Para o texto de hoje, parto de uma reflexão de Clarice Lispector que nos diz:
“Que ninguém se engane: só se
consegue a simplicidade através de muito trabalho.”
Clarice escreve de uma forma como
se a simplicidade fosse a pauta. Ela fala de um jeito que dá a entender que
queremos e buscamos a simplicidade. Mas que, no entanto, somente será atingida
após muito trabalho. Mas, de verdade, buscamos a simplicidade?
Somos contraditórios: quando temos folgas, dizemos que estamos cansados de não fazermos nada. Brigamos com o tempo, fazemos dele a nossa desocupação, e buscamos formas que julgamos lícitas para matá-lo. Quando não temos folgas, e os dias parecem reduzidos para tantos afazeres, invejamos aquele que caminha pela ciclovia vazia, em plena terça-feira. Remarcamos várias vezes aquele almoço devido à demanda urgente, mas quando o almoço veste ares de realidade, enviamos uma mensagem, desmarcamos o almoço e alegamos um motivo que mente, mas que somente nós sabemos. Dizemos “a gente se vê”, “a gente vai marcar”, “a gente precisa se ver mais”, “te ligo” como mera força de expressão. Falas vazias que não se preenchem porque não nos compromissamos com o preenchimento delas.
Por que? Porque complicamos tudo.
Dizer “te ligo” e não ligar, faz o outro esperar. E nesta espera, ele sofre.
Ele espera. Ele chora. Ele sente raiva. Ele cria fantasmas. Dizer que “está
cansado de não fazer nada” cria uma realidade de inutilidade cujo protagonista
somos nós. E nesta realidade, duelamos conosco. Andamos de lá pra cá. Olhamos o
celular várias vezes. Nenhuma mensagem nova. E as novas são velhas. Observamos
a vida alheia, muitas vezes publicada e não vivida, e neste complexo de
inutilidade consumimos um consumo inconsumível. Damos visibilidade a muitas
coisas inúteis. Por quê? Porque complicamos tudo.
Muitos choram porque não podem
visitar seus familiares, devido à pandemia. Mas e quando podiam? Iam? Buscamos
o resumo do livro porque lê-lo dá trabalho. No entanto, os resumos nos privam
da experiência. E somente ela é a garantia da vivência. É preciso resgatar a
importância e o lugar da experiência. Ela nos ajudará na busca pela
simplicidade e a saída de uma vida de improvisos, achismos, esnobismos,
imobilismo.
Complicamos tudo. Falamos,
falamos, falamos. O silêncio nos constrange. E ao preenchê-lo, abrimos mão de
lermos as entrelinhas que são a alma da vida.
Clarice tem razão. Como sempre.
Uma autora atemporal. Ela nos espia com seu olhar assertivo e nos diz: “Que
ninguém se engane: só se consegue a simplicidade através de muito trabalho.”
Apesar da contradição como
característica principal de quem somos, Clarice parece acertar quando dá a
entender que queremos esta simplicidade e que, somente por meio do trabalho,
ela será atingida. Não é razoável achar que queremos complicação ao invés da
simplificação. O problema é que não estamos todos conscientes deste nosso
querer. Se assim estivéssemos, agiríamos de outra maneira. Queremos uma vida mais
simples e sem tantas visitas inesperadas. A questão é que estamos à cata de
facilidades, técnicas milagrosas, autoajuda, salvadores, paternalismos, truques
infalíveis para a próxima dieta, entretenimentos, coisas que nos dão a certeza
de uma vida confusa, complicada, cheia de sobressaltos.
Simplificar não significa ser
simplista. Talvez seja por isso que alguns não gostem muito desta tal
simplicidade. Soa piegas. Ser simples é como se estivéssemos privados de
sofisticação, de estatus, de porte, de crachá.
Simplificar tira etapas. Ficamos
visíveis. Complicar inclui etapas desnecessárias. Ajuda a dificultar que o
outro nos encontre. Assim, ele precisará falar com o secretário e marcar hora
conosco. Isso dá uma falsa imagem de pessoa importante com inúmeras ocupações
inúteis.
Quem cultiva a simplicidade
sempre tem tempo. Trabalha para isso. Quem cultiva a complicação nunca tem
tempo porque não trabalha para isso.
O simples, infelizmente, na nossa
sociedade, não dá ibope. É chique falar difícil, assim ninguém nos entende e
passamos por pessoas cultas. É muito mais chique dizer que saboreou, após o
almoço, um creme anglaise do que um creme simples à base de leite,
açúcar e ovos. Mas é a mesma coisa! Ou um doce com callets, que nada
mais são do que gotas de chocolate. Mas o complicado dá estatus de um
chique desnecessário. Você conhece alguém que seja role model, que nada
mais é do que alguém que serve de referência para determinado assunto? Por que
não dizemos: “você tem uma referência neste assunto para me indicar?” Por que
insistimos em role model? Descomplicar a vida dá trabalho, realmente.
Uma vida simples não significa
uma vida sem problemas, apenas significa uma vida com mais facilidade para
enxergá-los e lucidez para buscar soluções. Apenas isso. Mas como estamos
distantes do trabalho necessário referido por Clarice, ainda não desfrutamos da
companhia da simplicidade.
Trabalhar é aparar
arestas. É dizer que vai ligar e ligar. É dizer que vai marcar e marcar. É
dizer que está chegando e chegar. É vencer o hábito nocivo do rápido
ineficiente, do trocadilho barato, da piada pronta, do cacófato, do
descompromisso. É romper com o sujo. É “examinar tudo e reter, apenas, o que
for bom”, como disse Paulo de Tarso. É duelar com desconhecidos solitários e
saber que não há guerras sem perdas. Trabalhar cansa. Dói. Descortina. Exige.
Obriga-nos a jejuar a preguiça, o atalho, o adiamento e a procrastinação, o
jejum verdadeiro. E não o jejum hipócrita que perdoa os pecados após palavras
decoradas. Ser simples dá trabalho. Como abrir mão da vaidade de assumir que
precisamos aparar arestas? A simplicidade escancara os nossos espaços aleatórios
e marginalizados.
Trabalhar nos desmente. O que
fazemos para nos desmentir? Trabalhar é ler quem somos. Ler: “um verbo insistente”,
disse o escritor.
Somos atravessados pelos
ensinamentos da vida. Não adianta medirmos forças com ela porque perderemos.
Uma luta desigual. Mas para não sermos vencidos, somente aprendendo a linguagem
dela: simplicidade, que é uma verdadeira revolução que se dá no nosso
cotidiano. Um cotidiano que precisa ser refeito do simples, de infância, de
conversas, de diálogos e de convivência conosco, porque parece que há tempos
não nos encontramos.
Encontrarmo-nos com a vida é
quase uma certa erudição. Sem solenidades por parte dela. Desconfio que ela
espera o mesmo de nós.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação de um gênio da História, Leonardo da Vinci,
que dizia:
“a simplicidade é o último
grau de sofisticação.”
Enquanto o mundo complica e cria
lendas para explicar o mistério de Monalisa, Leonardo da Vinci, na verdade,
cria a Monalisa a partir de um reaproveitamento de telas. A habilidade dele com
as tintas e com as técnicas resultou numa das maiores obras da nossa História.
Um simples reaproveitamento que resultou numa obra-prima, tamanha a sua
perfeição. Um retrato inacabado, de uma senhora de época, não entregue. Um
segundo retrato, na mesma tela, de outra senhora, inacabado, não entregue. O
terceiro retrato, na mesma tela, reaproveitado. Concluído. Resultado? Monalisa.
Enquanto uns complicam. Outros
trabalham. E por isso, alcançam a simplicidade. Leonardo Da Vinci foi um gênio
inalcançável a cada um de nós. Não nos é possível alcançá-lo. No entanto,
aprender com a simplicidade dele, isso nos é possível.
Que nossas telas inacabadas, incompletas e esquecidas possam ser resgatadas e concluídas. Não faremos Monalisas, certamente, mas nossas obras, se forem construídas à base da simplicidade, terá valido todo o esforço.