domingo, 29 de novembro de 2020

O quintal varrido

Para este texto, parto de uma reflexão, cujo autor desconheço, que diz: “veja se você não está encostando a sua escada na parede errada.”

Tenho dúvidas se estamos enxergando as escadas, que dirá as paredes, que somente podem ser percebidas se os nossos olhares abrirem mão de serem vagos e alheios.

Escadas são o ferramental da vida: o nosso prego, martelo, enxada. A forma como afetamos a vida, como construímos e destruímos, tratamos e destratamos. Há pessoas que nascem com escadas prontas, apenas precisam aprender a usá-las. No entanto, há pessoas cuja estrada se faz longa, e princípios de construção precisam ser aprendidos. Porque esta pessoa irá, antes, construir a escada para, somente depois, e se der tempo, usá-la. Para esta segunda pessoa (porque há só dois tipos de pessoas no mundo: as que nascem com escadas prontas e as que precisam construí-las), a vida será mais dura e mais exigente. Ela não nasceu com todos os pré-requisitos, e o currículo está no final de uma fila grande. Mas também para a primeira pessoa, talvez a vida seja, num primeiro momento, mais fácil e menos exigente. Afinal, o currículo estava quase pronto. Contudo, ter escadas prontas não será sinônimo de saber usá-las. E não sabendo usá-las, o apodrecimento será certo, ainda mais se o material for de madeira.

Paredes são as nossas fronteiras, os nossos vizinhos, o nosso mundo em branco, o nosso lembrete de que subir se faz necessário, mas que descer também é uma realidade. Mais que realidade: probabilidade. Paredes são transportes ora públicos, ora privados. São caminhos a serem percorridos por alguém que somos nós, ainda que esta imagem de quem somos nós, se vai longe, quase inalcançável. É preciso escalar, subir.

A subida nos lembra de que é constante o exercício. De que a dinâmica da vida é viva. O bom de o cume estar longe é que diminuem as chances de acharmos que merecemos apenas sombras e frescas. O sol ainda está alto.

É preciso que as linhas da nossa identidade não fiquem em branco, como disse José Saramago. Para justificá-las e preenchê-las, saber aonde encostamos as nossas escadas será primordial.

Para onde estamos indo? O que buscamos? Qual o sentido disso? Por que fazemos o que fazemos? Não são perguntas genéricas. São perguntas feitas a nós, pela vida, cujas respostas ainda buscamos. Estarmos com as nossas escadas encostadas nas paredes certas é uma das formas de localizarmos estas respostas. Nestas paredes certas, o eco será a nossa própria voz, as pichações serão as nossas e a tinta gasta deverá ser refeita por nós. Por quem mais?

Buscamos sorrisos em paredes opostas às nossas. Buscamos o nosso tamanho encostados em paredes que nos diminuem. Somos um marketing de graça para uma empresa que nos dá uma casquinha de sorvete de graça às custas de duas horas nossas, na fila. Somos respostas prontas de perguntas que não sabemos fazer. Aliás, não fazemos perguntas porque elas cansam e nos gastam. E se estamos gastos, como iremos representar numa sociedade que, por acaso, é a nossa? Sorrimos sorrisos esquecidos nos cantos da boca porque assim fomos educados. Representamos. Fingimos que gostamos. Fingem que acreditam no nosso gostar. E de fingimento em fingimento daqui a pouco nos esquecemos sobre o que falávamos.

Fazemos propaganda sobre coisas que nos devolvem ao lugar que, duramente, conseguimos sair. Paredes tristes criam necessidades que agora não vivemos sem. Nossas escadas já viram estas necessidades vendidas que, alegremente, compramos e ainda exibimos os tickets pagos. As televisões, os smartphones e os eletrônicos são os grandes campeões da Black Friday. Quem vive sem eles? Queremos escadas melhores? Por favor, sem críticas. Apenas uma sugestão de estabelecermos relações mais lúcidas com eles. Televisores vendem entretenimento barato, mas também saudável. Vendem sensacionalismos, mas também documentários. Vendem um marketing cruel. Vendem ilusões, mas também aprendizados e conquistas. Qual buscamos? Celulares salvam, matam, revelam, invadem, ensinam, facilitam, prendem. O que buscamos? Quem está com o controle remoto em mãos? Quem clica no link? Quem doa o tempo a troco de falsas conquistas?

“Veja se você não está encostando a sua escada na parede errada.” Seja você a primeira pessoa ou a segunda, é preciso franqueza com os nossos passados, com aquilo que nos construiu. Não são mais lugares vivos para se viver, mas como baús ambulantes que nos acordam de tempos em tempos nos lembrando do nosso tamanho e da nossa responsabilidade. Somos pedreiros, pintores, engenheiros e arquitetos de nossas escadas. Aonde elas estão encostadas? Não adianta impor os nossos intervalos, brechas e bastidores aos outros. No final, é com a gente.

Estratégia e disciplina são duas grandes aliadas daquele que vai lúcido na própria escada, daquele que conhece com propriedade a parede sobre a qual encosta o seu ferramental. Pessoas lúcidas costumam ser mais comedidas e econômicas com o sorriso porque sabem que o trabalho é grande. Como podem sorrir sem medidas se a maturidade ainda vai longe? Um sorriso restrito, mas sincero, já é o suficiente.

Não posso deixar de mencionar as múltiplas escadas que influenciam na nossa. Perceptíveis ou não como se fossem verdadeiros roteiros. Às vezes, nos deixamos apedrejar e apedrejamos por pura cópia do que vivemos e somos vividos. Retirar pedras exige muita destreza de nossas mãos que ainda seguem trêmulas. Ter consciência sobre quais são as nossas escadas, quais têm sido as paredes sobre as quais encostamos os nossos aparatos, independentemente, de qual pessoa somos, se a primeira ou a segunda, é um exercício permanente, vitalício. É preciso silenciar vozes que se confundem com as nossas. É preciso colocar luvas e mudar a nossa escada de lugar, se assim for preciso. Enxergarão a nós e a nossa escada mudando de parede. Darão risada de nós por puro gosto de nos esmagarem. Apontarão dedos. Seremos excluídos. Ridicularizados, será? Teremos de dar satisfações, muitas vezes, nos tribunais de pessoas que só levam recados. Mas este é o preço daquele que ousa questionar se a escada dele está encostada sobre a parede certa. Antes ser ridicularizado, mesmo que por aqueles que encontram, apenas, no caminho linear o sentido da vida, do que chegar, hipocritamente, ao último andar da nossa escada e enxergar parcas moedas.

A vida não é linear. Aquele que busca somente a linearidade e a convergência chegará ao último degrau da escada e nada encontrará. Paredes lisas, sem rachaduras, imperfeições, irregularidades, desnivelamentos não é uma parede merecedora da nossa atenção: é apenas uma venda casada imposta (e compramos) de comércio de falsificações com contas hipocritamente dobradas para que não vejamos o valor.

Escadas e paredes: como estão as nossas? Se chegamos com elas prontas ou não, o caminho somente reconhecerá os nossos passos. Há rastreamento e câmeras por todos os lados. De nada adiantará dizer que temos parentescos com aqueles que já vão nos últimos degraus das escadas certas nas paredes certas enxergando as paisagens que vão muito além de periferias.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um verso do poema Das Utopias, de Mario Quintana, que diz:

“Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!”

Querer pisar sobre os degraus da escada certa, na parede certa pode estar, momentaneamente, inatingível. Mas isto não será motivo para não buscar estes degraus, como nos ensinou o mestre Quintana. Recomeçar é a regra da vida. Afinal, todos os dias o sol se levanta e os pássaros retomam os seus afazeres. Que a gente não obedeça ao senso comum do risível, do visível e do geral, daquele que acha que semeia. Que a alma dos grandes nos povoe e que não tenhamos orgulho de mostrar a nossa facilidade de adaptação.

O pomar nos espera para o plantio. O quintal já foi varrido. As frutas amadurecem. A escada existe. A parede persiste. Os degraus estão firmes. Os nossos pés cabem. A mudança de parede existe. Se precisar mudar, será possível. Pagaremos contas altas por mudarmos de paredes. Mas os parcelamentos em doze vezes, sem ou com juros, existem para darem conta disso, mesmo.

domingo, 15 de novembro de 2020

Competência incompetente

Para este texto, parto de uma reflexão da escritora brasileira Nélida Piñón que diz: “se Machado de Assis realmente existiu, não temos desculpas para sermos incompetentes.”

Estamos sendo incompetentes, então? Se a incompetência não fizesse parte do nosso roteiro, a escritora não teria feito esta referência. Uma característica presente, e de tão presente, tem-se tornado uma marca quase pessoal, uma extensão nossa.

No dicionário, a palavra competência significa autoridade, domínio, alçada sobre uma coisa e/ou assunto. E a palavra incompetência é o contrário disto: falta de conhecimento, de habilidade, ignorância. Como sabemos que conhecemos muitas coisas e desconhecemos tantas outras, podemos dizer, então, que somos competentes e incompetentes, a depender do assunto em questão. Incompetentes somos todos. Competentes somos todos. Mas será que a provocação de Nélida Piñón se referia ao sentido literal da palavra?

A ironia é um convite, mesmo sendo de difícil digestão. Ela cria impasses, em nós, porque despertam as nossas dores e os nossos estranhos que moram dentro e fora de cada um de nós.

Não. Ela não se referia ao sentido literal da palavra, até porque, como disse, cada um de nós traz as incompetências inerentes ao nosso não saber. Ela se referia, portanto, ao nosso já saber, mas que, nem por isso, se fazia presente entre nós. Referia-se à competência incompetente, ou seja, aquela que sabe o que tem que fazer, mas não faz. Aquela competência que escolhe o não fazer, que escolhe a uniformização e o superficial. Aquela competência que aprendeu o que fazer, mas que desaprendeu porque não conseguiu estabelecer uma conexão corajosa consigo. Aquela competência que se tornou conivente com a falta de vontade forte. É sobre este sentido, cuja fala de Nélida se propôs, que não poderíamos aderir.

Uma competência adiada. Uma competência incompetente. Não um sentido literal de competência, mas um sentido indigesto de se saber conhecedor do que precisa fazer, mas abdicar, por querer, deste fazer.

Não podemos adiar esta conversa antiga e necessária. Mas adiamos. O calendário avança em retrocessos, apesar do otimismo do tempo que, esperançoso, renasce como sinalizador de recomeços inadiáveis. Se é necessária esta conversa, por que, ainda, não está nas nossas promessas? Por desculpas. Por esta conversa estar espalhada de propósito. Porque encontrar esta conversa cansa e nos traz um grande desgaste em frente aos espelhos.

Temos uma competência com vontade firme para se tornar incompetente. Temos tido êxito nesta nossa empreitada de soluções inconsequentes. Fazemos liquidações. Naturalizamos os horrores e as dores. Fazemos coro com a má-fé. Alimentamos a ignorância que sempre está pronta a se manifestar. Buscamos confundir para evitar o pensar. Afinal, não é prático incentivar uma fala de análise, de busca, de pesquisa quando a mentalidade do delírio resolve tudo, ou quase tudo. As mentes destras e lúcidas sinalizam, a todo instante, os equívocos destas nossas criações. Mas o conhecimento parcial que enxergamos não tem sido o suficiente para que a compreensão possa emergir. Uma pena. Se fizéssemos um pouquinho mais de esforço, talvez a luz, há tempos lá, pudesse ser vista por mais pessoas.

O que temos acumulado? Cansaços, personalidades incertas, chão de areia, descontinuidades, falta de percepção da realidade. O que temos acumulado? Vitórias, conquistas, avanços, descansos, certezas, pisos sólidos e lucidez. Mas por que nossas balanças não conseguem equilíbrio vivo?  Por que invasões arbitrárias têm sido as nossas escolhas? Por que nossas buscas não buscam o conciliável ao invés do inconciliável? Por que não paramos de lutar? Por que o diálogo tem sido constrangido ao esquecimento?

Não há desculpas para a nossa incompetência. Sabemos. Machado de Assis também sabia disso. Por isso ele fazia com maestria. Fez tanto com tão pouco, com o pouco recebido. Um gênio da literatura. Um homem além dos impositivos e das dificuldades impostas pela vida.

Nossas incompetências têm corrido mais depressa do que a vontade pelo ser competente. Somos vendedores de coisas que não existem. Nossas vozes estão sobrepostas a dos outros. Temos um civismo questionável. Não colaboramos com a cooperação. Sem ela, como nos trouxe Cecília Meireles, “não há como termos grandes realidades”. Nosso hino possui uma letra incompreensível para a maioria, mas todos nós fomos obrigados a decorá-lo.

Não há desculpas para a nossa incompetência. Nossas burocracias existem porque não confiamos uns nos outros. Assinamos sem ler porque ler dá muito trabalho, exige tempo e disposição. O código de ética é escrito por muitos que não a possuem. A feira talvez faça menos barulho do que a nave de uma igreja. Fazemos mais do mesmo, lotamos as agendas dos nossos filhos e, ao findar do dia, exaustos estamos do não fazer, nos envaidecemos pelas entregas, muitas vezes, inúteis. E a agenda de nossos filhos? Cumprida com louvor, enquanto recebemos, pelo whatsapp, o diagnóstico de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade dos nossos, ditos, filhos.

Somos todos estes. Se há críticas, é para todos nós. Se há discussões, todos nós deveríamos estar nelas. Desagregamos. Como não adoecermos? Como não sermos incompetentes? Mas não há desculpas. A culpa talvez seja de Machado. Não temos a genialidade dele.

Precisamos ser um nítido conhecedor sobre nós mesmos. E para isso, somente permitindo que a nossa competência trabalhe, ao mesmo tempo que a nossa competência incompetente se recolha ao lado, como aprendiz. Mas é um longo trajeto. Bom será reforçarmos as solas dos nossos sapatos porque a caminhada se configura a nossa frente.

Temos cotidianos desorganizados. Como a nossa competência se realizará? Sem ordem, difícil encontrar o que precisamos. Não falo de uma ordem parasita, arbitrária, que imobiliza, mas de uma ordem que nos ajuda a buscar a nossa trajetória com serenidade, e a, principalmente, nos dedicar à vida com destreza, ritmo e velocidade compatíveis com quem somos.

Perdemos a conexão com a nossa essência. A investigação acerca de quem somos se perdeu.  Estamos concentrados no indivíduo que devemos representar para que ninguém nos cobre aquilo que não podemos dar. Um abismo que abrimos de forma competente. Desta forma, serenados, vivemos a vida de seres que esperam e que, há tempos, abdicaram das perguntas. Seres que caminham por trajetos ilusórios.

Criamos uma conveniência do atraso e da incompetência. Reagendamos prazos. “Tivemos um imprevisto”, dizemos. Somos inabilitados para os compromissos de longa duração. E a competência é algo a ser atingido somente para um projeto de longa duração. Mas em função da enorme ênfase que damos ao conhecimento de curto prazo, nossas realidades se explicam por si só. Intérpretes são desnecessários.

Muitas vezes, somos uma sequência de rupturas e de contradições, o que dificulta a construção de um claro projeto para as nossas vidas: competência.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Cecília Meireles, que diz: “Viver é uma obra de paciência e de disciplina”.

Paciência e disciplina são resultados da competência. Não há como avançarmos sem elas. Competência requer tempo de construção, transcorrer de passos favoráveis ao nosso desenvolvimento e a nossa expansão.

Há caminhos e rotas de saídas. E as sinalizações destas rotas e destas saídas estão evidentes.

Queremos?

domingo, 8 de novembro de 2020

Convento inabitado

Para este texto, parto de uma reflexão que diz: “não é freira, mas trabalha lá há tanto tempo que adotou o mesmo tom”, do livro Exílio, de Lya Luft.

Qual seria o tom da fala de uma freira?

São muitas as reflexões que podem ser feitas acerca deste pensamento. Mas o recorte que faço, para poder escrever este texto, relaciona-se com a palavra influência.

Somos influenciados. Influenciamos. Somos influenciáveis. Em todos os tempos. Em todos os modos. Em todas as conjugações.

O verbo influenciar nasceu no século XIX, formando-se a partir do termo influência, palavra com origem no latim medieval influentia, cujo sentido era o da ação exercida pelos astros sobre os homens. Com o passar do tempo, o conceito de influência permaneceu, independentemente da questão sobre os astros, no entanto, agora, com o sentido de exercer uma ação sobre algo ou alguém.

Somos resultados. Não somos inéditos. Somos a soma de estranhos e de influências, em nós. Somos uma peça de teatro já na quarta edição, revisitada, reescrita e reeditada. Somos a fala da freira, e também a do padre. Somos o grito da feira e da fera. Somos a raspa do tacho e o começo do pote. Somos a gíria e o culto. Somos povo. Somos indivíduos. Somos a sequência dos gestos dos nossos pais, no mesmo minuto que somos o filtro do que não queremos dizer. Somos a fala da freira porque não percebemos que o convento fez morada, em nós, e nós fizemos morada, há tempos, nele. Nosso convento habitado.

Somos excessos de escassos em forma de desperdícios. E também reciclamos o lixo. Falamos como estrangeiros numa terra que deveria ser conhecida. Exilamo-nos. Um exílio à moda de Lya Luft, mas também à nossa moda, porque de exílio entendemos. Num convento, exilar-se é quase uma segunda pele, que faz parte do nosso projeto de anulação, de alienação e de nosso projeto vitorioso de ativismo de sofá. Adotamos o mesmo tom da fala de uma freira porque servimos as nossas contradições, as nossas conveniências, as facilidades. Somos influenciáveis: nem percebemos que já estamos falando como elas. Quando nos dermos conta, rejeitaremos a originalidade da nossa voz porque já teremos nos acostumado ao som desta segunda voz, uma voz que talvez vá mais ao encontro das nossas necessidades. Imitamos. Seguimos modismos. Imitamos sem perceber. Imitamos porque percebemos.

Adotamos tons iguais por pura convivência, por pura anuência, por pura conivência. Por puro cansaço, pelo quase, pela dúvida, pela naturalização, pela preguiça, pelo não perceber, pelo perceber, pelo ceder. Pela opressão. Pelo gosto do igual. Para passar despercebido como um uniforme vestido, bem passado e sem vincos. De forma consciente ou não. Qual tem sido o nosso caminho?

Somos habitados por influências, por isso nossos conventos vão habitados e habituados e cheios de habitantes. Necessário fazer mais quartos. Alguém ficará feliz com tantas construções. O que segue vazio, sem tantas demandas de construção?

Alguns lugares esvaziaram-se e esvaziaram para que conventos fossem preenchidos. E como há vozes de freiras que, imitadas, seguem preenchidas! Pobre que somos. Tudo o que nos cerca escreve um pedacinho, em nós. Esses pedacinhos construídos debruçam-se sobre nós com muita curiosidade, e nos formam, como o tom da fala de uma freira. Muitas vezes percebemos, outras tantas, não.

Influenciados somos porque o nosso estar, no mundo, esbarra no outro. Para vivermos, precisamos conviver. Para convivermos, precisamos nos misturar ao estar do outro, no mundo.  Influenciáveis somos todos porque a fragilidade, a incompletude e a complexidade nos formam. Nossas fronteiras não são fixas, e ao mudarmos de lugar, outras áreas ficam descobertas. E nestas áreas descobertas, o nosso lado influenciável mostra-se sem muitos esforços.

O dia a dia copiado, imitado, seguido vai se desenhando e perdendo o sentido de tanto ser repetido. Começamos a falar uma gíria que não falávamos, a imitar um jargão vulgar, a colorir os nossos cabelos do mesmo tom, a frequentar lugares que nada nos dizem. De tantas influências que recebemos, passamos a naturalizar o que não poderia ser naturalizado, passamos a utilizar o mesmo tom de fala de uma freira...quem é a freira? Quem somos nós? Nossas vozes sobrepostas, desconhecidas, inabitadas não habitarão os conventos, nossa nova casa...

Influências que nos burilam, formam, nos fazem melhores. Influências que nos imprimem em folhas tortas, amassadas, velhas. Podemos escolher as nossas influências? Apenas as conscientes, as visíveis, as fáceis de serem percebidas. Se viver e acertar fosse fácil, qual seria a nossa razão?

A convivência nos faz adotar hábitos dos outros. A anuência nos ajuda a consentir aquela fala emprestada. Por puro cansaço, a busca do sentido perde o sentido. Por puro quase, o “deixar pra lá” passa a ser um lugar bastante frequentado por nós. Por pura dúvida, deixamos de perguntar e, assim, proliferamos dúvidas que nos deformam de tal modo que não nos reconhecemos mais. Por pura naturalização, o tom de fala de uma freira não nos incomoda mais, gostamos, e os nossos ouvidos passam a confundi-lo com a nossa voz. Por puro não perceber, passamos a caminhar de forma bem parecida com aquele que nos influenciou. Por puro perceber, fazemos de conta que está certo e que os absurdos são construções arbitrárias da nossa mente acostumada ao pranto. Por puro ceder, fortalecemos a banalização das nossas lutas e erguemos estátuas ocas. Por pura opressão, falar passa a ser uma arma contra nós. Por puro gosto do igual, os conventos vão ficando habitados, lotados e acessíveis.

Inabitados, vazios e isolados seguem aqueles que insistem no equilíbrio, lutadores de uma luta insolente e ingrata. Inabitados porque emprestam as próprias possibilidades àquele que vai.

Somos conventos habitados porque não nos frequentamos. Não construímos intimidade conosco, por isso não há como percebermos os nossos detalhes. Não há convivência. Falamos o mesmo tom da fala de uma freira porque conviver conosco é exaustivo, dolorido e difícil. O pouco tempo que temos conosco dedicamos ao externo.

Somos um ir-e-vir, somos um e o outro. Influências que nos constroem e que nos destroem. Que nos formam e que nos deformam. Somos um aglomerado de vivências, experiências e falas dos outros. Somos sequências de algo que foi começado por alguém, que não sabemos quem. Somos seres em construção, inacabados, como nos disse Paulo Freire. Somos andanças pelo mundo. A influência, portanto, é inerente à vida.

Da influência, em si, não há como escaparmos. Denota lacuna grave aquele que acha que pode contê-la, detê-la, impedi-la de exercer o seu poder. Não há como fazermos uma revisão de quem somos, e dividirmos a nossa individualidade em partes iguais de influência que sofremos versus construções puramente nossas.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensando de John Adams, o sexto presidente dos Estados Unidos, que diz:

“a influência de cada ser humano nos outros, na própria vida, é um tipo de imortalidade”.

Adotarmos o mesmo tom de fala de uma freira pode ser uma possibilidade. De uma possibilidade, nasce uma realidade. De uma realidade, nasce uma vivência. De uma vivência, nasce uma experiência. De uma experiência, nasce um valor. E um valor encerra, em si, uma certa imortalidade. Somos todos imortais, uns nos outros, por tudo o que fazemos, não fazemos, influenciamos.

E como sabermos se as influências têm sido boas ou não, em nossas vidas? Vários devem ser os caminhos e as respostas. Mas penso que uma possível resposta a esta pergunta seja começarmos a perceber se estas influências têm nos levado de volta para o nosso verdadeiro lar, que é o espaço que há dentro de cada um de nós. Não um convento. Não uma feira. Não um local externo. Mas dentro de nós. Se estivermos fazendo este caminho de volta, as influências terão valido a pena.

Uma influência boa nos leva de volta para casa, nos ajuda a renunciarmos ao nosso próprio ego e nos faz, sem interrupções, um convite para a paz que trabalha e para uma esperança que não espera. Uma influência ruim nos coloca num estado de emergência, nos proporciona conexões falhas, supérfluas e doentias, e nos dá poderosas ferramentas para explorarmos o lado esgarçado e cansado.

É preciso abdicarmos das influências que nos diminuem. Mas fazer isto cansa e dá trabalho.

Que os conventos, verdadeiros, sigam operantes, assim como as freiras e as próprias vozes. Mas que estes lugares comecem a dar sinais de esvaziamento, de desocupação porque muitos de nós estarão voltando para as suas casas, para os seus interiores, para os seus lugares. E, agora, nas nossas casas, como gratidão pela nossa volta, elas começarão a nos devolver os ecos de nossas vozes esquecidas que, há tempos, não ouvíamos porque ficamos muito tempo imitando o tom das falas das freiras. Nossas casas começarão a nos devolver os sons de nossas vozes, marcados em nossas paredes que, a partir de agora, e já não sem tempo, precisarão ser reinterpretados, reescritos e recordados.

E o som da fala de uma freira? Este será apenas uma recordação de uma viagem que fizemos, um dia, para um lugar chamado: convento, agora, inabitado.