultados.

Competir.

“Se quisermos ganhar o campeonato, vamos ter de mostrar que somos o melhor”, disse um atleta. Fiquei pensando nesta frase: “...vamos ter de...”.

Aprendi, na escola, que “ter que”, é fazer algo, porém sem a obrigação, sem aquele compromisso. É simplesmente fazer. Mas “ter de” é fazer algo de forma obrigatória, necessária, imprescindível. Lembrei-me daquela aula e do quanto ela é atual, do quanto aquele ensinamento que tive há anos é atemporal.  O “temos de” nos é exigido diariamente, o tempo todo. O “temos de” ser o melhor é um imperativo.

Não basta sermos. Temos de ser o melhor. Sermos, apenas, não é suficiente. É pouco. Frágil. Invisível. Indiferente. Ninguém quer Ser. Todo mundo tem de ser o melhor. Mas o que é “ter de ser o melhor”? Não temos esta resposta. Mas vivemos como se a tivéssemos.

Ganhar o campeonato é saudável. Mas deveria ser bom também apenas participar dele.  Participar é construir. É fazer parte. É estar. É Ser. Mas não é valorizado. O segundo lugar sempre é visto como fracasso. A medalha é mais valorizada do que o pertencer, do que o participar, do que o construir.

“Fulano precisa aprender a jogar também sem a bola.”, é outra coisa que se diz no futebol.  Pensei sobre este significado e as analogias com a nossa vida. Foram muitas.

Jogar com a bola, sabemos bem o que é: o que buscamos o tempo todo: o gol, a superação, a glória, o topo, o gritar do nosso nome, a realização, o reconhecimento.

Mas o que é saber jogar sem a bola?

Além de ser o desenvolvimento de outra habilidade tão importante quanto estar com a bola, é essencial para a vida saber jogar sem ela. Num cenário competitivo como o nosso, e também no futebol, o que se busca o tempo todo é estar com a bola. Mas nem sempre isto será possível. Por isto desenvolver a habilidade de saber jogar sem ela é tão importante.

A questão é que, apesar de cobrarem isto de nós (aprender a jogar sem a bola), isto não é valorizado. Somente quem faz o gol ganha as glórias.

Marcar o gol, efetivamente, somente é possível com a bola. Mas se não estivermos com ela, também poderemos marcar os nossos gols como dar um bom passe, defender a bola do adversário, driblá-lo, saber perder a bola, etc. Enfim, ajudar a construir aquele jogo.

Mas alguém valoriza quem sabe jogar sem a bola? Somos cobrados para aprendermos. Mas quando aprendemos a jogar sem bola somos cobrados para fazermos o gol.

Podemos fazer um belíssimo passe, dar a melhor assistência, mas sempre seremos os assistentes, os coadjuvantes. E os protagonistas? São aqueles que fazem os gols. Injusto? Também acho. Mas é assim. E quem ousar discordar, correrá um sério risco de ser visto como vítima, como aquele que “está criando problemas”.

Aquele discurso que nos contaram “o importante é participar” é falso, não funciona para a nossa sociedade. Este discurso só funciona para sociedades mais justas, aquelas nas quais quem ajuda a construir é tão importante quanto quem cortou a fita no dia da inauguração.

Na época em que estavam construindo os estádios para a Copa, um jornalista perguntou para um pedreiro como ele estava se sentindo ao construir aquele estádio. E ele, sabiamente, disse: “estou feliz por saber que, mesmo anônimo, faço parte disto. Não vou poder entrar aqui, porque não tenho condições, mas pessoas se sentarão nestas cadeiras que, da minha casa, saberei que eu ajudei a montar. ”

Um pedreiro disse isto. E ainda dizem que Universidades fazem de nós pessoas melhores. Tenho minhas dúvidas.

Este pedreiro certamente sabe jogar sem a bola e deu um belo passe. Ele não está no palco, mas não está se importando com isto. Sabe passar a bola para que o outro brilhe.

Ele deveria ser o convidado de honra daquele estádio. Mas a nossa sociedade somente valoriza quem está com a bola, quem faz o gol. E ele não estava com a bola nos pés, mas sabia jogar sem ela. Grandes lições são aprendidas com pessoas que não valorizamos.

Muitas vezes aquele que sabe jogar sem a bola joga mais do que quem está com a bola. Aquele passe perfeito, mas o atacante chutou para fora. Mas quem enxerga o passe perfeito?

Muitas vezes aquele que está sem o microfone fala melhor do que aquele que está com o microfone. Às vezes o que não está falando tem mais a dizer do que quem está falando. Mas quem observa isto? Somente saberá quem aprendeu, logo cedo, a jogar sem a bola.

Estar no palco é saudável. Quem não quer aplausos? Ele simboliza o caminho certo. Mas querer sempre estar lá é doentio. É fuga. Enquanto estamos no palco não temos tempo de olharmos por detrás das nossas cortinas e enxergarmos os nossos bastidores. É fundamental conhecermos os nossos bastidores para que possamos brilhar no palco. E aquele pedreiro conhecia muito bem os bastidores dele.

Estar nos bastidores, saber jogar sem a bola é aceitar o convite da vida à reclusão, ao silêncio, ao anonimato, ao ouvir a sua própria voz mesmo quando não se tem nada a dizer. Mesmo quando ninguém quiser ouvir a sua opinião.

É abrir mão de ter razão, é deixar o outro ganhar, e aceitar que perdeu, muitas vezes. Mas estar no palco também é aceitar que perdeu, porque não existem ganhadores nem perdedores. O que existe são vivenciadores.

Acho que esta palavra não existe, mas ela traduz o que digo: precisamos aprender a viver as nossas histórias, com ou sem bola. Sermos vivenciadores de nossa própria experiência.

Começamos a perder no momento que achamos que ganhamos.

Ganha-se quando se perde; perde-se quando se ganha. Esta é a vida. Este é o jogo. Ora nos bastidores, ora no palco, ora entre um e outro. Ora fechando a cortina, ora abrindo. Ora ninguém na plateia para te ver. Ora com pessoas te vaiando, ora aplaudindo, ora indiferentes.

Jogar sem a bola é isto. É um incessante trabalhar de vaidade. É um constante aprender a passar a bola, mesmo que não se queira, porém é preciso. O outro está bem mais à frente. Ele tem a visão do jogo. Passe a bola para ele.

Podemos tentar fazer o gol sozinhos? Podemos. Mas só se estivermos bem colocados e valer corrermos este risco. Caso contrário, comprometeremos o time por causa da nossa vaidade. Vaidade que só quem não aprendeu a jogar sem bola, tem.

Jogar sem a bola é deixar de esperar reconhecimento porque ele pode não chegar.  E o que você fará nesta hora? Se você souber jogar sem a bola, saberá esta resposta no momento em que a vida te perguntar.

É preciso aprender aquela lição do pedreiro: a não estar em evidência e ficar bem com isto.

Às vezes, a bola nem dará o gostinho de ficar um pouco conosco. Ela apenas passará pelos nossos pés, mas vamos ter de passá-la por necessidade, por obrigação. Que difícil. Também queremos marcar. Mas será preciso aprender a jogar sem a bola para fazermos o gol. Esta é a exigência da vida.

Aprender a jogar sem a bola é não esperar aplausos. Porque eles não virão, muitas vezes. Caso eles venham, será um curto aplauso porque os aplausos principais serão para quem está com a bola. Este é o nosso mundo. Se é justo? Eu acho que não. Mas, enquanto isto não muda, bom será aprender a jogarmos sem a bola num mundo em que não há bolas para todos.

É preciso conquistá-las, o que significa passar um tempo nos bastidores vendo como se constrói uma bola, como se chuta, como se faz, como se lança. E os bastidores também servirão para você descobrir que o seu lugar é lá mesmo, que não quer estar no palco.

Jogar sem a bola é muitas vezes ter de dar satisfações sobre algo que você não queria: “Por que você não passou a bola? ”, perguntarão para você.

É sujeitar-se a não ser reconhecido, a cair no esquecimento.

É escrever uma música que fará sucesso em outra voz, que não a sua.

É sujeitar-se a receber um tapinha nas costas: “Parabéns, você fez um belo trabalho. ” Mas a promoção não veio para você. Sabe por quê? Porque o trabalho que o outro fez, embora infinitamente menos importante, tem mais visibilidade, e, portanto, aparecerá mais que o seu.  Então quem vai para o palco será o outro. E você? Você deverá aplaudi-lo senão quiser passar por invejoso e sem “espírito de equipe”.

Deixar que o outro brilhe é um difícil exercício de grandeza de espírito, de humildade.

Aprender a jogar sem a bola é assumir o seu lugar nos bastidores da vida, enquanto o outro brilha no palco. Você já pensou que o seu talento seja o de fazer o outro brilhar? E mesmo você insistindo em subir no palco a vida insistirá em te recolocar nos bastidores?

Aceitar que somos pequenos nos fará nos sentir muito confortáveis nos bastidores. Lá é um lugar pequeno.

A nossa trajetória diz muito sobre nós e sobre qual lugar ocuparemos na vida. Seja no palco, com a bola na mão; seja nos bastidores, aprendendo a viver sem a bola, aprendendo a passar a bola para o outro brilhar.

E que a gente não pense que viver no palco, de posse da bola, a nossa vida será simples: mesmo quando estivermos lá, ouviremos alguém dizer: “os seus cinco minutos já acabaram. ”

Vivemos numa efemeridade sem precedentes. “Quem é o próximo, por favor? ” Aí você dirá: mas eu ainda não acabei. E dirão a você: “desculpe, mas o seu tempo se esgotou. ” E neste momento, se você construiu um sólido bastidor, você terá um lugar bem seguro para se recompor e certamente ele te devolverá o que o palco te tirou.

O bastidor te esconde, mas te oferece coisas sustentáveis como a humildade. O palco te expõe, mas te oferece teias que talvez você nem perceba que caiu. A vaidade é um exemplo clássico: “Imagina, não precisava. ” “Imagina, eu nem me preparei tanto assim? ” A vaidade traz uma pseudonormalidade para coisas que não deveríamos aceitar como normais.

Os vaidosos dizem que o palco é para poucos. Na verdade, os bastidores são para poucos. Bastidores são para pessoas que não precisam de aplausos.

O bastidor pode revelar talentos escondidos; o palco pode apagar a luz de repente. O palco é o lugar típico para o ego. Tem uma frase que diz: “Não deixe o seu ego acompanhar a sua ascensão. O perigo é se você perdê-la, para onde irá o seu ego? ”

Como saber o caminho? Não há como sabê-lo.

Há uma belíssima frase de Clarice Lispector, que trago para encerrar o texto, mas não a reflexão, que diz:

“Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. ”

Que cada um de nós possa viver, com sabedoria, nos palcos e nos bastidores de suas vidas.