A nossa história nos levou e nos
trouxe para o lugar no qual estamos. Num breve
e necessário passeio dentro de nós, porque
sempre estamos sem tempo para isso, ficamos assistindo ao que acontece. Por
ser este passeio dentro da gente, a inércia, a passividade e a imobilidade
tomam conta e, assim, nos tornamos invisíveis. Quando conhecemos, de forma
clara, o nosso próprio conteúdo, tornamo-nos. E quando passamos a utilizar este
nosso conteúdo, ele passa a ter significado e a firmar compromissos com a vida.
No entanto, toda esta trajetória precisa de trabalho, dedicação, renúncia e
esforço.
Observar o que vai em nós, de um lugar privilegiado (de dentro de nós
mesmos), num mundo cujo estágio e incompletude ajudamos a construir. Este é o
mínimo que devemos para a vida.
De qualquer parte de dentro de nós,
a distância e a visão serão as mesmas. Não adianta buscarmos o melhor lugar:
não há distâncias e uma ‘melhor visão’ para aquele que iniciou o traçar de
rotas. A escolha por criarmos, em nós, um mundo-organizado denunciará nossa
insensatez e a nossa desfaçatez. Somos denunciantes de nós mesmos. Não
precisamos do outro para nos denunciar.
Há diversos encurtadores de
caminhos: os bons, como um livro, um conselho, um braço, um apoio, um sorriso,
um perdão, e os maus, como o braço encolhido, a difamação, o passar na frente
do outro por diversos motivos. Estes são apenas alguns. Mas há vários.
Encurtadores de caminhos sempre encurtam os nossos caminhos: a questão é saber
escolher o encurtador que queremos. E dependendo da nossa escolha, o que
viveremos será posto a nós.
No domingo, dia 12 de agosto, a
Bienal do Livro encerrou as suas atividades. Foram 663 mil visitantes. Muitos
livros vendidos. Muitas editoras satisfeitas com as vendas. Como diz o
Professor e Historiador Leandro Karnal, “há esperança quando ainda encontramos
livrarias cheias”. E a Bienal foi um exemplo disto. No entanto, esta marca de
quase 700 mil visitantes não significa que somos leitores, que lemos ou que
permitimos ser impactados pelos livros.
Deixar-se ser impactado por um
livro significa, entre tantas coisas, impactar a nossa própria vida, nosso
próprio comportamento. Nossas atitudes refletem, ou não, o acesso às
informações e ao conhecimento que tivemos na vida. Ler um livro significa uma
possibilidade de nos tornarmos melhores.
Lotamos a Bienal: mas o que estávamos fazendo, de verdade, lá? Muitos
para, de fato, lerem. Outros para aproveitarem esta oportunidade de contato com
a cultura. Outros para apenas falarem aos outros que foram e passarem uma
imagem de cultos. E outros para apenas passearem, sem compromisso com o livro,
em si.
O Instituto Pro-Livro, em
pesquisa realizada em 2017 com 5 mil pessoas, trouxe informações relevantes
para a nossa reflexão. Apenas algumas:
- as pessoas que se consideram
leitoras frequentes leram quatro livros nos últimos três meses. Porém, apenas
dois livros do começo ao fim;
- 43% dos entrevistados disseram
que não leram por falta de tempo; 28% por não gostarem de ler, e 13% por não
possuírem paciência para a leitura (!);
E em outra pesquisa, agora pelo
Banco Mundial, diz que o Brasil demorará 260 anos para atingir os níveis
educacionais de países desenvolvidos em leitura. De verdade, uma marca inatingível.
E 30% dos brasileiros nunca
compraram um livro, na vida. Triste realidade. Uma realidade que criamos e que
nos pertence.
Estes números nos distanciam, e
muito, do ideal. Por isso ainda nos demoraremos em atitudes que nos atrasam. Um
atraso alienante e pernicioso que nos dificulta enxergarmos um dos nossos
grandes encurtadores de vida: o livro. Isto nos explica muito.
Ao mesmo tempo que a pesquisa nos
mostra a nossa realidade, imensas filas são formadas do lado de fora, próximas
aos portões de acesso à Bienal. Uma confusão no trânsito, desrespeito às regras,
tráfego pelo acostamento, ultrapassagem do sinal. Mas um comportamento, em especial, me chamou a atenção: muitos
carros começaram a fazer uma conversão proibida. Assim, ‘furaram’ a imensa fila
que havia se formado para acesso aos portões. Ao invés de estes carros irem até
o fim da fila que se formava, como fizeram a conversão aonde não podia, ‘economizaram’
um enorme tempo e passaram na frente de muitos carros. Ironias à parte,
obviamente não havia fiscalização. E ironias bem à parte, eles estavam indo
para uma festa literária, para um local aonde se vende e conquista
conhecimento.
Somos contraditórios por excelência. A caminho de uma festa com livros,
acabamos por ser barrados na porta devido ao nosso analfabetismo moral.
Após ver aquela imensa fila de
veículos que burlava o trânsito, o fato de
não sermos leitores começa a fazer sentido. Ler não é apenas abrir um livro
e decodificar e decifrar palavras. É, acima de tudo, ser cúmplice de um
conhecimento que nos fará maiores. É assumir um compromisso com a escalada de
degraus impostos pela vida. O que burla o sistema, desconhece este compromisso.
A cidadania sofre de ausência. Nossas contradições nos explicam e
justificam a nossa posição. Se estamos em degraus inferiores é porque nos
colocamos lá.
Monteiro Lobato dizia que “um
País se faz com homens e livros”. Uma provocação incômoda. E vendo aquela
imensa ausência de ética, me lembrei dele. Realmente um País se faz com homens e
livros. Os livros estavam lá, na Bienal, a nossa espera. Mas e os homens? Aonde
estão? Certamente Monteiro Lobato se referia a outros homens, e não àquele
homem cuja consciência, há tempos, se retirou e dorme.
Uma leitura é sempre um transitar
por ruas cuja trajetória nos atinge. É permitir ouvir histórias que, sozinhos,
não seríamos capazes de construir. Ler é reconhecer-se num mundo que deveria
ser melhor construído por nós. Um convite para ceder lugar para o conhecer. A
ignorância, envergonhada, retira-se.
O livro é uma possibilidade. A
ignorância é um fato. É preciso trabalho para ler um livro e se construir por
meio dele. A ignorância nos é dada, gratuitamente, sem trabalho. Mas não
enxergamos isto porque temos dificuldades para dobrarmos as nossas esquinas e
passarmos a habitar em nós.
Somos vítimas das nossas próprias
manobras. É preciso dispor de tempo para nos tornarmos aptos a habitarmos em
nós mesmos. Nossas velhas e boas questões que vão nas nossas margens e as que
vão no nosso centro. Como nos carimbamos?
A medida que as filas aumentavam,
agravadas pelo burlar das regras, um esboço do que vai em nós e do que
justifica as nossas distâncias se formava. Cenas tristes, mas que poucos viam.
O desrespeito nos emudece. Por isso, o mal avança.
Ler é transitar por mundos ausentes
e presentes. Mas como fazer parte desta obra se não aprendemos a transitar
dentro de nós mesmos? Como fazer uma reflexão, uma mudança real, até 120
caracteres? Mais que isso é cansativo,
não temos tempo. Por isso, talvez,
a conversão proibida seja tão convidativa.
Ler é uma prática e não um
hábito. Hábito, um ato mecânico; prática, algo construído que nos exigiu
passos.
A conversão proibida nos convida
a reconhecer do que somos feitos, e a conhecer quais são os nossos recortes que
passam, obrigatoriamente, pela educação como um instrumento de formação de
cidadãos plenos. Ninguém aprende o que não tem significado. Quando interajo
ajudo a construir. É preciso, portanto, construir o valor e o significado de
não burlarmos as conversões proibidas. Uma pequena simbologia do tanto que
ainda nos falta caminhar.
A leitura nos torna capazes de
identificar nossas fraudes. Somos seres inacabados. Ler um livro é uma das
formas de nos contornar, de nos dar um desfecho digno e honesto. A leitura nos
faz melhores. Pelo menos, esta sempre foi a proposta. Inclusive da Bienal.
Quando fazemos as conversões
proibidas, nos revelamos como os incompatíveis do caminho. Com este tipo de
atitude, damos as mãos para as traças que vão em nós. E são muitas. Elas costumam
se acomodar em lugares parados que há
tempos não são visitados. Como não temos paciência para o desconhecido, no
caso, nós mesmos, as traças vão se avolumando
até o dia que tomam conta do espaço e já não o reconheceremos mais, e nem a nós
mesmos.
Precisamos estudar as nossas
imperfeições se quisermos combatê-las. Quem sabe, assim, passaremos a enxergar
as placas de conversões proibidas? Vamos nos acumulando e perdemos a chance de nos
visitar com frequência e assiduidade.
Acredito que passamos por tempos
nos quais estamos vivendo, porém, não existindo. Não estamos sabendo existir.
Para sabê-lo, é preciso enxergar a placa de conversão proibida. E, sem reclamar,
pegar o final da fila e fazer toda a caminhada, passo a passo. É preciso saber
que atalhos, com raríssimas exceções, atrasam os passos.
Atalhos são, muitas vezes, armadilhas à caça dos rebeldes e dos
vaidosos que, orgulhosos, nem percebem que acabam de alongar, ainda mais, a sua
lista de ajustes necessários a realizar. Tarefa intransferível e inadiável. Sem
isso, nos tornamos reféns de nós mesmos.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação do Pequeno Príncipe, que diz:
“o deserto é belo porque, em
algum lugar, ele esconde uma fonte”.
Reconhecer o deserto que vai em
nós é uma arte, uma forte lição de humildade e de resignação. Não há como
brigar com ele. Certamente não venceremos esta batalha. A melhor forma de
lidarmos com os nossos desertos é irmos em busca de nossas fontes. Porque elas
existem. E estão a nossa espera. Para encontrá-las, será necessário caminhar por
toda a fila. Não há outro caminho, mesmo
que estejamos indo somente para uma Bienal de Livros.
Apenas reconhecendo os nossos
desertos e ouvindo o que eles têm a nos dizer, nossas fontes se tornarão
visíveis para nós. E vendo as nossas fontes, caminhar por extensas filas, desde
o início delas, não será mais problema para nós. Talvez neste dia, as filas não
farão mais parte da nossa realidade porque teremos, finalmente, entendido, que elas
tentavam, a todo momento, nos encaminhar para as fontes, nossos únicos e
verdadeiros caminhos.