segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Mãos relegadas

Para este texto, parto de um pensamento do poeta russo do século XIX, Vladimir Maiakóvski, que diz:

“A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”.

Uma das memórias que tenho é de minha mãe tricotando por horas. Era comum irmos ao bazar, perto de casa, comprarmos novelos de lãs e, assim, minha mãe tricotar e fazer blusas para todos nós. Um trabalho lento, cansativo e silencioso que exigia, da minha mãe, concentração, ritmo e paciência, muita paciência. Uma vez, tricotando uma blusa para o meu pai, já quase concluída, minha mãe percebeu um erro grotesco lá no começo da peça. Sem titubear, desmanchou boa parte da costura e a refez, ponto por ponto, apesar de ter percebido uma fisionomia de raiva e desapontamento no semblante de minha mãe.

Quando decidimos construir algo, reconstruir faz parte. Quando decidimos fazer, refazer torna-se inerente. Quando a fisionomia de desapontamento surge, e, certamente, ela surge, a nossa vontade, muitas vezes, é de largar mão e abandonar a obra. Mas a nossa teimosia de insistir naquilo que chamamos “nossa obra”, se mais forte for, derrotará a demolição anunciada que não se concretizou. Maiakóvski tem razão: arte é o martelo que ajuda a forjar o que precisa ser visto. E para tal, é preciso do tempo da espera, da arte, do bordar, do sentar-se, do sentir-se.

Quando o pensamento de realização nasce, nasce, também, a possibilidade e necessidade da reforma. Tricotar, bordar, pintar e todo e qualquer tipo de arte exige graus elevados de paciência para o refazimento, para a reestruturação, para a reelaboração, para a reforma. Construir por meio do manual, do artesanal não conversa com a mecanização. O fazer manual possui, como principal característica, o traço do autor cuja assinatura não poderá ser outra que não a sua ou a minha. Não haverá outra obra igual. Mas para sermos merecedores do legítimo, do inédito e do exclusivo, há que se ter tempo para os passos, para o caminhar além da esteira de produção, para além dos gestos inúteis.

Realizações manuais são necessárias; mas realizações industriais também. Construções artesanais são ritmadas de forma que não adoecem. No entanto, não atendem a tantas demandas que o mundo de hoje, e também o de ontem, exigem. Realizações manuais e artesanais não possuem patrocínios expressivos. Construções velozes são desumanas, adoecem e fazem dos hospícios quase a extensão dos nossos viveres. São construções patrocinadas porque o retorno do lucro e do caixa são certos. Contudo, atendem as tantas demandas que nos cercam e que nos expandem, conversam com as nossas necessidades como íntimos conhecidos, e tornam evidente a nossa ignorância. Uma ignorância que é ignorada apenas por nós, os donos da ignorância.

Viver é uma obra de muitos tijolos. Mas como adquirir tantos tijolos de forma manual e artesanal? Se para vivermos será preciso tijolos, construí-los será necessário. E para dar conta de tamanha demanda, precisamos, portanto também da mecanização, da padronização e da industrialização. O que fazer? Não penso que há respostas prontas e caminhos certos. Mas há respostas sendo respondidas e caminhos sendo construídos. Resta-nos saber se eles serão suficientes para nos resgatar das vantagens e das promessas que acreditamos, de certas atrações que nos distraíram e da miséria moral que nos ronda, mas que insistimos em renomear para disfarçar a companhia da dor que desprezamos.

Disciplina e paciência são resultados da construção do artesão. Mas o artesanal da vida é demorado, lento, construído. Muitas vezes, vamos deixar as sementes aqui, não teremos tempo de acompanharmos a colheita. Resultado e entrega são resultados da construção do mecânico. Mas o mecânico da vida é artificial, igual, descaracterizado e com rachaduras internas. Muitas vezes, vamos colher rapidamente porque compramos uma terra que não foi lavrada por nós. O que buscamos? O que faz sentido para nós? Acredito que os dois. Hipócrita seria vivermos sob o teto artesanal pedindo um alimento pelo aplicativo ou pagando uma conta pelo PIX. Mas como conciliar? É possível conciliar? Saberemos fazer isso? Não sei.

O que sei, apenas, é que continuaremos a dar muito trabalho a nós mesmos. Não somos criaturas simples. Somos uma sucessão de erros, acertos, misérias, dores, alegrias e enganos. Vivemos escondidos sob discursos prontos e encomendados. Vivemos de textos rebuscados, retóricos e redundantes, mas que ninguém está interessado em nos desmascarar, até porque todos estão preocupados e ocupados em sustentarem as próprias máscaras. E quando surgem os de fala simples e sem encomendas no discurso, a audiência é mínima, sem relevância. E uma audiência mínima, sem relevância, fica sem patrocínio. E sem patrocínio, como se sustentará? Voltamos para o dilema do artesão e da mecanização.

O que sei, também, é que não é fácil discutir este assunto com a gente. Sempre temos as respostas. Sempre temos razão. E se sempre temos razão, qual o sentido da conversa? Somos senhores de respostas prontas, incuráveis, sabedores de pseudo saberes, enfermos que buscam ecos em outras vozes. Achamo-nos originais, mas o que nos falta é leitura dos que passaram antes da gente. Somos enfermos saudáveis porque aprendemos a relevância da aparência para a nossa permanência e sobrevivência, aqui. Somos faladores contumazes e escutadores em extinção. Somos aqueles que sabem, os brilhantes e aqueles que opinam sobre tudo porque nada sabemos. Está evidente, portanto, o nosso despreparo. Arrumamos as nossas malas muito mal, e nos faltam itens urgentes, básicos e de primeira necessidade.

A vida é uma obra de passos lentos, vivos, artesanais, autorais e atemporais. A vida que buscamos é uma obra de rapidez, de entregas, de falta de tempo, de mortos, de iguais, de artificiais. Como conciliar o melhor dos dois modos? É possível?

Temos adoecido porque temos excessos de tarefas sem importância. Nossas agendas vão cheias de afazeres que lá estão para ocuparem a ociosidade. O comprimento de nossa vaidade anda extenso porque nos falta atenção a nossa largura moral. Impomos os nossos intervalos, brechas, bastidores aos outros, mas não aceitamos as dores alheias. Afinal, por que aceitá-las se nada nos dizem? Há um imobilismo no ar porque fomos travados pelo excesso. Queremos tanto, de tudo, e rápido que o que fazer com tudo isso?

Falta-nos o amparo do artesanal. Do tempo da construção. Da lembrança da espera. Do respeito pela obra. Do acompanhar da sobreposição dos tijolos. Importante atender as demandas. Mas o artesão faz dentro do tempo que se tem. A mecanização constrói um tempo artificial para que a demanda caiba lá. Adoecemos. E faz tempo. O adoecimento não tem nos dado o tempo necessário para que nos voltemos a nós. A superlotação esvazia o sentido do artesanal, do manual, do tempo para que se veja o erro no começo de uma construção e, de verdade e com vontade, se refaça a obra.

Somos, diariamente, atravessados por uma pressa que não nos ensina. Pelo contrário, que corrompe o que aprendemos, que subtrai os ensinamentos que a vida nos dedicou. O artesão tem a sorte de ter a experiência de composição e de movimento lento e natural porque abdicou das urgências falidas e das influências que o diminuem. E nós? Os que correm? Os que atropelam o sinal?

A blusa do meu pai foi refeita. Minha mãe tricotou durante dias e horas aquela blusa cinza, de lã, para o inverno que chegaria. Meu pai não é um homem que sente muito frio, mas sente. Portanto, “aquela blusa seria o suficiente”, disse minha mãe. O inverno chegou. Esfriou bastante. Minha mãe, observando que meu pai não vestia a blusa, insistiu para que ele a usasse. Afinal, quando seria senão no inverno? Uns dias seguintes, meu pai surge na cozinha com a blusa para a alegria da minha mãe. O estágio dela na arte de ser uma aprendiz de artesã tinha valido a pena.  À noite, quando meu pai chega em casa, está sem a blusa. Mas o frio era intenso. Por que ele estava sem a blusa, então? Porque havia espirrado o dia todo com a blusa, por causa da lã, meu pai é alérgico à lã. Uma descoberta irônica.

Minha mãe, novamente, esboça a mesma fisionomia de desapontamento e diz: “puxa, tanto trabalho para fazer esta blusa, e você nem vai usar? Se eu soubesse, não teria tido tanto trabalho. Mas fácil comprar algo pronto.”  Voltamos para o dilema do artesão e da mecanização. As mãos de minha mãe, relegadas ao desprezo da alergia do meu pai.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um lindo pensamento de Shakespeare, que diz: “A arte é o espelho e a crônica da sua época”.

Sermos os artesãos das nossas vidas é vivermos diante um espelho, nos enxergando, nos conhecendo, escrevendo a crônica, a realidade de nossas épocas. Ser artesão é transformar a banalidade em ênfase, e fazer exata a crônica da nossa vida, por meio das nossas mãos sejam elas físicas ou metafóricas.

A blusa de lã foi doada, mas o exercício do artesão jamais. Que esteja claro, para nós, que vivemos entre o tricotar de uma lã versus a compra de uma linda blusa da vitrine. Vivemos na ponte aérea do transcorrer do tempo respeitado versus do transcorrer do tempo atropelado. Atravessamos estes dois mares, sem exceções e sem muitas escolhas. Optar somente pelo artesanal é conversar com a hipocrisia; escolher a mecanização é nos distanciar de quem nos trouxe aqui: a vida. Portanto, que a gente calce sapatos fortes porque a caminhada é dura e longa. E que, mesmo sobre solos árduos, nossos pés e mãos possam viver o melhor que puderem, sempre um colaborando com o outro, e o principal: com os outros pés e mãos.