Para
este texto, parto de um pensamento do poeta russo do século XIX, Vladimir Maiakóvski, que diz:
“A arte
não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”.
Uma das
memórias que tenho é de minha mãe tricotando por horas. Era comum irmos ao
bazar, perto de casa, comprarmos novelos de lãs e, assim, minha mãe tricotar e
fazer blusas para todos nós. Um trabalho lento, cansativo e silencioso que
exigia, da minha mãe, concentração, ritmo e paciência, muita paciência. Uma
vez, tricotando uma blusa para o meu pai, já quase concluída, minha mãe
percebeu um erro grotesco lá no começo da peça. Sem titubear, desmanchou boa
parte da costura e a refez, ponto por ponto, apesar de ter percebido uma
fisionomia de raiva e desapontamento no semblante de minha mãe.
Quando
decidimos construir algo, reconstruir faz parte. Quando decidimos fazer,
refazer torna-se inerente. Quando a fisionomia de desapontamento surge, e,
certamente, ela surge, a nossa vontade, muitas vezes, é de largar mão e
abandonar a obra. Mas a nossa teimosia de insistir naquilo que chamamos “nossa
obra”, se mais forte for, derrotará a demolição anunciada que não se
concretizou. Maiakóvski tem razão: arte é o martelo que ajuda a forjar o que
precisa ser visto. E para tal, é preciso do tempo da espera, da arte, do
bordar, do sentar-se, do sentir-se.
Quando
o pensamento de realização nasce, nasce, também, a possibilidade e necessidade
da reforma. Tricotar, bordar, pintar e todo e qualquer tipo de arte exige graus
elevados de paciência para o refazimento, para a reestruturação, para a
reelaboração, para a reforma. Construir por meio do manual, do artesanal não
conversa com a mecanização. O fazer manual possui, como principal
característica, o traço do autor cuja assinatura não poderá ser outra que não a
sua ou a minha. Não haverá outra obra igual. Mas para sermos merecedores do
legítimo, do inédito e do exclusivo, há que se ter tempo para os passos, para o
caminhar além da esteira de produção, para além dos gestos inúteis.
Realizações
manuais são necessárias; mas realizações industriais também. Construções
artesanais são ritmadas de forma que não adoecem. No entanto, não atendem a
tantas demandas que o mundo de hoje, e também o de ontem, exigem. Realizações
manuais e artesanais não possuem patrocínios expressivos. Construções velozes
são desumanas, adoecem e fazem dos hospícios quase a extensão dos nossos
viveres. São construções patrocinadas porque o retorno do lucro e do caixa são
certos. Contudo, atendem as tantas demandas que nos cercam e que nos expandem,
conversam com as nossas necessidades como íntimos conhecidos, e tornam evidente
a nossa ignorância. Uma ignorância que é ignorada apenas por nós, os donos da
ignorância.
Viver é
uma obra de muitos tijolos. Mas como adquirir tantos tijolos de forma manual e
artesanal? Se para vivermos será preciso tijolos, construí-los será necessário.
E para dar conta de tamanha demanda, precisamos, portanto também da
mecanização, da padronização e da industrialização. O que fazer? Não penso que
há respostas prontas e caminhos certos. Mas há respostas sendo respondidas e
caminhos sendo construídos. Resta-nos saber se eles serão suficientes para nos
resgatar das vantagens e das promessas que acreditamos, de certas atrações que
nos distraíram e da miséria moral que nos ronda, mas que insistimos em renomear
para disfarçar a companhia da dor que desprezamos.
Disciplina
e paciência são resultados da construção do artesão. Mas o artesanal da vida é
demorado, lento, construído. Muitas vezes, vamos deixar as sementes aqui, não
teremos tempo de acompanharmos a colheita. Resultado e entrega são resultados
da construção do mecânico. Mas o mecânico da vida é artificial, igual,
descaracterizado e com rachaduras internas. Muitas vezes, vamos colher rapidamente
porque compramos uma terra que não foi lavrada por nós. O que buscamos? O que
faz sentido para nós? Acredito que os dois. Hipócrita seria vivermos sob o teto
artesanal pedindo um alimento pelo aplicativo ou pagando uma conta pelo PIX.
Mas como conciliar? É possível conciliar? Saberemos fazer isso? Não sei.
O que
sei, apenas, é que continuaremos a dar muito trabalho a nós mesmos. Não somos
criaturas simples. Somos uma sucessão de erros, acertos, misérias, dores,
alegrias e enganos. Vivemos escondidos sob discursos prontos e encomendados.
Vivemos de textos rebuscados, retóricos e redundantes, mas que ninguém está
interessado em nos desmascarar, até porque todos estão preocupados e ocupados
em sustentarem as próprias máscaras. E quando surgem os de fala simples e sem
encomendas no discurso, a audiência é mínima, sem relevância. E uma audiência
mínima, sem relevância, fica sem patrocínio. E sem patrocínio, como se
sustentará? Voltamos para o dilema do artesão e da mecanização.
O que
sei, também, é que não é fácil discutir este assunto com a gente. Sempre temos
as respostas. Sempre temos razão. E se sempre temos razão, qual o sentido da
conversa? Somos senhores de respostas prontas, incuráveis, sabedores de pseudo
saberes, enfermos que buscam ecos em outras vozes. Achamo-nos originais, mas o
que nos falta é leitura dos que passaram antes da gente. Somos enfermos
saudáveis porque aprendemos a relevância da aparência para a nossa permanência
e sobrevivência, aqui. Somos faladores contumazes e escutadores em extinção.
Somos aqueles que sabem, os brilhantes e aqueles que opinam sobre tudo porque
nada sabemos. Está evidente, portanto, o nosso despreparo. Arrumamos as nossas
malas muito mal, e nos faltam itens urgentes, básicos e de primeira necessidade.
A vida
é uma obra de passos lentos, vivos, artesanais, autorais e atemporais. A vida
que buscamos é uma obra de rapidez, de entregas, de falta de tempo, de mortos,
de iguais, de artificiais. Como conciliar o melhor dos dois modos? É possível?
Temos
adoecido porque temos excessos de tarefas sem importância. Nossas agendas vão
cheias de afazeres que lá estão para ocuparem a ociosidade. O comprimento de
nossa vaidade anda extenso porque nos falta atenção a nossa largura moral.
Impomos os nossos intervalos, brechas, bastidores aos outros, mas não aceitamos
as dores alheias. Afinal, por que aceitá-las se nada nos dizem? Há um
imobilismo no ar porque fomos travados pelo excesso. Queremos tanto, de tudo, e
rápido que o que fazer com tudo isso?
Falta-nos
o amparo do artesanal. Do tempo da construção. Da lembrança da espera. Do
respeito pela obra. Do acompanhar da sobreposição dos tijolos. Importante
atender as demandas. Mas o artesão faz dentro do tempo que se tem. A
mecanização constrói um tempo artificial para que a demanda caiba lá.
Adoecemos. E faz tempo. O adoecimento não tem nos dado o tempo necessário para
que nos voltemos a nós. A superlotação esvazia o sentido do artesanal, do
manual, do tempo para que se veja o erro no começo de uma construção e, de
verdade e com vontade, se refaça a obra.
Somos,
diariamente, atravessados por uma pressa que não nos ensina. Pelo contrário,
que corrompe o que aprendemos, que subtrai os ensinamentos que a vida nos
dedicou. O artesão tem a sorte de ter a experiência de composição e de
movimento lento e natural porque abdicou das urgências falidas e das
influências que o diminuem. E nós? Os que correm? Os que atropelam o sinal?
A blusa
do meu pai foi refeita. Minha mãe tricotou durante dias e horas aquela blusa
cinza, de lã, para o inverno que chegaria. Meu pai não é um homem que sente
muito frio, mas sente. Portanto, “aquela blusa seria o suficiente”, disse minha
mãe. O inverno chegou. Esfriou bastante. Minha mãe, observando que meu pai não
vestia a blusa, insistiu para que ele a usasse. Afinal, quando seria senão no
inverno? Uns dias seguintes, meu pai surge na cozinha com a blusa para a
alegria da minha mãe. O estágio dela na arte de ser uma aprendiz de artesã
tinha valido a pena. À noite, quando meu
pai chega em casa, está sem a blusa. Mas o frio era intenso. Por que ele estava
sem a blusa, então? Porque havia espirrado o dia todo com a blusa, por causa da
lã, meu pai é alérgico à lã. Uma descoberta irônica.
Minha
mãe, novamente, esboça a mesma fisionomia de desapontamento e diz: “puxa, tanto
trabalho para fazer esta blusa, e você nem vai usar? Se eu soubesse, não teria
tido tanto trabalho. Mas fácil comprar algo pronto.” Voltamos para o dilema do artesão e da
mecanização. As mãos de minha mãe, relegadas ao desprezo da alergia do meu
pai.
Quero
encerrar este texto, mas não a reflexão, com um lindo pensamento de Shakespeare,
que diz: “A arte é o espelho e a crônica da sua época”.
Sermos
os artesãos das nossas vidas é vivermos diante um espelho, nos enxergando, nos
conhecendo, escrevendo a crônica, a realidade de nossas épocas. Ser artesão é
transformar a banalidade em ênfase, e fazer exata a crônica da nossa vida, por
meio das nossas mãos sejam elas físicas ou metafóricas.
A blusa
de lã foi doada, mas o exercício do artesão jamais. Que esteja claro, para nós,
que vivemos entre o tricotar de uma lã versus a compra de uma linda
blusa da vitrine. Vivemos na ponte aérea do transcorrer do tempo respeitado
versus do transcorrer do tempo atropelado. Atravessamos estes dois mares, sem
exceções e sem muitas escolhas. Optar somente pelo artesanal é conversar com a
hipocrisia; escolher a mecanização é nos distanciar de quem nos trouxe aqui: a
vida. Portanto, que a gente calce sapatos fortes porque a caminhada é dura e
longa. E que, mesmo sobre solos árduos, nossos pés e mãos possam viver o melhor
que puderem, sempre um colaborando com o outro, e o principal: com os outros
pés e mãos.