quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

A arte de dizer eu não sei

Existem saberes e saberes. Aquele que aproxima. O que afasta. Aquele que encanta. O que humilha. Aquele que serve ao mundo. O que somente serve a quem o tem. O descortinar para o conhecimento dá tom à vida, traz luz, faz desabrochar o que o livro fechado não revela. Portanto, o saber é imprescindível se quisermos avançar em direção ao crescimento. Ele nos convida a darmos as mãos à autonomia e à liberdade, duas chaves essenciais para a vida.

O problema todo se inicia quando queremos saber tudo e sempre. Uma realidade impossível e insustentável. Mas que achamos possível e saudável. Caso assim não fosse, por que a praticamos? Há sempre um desconforto de nossa parte quando não sabemos algo, quando não temos uma resposta para algo que nos é perguntado. De onde vem isto: da construção coletiva que fizemos, na condição de sociedade que somos, ou da doente crença de valorizarmos apenas aquele que sabe tudo? Dois caminhos bem possíveis...

O saber não apresenta limites. É ilimitado e não ocupa espaços. Pelo contrário, expande as nossas ocupações e nos traz terras, até então, inabitadas. Traz-nos espaços abstratos que nos revelam sede de construção. E ao compartilharmos este saber, mais espaços ganhamos porque o saber compartilhado é multiplicado.

Quanto mais buscamos conhecimento, mais ele se apresenta a nossa frente, e mais o desconhecemos. O saber e o conhecimento se assemelham ao grande mar: à medida que avançamos, ele avança também. E nunca conseguimos alcançá-lo completamente. Aprendemos algo hoje, descobrimos algo ontem, e amanhã surgirá algo de que não sabemos. Sem limites por parte do saber, mas uma limitação claramente demarcada em nós: não nos é possível sabermos e conhecermos tudo. Não nos é possível conhecermos e vivenciarmos tudo. Como seres incompletos que somos, o ato de não sabermos também nos constitui, e muito.

Sabemos que não sabemos tudo. Mas nos escondemos desta realidade. Somos vítimas e protagonistas de uma sociedade que constrói falsas imagens de que o certo é o saber tudo, é o de se ter respostas para todas as perguntas. Avançamos neste comportamento insustentável de exigirmos saberes de onde ainda não se pode oferecer, e assim, ajudamos a construir e a propagar neuroses e situações nocivas cujas consequências cairão sobre todos nós.

Saber nos permite avançar em direção a algo melhor. Ele limpa a nossa visão e passamos a enxergar coisas que estavam ali o tempo todo. Somos melhores a partir do momento que sabemos. Mas o não saber é uma forma de saber o que não sabemos. Parece óbvio, mas diz muito sobre quem somos, quem aparentamos e sobre quem queremos ser. Se o que sabemos mostra o que não sabemos, qual é a nossa realidade, afinal? Um exercício necessário.

Há um texto antigo, escrito por Antônio Ermírio de Moraes, sobre a arrogância de querer saber tudo. Diz o texto:

Você está olhando pela janela. Não há nada de especial no céu, somente algumas nuvens. Alguém te pergunta:

- Será que chove hoje?

* se você responder “com certeza”, sua área é a de Vendas. Esta área sempre tem certeza sobre tudo;

* se você responder “sei lá, estou pensando em outra coisa”, sua área é a de Marketing, que sempre está pensando no que os outros estão pensando;

* se você responder “sim, há uma boa probabilidade”, sua área é a da Engenharia, que sempre está disposta a transformar o universo em números;

* se você responder “depende”, sua área é a de Recursos Humanos, que sempre acredita que um fato estará na dependência de outros;

* se você responder “ah, a meteorologia diz que não”, sua área é a de Contabilidade, que sempre confia mais nos dados que nos próprios olhos; e

* se você responder “sei lá, mas, na dúvida, eu trouxe um guarda-chuvas”, então a sua área é a de Finanças, que sempre deve estar bem preparada para qualquer virada de tempo.

No entanto, se você responder simplesmente “não sei”, há grandes chances de você se tornar uma pessoa de sucesso.  De cada 100 pessoas, somente uma tem a coragem de dizer que não sabe. As outras 99 pessoas sempre acham que precisam ter uma resposta pronta, seja ela qual for, para qualquer situação. 'Não sei' é sempre uma resposta que economiza o tempo de todo mundo, e predispõe os envolvidos a conseguirem dados mais concretos antes de tomarem uma decisão. Parece simples, mas responder “não sei” é uma das coisas mais difíceis de se aprender na vida, independentemente da nossa posição.

Por quê? Eu sinceramente 'não sei'.

O saber é fundamental para a vida, mas com propósito, discernimento e foco. É uma poderosa ferramenta que alavanca o nosso desenvolvimento e o do outro. É uma ferramenta de elevação e não de corrupção. De humildade, porque aquele que sabe serve, e não de exibicionismo para mostrar que sabe. Este é um saber vazio, sem visões ao se dobrar a esquina. O saber verdadeiro implica no esquecimento de si em favor do outro. Saber muito aumenta a nossa responsabilidade. Significa, inclusive, ter disposição de pagar o preço pela nossa ascensão e saber.

É nosso dever buscar o conhecimento e o saber. Mas com discernimento e equilíbrio. Não seremos menores por não sabermos. Mas seremos grandes se assumirmos o nosso desconhecimento.

Não saber tudo nos dá a certeza de que somos e de que estamos em construção. E isto nos devolve um pouco da lucidez que perdemos no dia em que achamos que deveríamos saber e ter todas as respostas.

É preciso saber discernir o saber que devemos saber, nossa obrigação e dever (é esperado que saibamos), do saber para se manter a aparência, sem construção e sem obras. O primeiro é um saber que ampara; o segundo, um saber que não se abstém de quaisquer exibições de superioridade. O saber nos desloca e transforma a nossa visão de mundo. Mas o não saber, também, nos recoloca no lugar de aprendizes, que é o que somos.

Todo o equilíbrio nos faz grandes. Todo o excesso nos torna menores do que já somos. O saber na medida nos faz fortes. O saber em excesso não é saber, é falácia. É necessário e preciso deixar espaços para o não saber, para o desconhecido, para o inabitado.

Dizer “não sei” é libertador. Liberta-nos da condição que nunca teremos: a de detentores do saber incondicional, de todas as respostas. As pessoas que abrem espaço para o erro, para o não saber, aprendem, verdadeiramente. Elas não se importam e não se preocupam em ocuparem lugares que a sociedade intitulou de “os primeiros”. Quem é o primeiro? Quem é aquela pessoa de sucesso?

O primeiro é sempre o que não se importa de ficar por último, algumas vezes, na vida, porque sabe que o primeiro lugar é transitório e inconstante, assim como o último.

Colocarmo-nos numa posição de detentor do conhecimento e daquele que tudo sabe é abrirmos mão do longo prazo da vida. Não há como sabermos tudo. O saber é uma construção. Portanto, ele, em si, é uma obra inacabada, incompleta. Brigarmos contra isto nos torna inabilitados para os compromissos de longa duração, da vida.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Lya Luft, uma escritora que admite não saber muitas coisas, que diz:

“Não saber é o que torna nossa vida possível.”

Que saibamos buscar o saber necessário e verdadeiro, e não o saber que apenas ocupa espaço num palco aonde insistimos em estar. Que saibamos, sempre, diferenciar o saber que eleva daquele que torna as nossas convicções (o nosso saber imposto e autoritário) em nossas próprias armadilhas.

O saber é essencial à vida. Mas o não saber é o que mais abre espaços para uma vida plena. E somente por meio da lucidez e da humildade seremos capazes de descobrir isto. A vaidade de querermos saber tudo e de termos todas as respostas nos afastará, e muito, de novos saberes e de novos e verdadeiros conhecimentos.

domingo, 19 de novembro de 2017

Tempos de sempre

Vivemos tempos estranhos. Vivemos tempos felizes. Estranhos e felizes. Felizes e estranhos.

Consideramos o outro como estranho a nós. Não nos é pedido sermos amigos íntimos, mas por que a dor e a angústia dele não nos representam? Fazemos questão de considerar o outro como estranhos.

Um distanciamento provocado, assistido e, particularmente, calculado. Mantermos a distância das dores do outro nos faz criar ilusões sobre a vida, e nos faz colocar tintas sobre ela que jamais existiram na cartela. Tornar a angústia do outro parte do nosso problema, nos obriga a conhecer as nossas dores e as nossas angústias. Talvez seja este o problema.

Sempre quando estendemos a mão para o outro corremos o risco de sermos derrubados pela própria força que o outro fará quando se apoiar em nós para se levantar. E vice-versa. Mas queremos esconder. Ninguém precisa saber disto. Por isso, quanto menos contato tivermos com a dor do outro, mais camufladas estarão as nossas questões.

Acreditamos que viver como estranhos ajuda a evitar o nosso sofrimento. A frieza do estranhamento causa um distanciamento e assim, apostamos numa ilusão de proteção.

Afastar o estranhamento frente à dor do outro não nos fará tristes e sofredores. Sermos solidários, de verdade, à angústia do outro nos fará seres mais fortes e capazes de superarmos nossas próprias dores. Somos seres interdependentes. Mas insistimos na tese do individualismo. A crença na interdependência desperta a vontade de aliviar a dor do outro. Quando aliviamos a dor do outro uma dor em nós é amenizada também. A crença no individualismo desperta o nosso inchaço e nos faz crer no irreal.

Esse estranhamento a tudo o que achamos que não nos pertence. Essa alienação vivida e sentida porque estamos ocupados demais tentando disfarçar nossas miudezas. Não se trata de acreditarmos, falsamente, que temos a solução das coisas e sairmos buscando pessoas com problemas e angústias. Mas apenas legitimarmos a dor do outro. Só isso.

Fugimos da dor do outro e reforçamos a condição de estranhos porque a dor nos coloca de volta ao lugar de onde nunca deveríamos ter saído: a da consciência de sermos apenas seres humanos, frágeis, falíveis e incompletos. A incompletude nos completa. O que há além dela, neste nosso estágio? A intensidade dela pode ser reduzida. Mas a linha que nos define é esta. A fragilidade nos caracteriza, nos identifica. Afinal, o que é mais humano que se sentir frágil e amedrontado? Vítor Hugo diz que todo mundo é parecido quando sente dor. Quando estamos com dor e vulneráveis, parece que a lucidez volta a ter voz em nós. Somos falíveis. Que belo golpe para o ego. Esta descoberta traz desconforto porque somos vaidosos. E quanto mais vaidosos somos, mais falimos. Que ironia.

Passos melhores e maiores. O sinal soou. A maioria ouviu. E por que não avançam? Talvez pela inércia, outro recurso imprescindível do qual todos nós somos feitos.

Somos estranhos a nós mesmos. Por isso não há como ouvirmos a dor do estranho que passa. A dor que cala porque a voz não cessa de falar o que não produz.

O silêncio que chega manso buscando um espaço no conturbado lago das ilusões.

Vivemos tempos felizes, também. E aquele que já entendeu isso, descobriu que felicidade não se define, se sente. Aquele que mente e diz que sabe o que é felicidade, não é feliz. É só um burocrata do conceito, do significado, um afoito de dicionários. Não há como ser feliz com conceitos concluídos e absolutos. É só um personagem passando pela vida.

Aquele que diz saber o que a vida nos oculta, por sabedoria, é um fazedor de vida, e não um realizador da vida. É um reivindicador e não um executor. É uma pessoa cansada e que cansa. É uma pessoa com a vista turva, mas que optou por não a aclarar.

A vida sempre nos dá as opções certas de recortes. Mas a tesoura está em nossas mãos.

Aquele que já entendeu e descobriu que também vivemos tempos felizes sabe que a serenidade e a paz no coração que a felicidade traz sinaliza, também, algo pontual e demarcado a nossa frente: a tempestade que não enxergamos, mas que sabemos que ela existe. Portanto, não a subestima.

Tempos complementares e interdependentes. O avesso de um mostra o lado do outro.

Os limites, os excessos e os avessos fazem parte destes tempos. Que são nossos, mas que já foram de outros. Tempos estranhos e tempos felizes são reflexos do que fazemos deles. Os tempos, em si, são sempre os mesmos. O que muda é a nossa relação com ele.

A vaidade que chega falando alto porque demos voz a ela. Ela sente-se à vontade porque somos a casa dela. A vaidade nos coloca na base da incompletude. Um lugar confortável porque aqui somos os melhores? E quem nos disse isso? Aqueles que querem a nossa queda, o nosso declínio, o nosso inchaço exatamente por não cabermos em nós. Somos estranhos.

Nossos contornos refazem nossas formas. Mas não as reconhecemos. Desfazemos as nossas recentes formas e desperdiçamos as falas trazidas pelos contornos. Caímos em ciladas autorais que buscam a perda de nós mesmos. Perdidos, como entender estas formas?

Valorizamos as ferramentas que destroem e que corrompem. Elas proporcionam construções imediatas e mais rápidas, encurtamento de caminhos obrigatórios, planejamento subestimado e etapas desconsideradas. De posse de nossas agendas cheias, estas ferramentas nos induzem ao cultivo do impossível, do descartável e do alienável. Nossa atenção está direcionada para o que não precisa e, portanto, não percebemos os sinais da construção destas grades que, livres, se perpetuam, se fortalecem e criam raízes.

O tempo não voa. Ele só passa mais rápido porque se chateia por não priorizarmos o que, de verdade, importa.

Tempo nosso. Tempo do outro. Nosso tempo. Nossos tempos. Antigamente é um tempo tão próximo. O futuro precisa dar as mãos para a antiguidade se quiser se reinventar. Os tempos que temos são de todos nós.

Aquele que vai à frente, investe tempo. O que ficou preso às lentes distorcidas, gasta tempo.

O tempo é lento e rápido. Depende do tom que quisermos dar a ele. Ajudar alguém a se reestruturar é um dos maiores investimentos de tempo. E não perceber a nossa necessidade de reajustes e ajustes é uma das maiores perdas de tempo.

Os tempos estranhos nos fazem estranhos em meio a conhecidos. Os felizes nos impulsionam para o despertar do compromisso.

Somos uma sociedade de apressados porque apressamos o tempo. E por vingança, ele nos apressa também. E assim chegamos mais rápido a lugares desconhecidos. Os tempos estranhos pertencem a todos nós: inconscientes, injustos e desatentos.

Nosso exacerbar dos excessos que finge não perceber o transbordamento. Afogamos os conhecimentos alheios porque o saber somente a nós pertence. Vivemos tempos estranhos.

Tempos estranhos. Tempos felizes. A batalha do encontro que, aos poucos, vai fazendo as pazes. Mas antes, será preciso fazer as pazes com a gente mesmo.

Em paz conosco, não teremos medo de nos apropriar da dor do próximo. Teremos entendido, finalmente, que nos apropriar da dor dele e ajudar a minimizá-la, não significa tomar a dor dele para nós, nem mesmo abrir mão da nossa felicidade.

Exacerbamos a nossa ideia de felicidade por isso ainda sentimos infelicidade. A nossa ilusão de felicidade absoluta é a grande causa da infelicidade e do insucesso. Quando aceitarmos quem somos e quando nos identificarmos como seres relativos e não absolutos, a nossa contribuição para o mundo será enorme.

Que a gente busque tempos felizes, e não a obrigação de ser feliz. Porque isto nos coloca num lugar apertado, na vida, com difícil acesso a outros patamares de evolução. Mas que os tempos estranhos sejam respeitados e ouvidos até para que os felizes façam sentido. E que espaços de conversa com nossos tempos estranhos sejam criados.

O individual e o coletivo são um. Que o amanhã chegue. Que o passado seja a nossa fonte para perguntas e, assim, nos envergonharmos da nossa arrogância. O passado é sempre sábio. E que o presente sirva para nos conscientizar sobre a ignorância de termos pressa. Assim, todas as nossas frestas estarão cobertas.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, que diz:

“Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.”

Os monstros do nosso tempo são velhos conhecidos: o esvaziamento das relações e, como consequência, nos tornamos seres estranhos uns aos outros, e a nossa busca doentia pela felicidade absoluta. Algo que, ironicamente, não existe.

O cuidado para que não nos tornemos um monstro por estarmos lutando contra os nossos monstros, é o que nos diferencia como seres inteligentes. E se para esta luta for preciso olharmos e contemplarmos os nossos abismos, que não tenhamos a ilusão de acharmos que não teremos sido vistos por ele. O melhor que fazemos é cumprimentarmos nossos abismos, dialogarmos com eles e compreendê-los. Subestimar que eles nos observam é reafirmar a nossa condição de estranhos. Quando tivermos a coragem de sairmos dos nossos estranhamentos, nossos abismos terão transformado nossos monstros em coautores da nossa nova história. Uma história de escrita feliz e sem estranhos por perto.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

A pobreza mora logo aqui

Estava parada na calçada quando uma mulher, de mãos dadas com uma criança, disse:

- Anda logo, meu! Você não anda!

A criança, que não passava dos três anos de idade, apressou os pequenos passos e, entre tropeços e quedas, tentou caminhar. Tentativa frustrada. Como o ritmo da criança não era o que a mulher esperava, ela a colocou no colo e andou no passo que ela achou adequado.

Quando fazemos somente aquilo que achamos o certo, o mundo se perde e adoece.

Estamos acostumados a enxergar apenas o externo como representação de nossas verdades. E nos esquecemos que o interno, aquilo que vai em nós, também representa os nossos valores, nossas medidas, nossos contornos e entornos. E este texto falará sobre estes nossos internos.

O externo está visto, não há dúvidas. Sabemos reconhecer uma pessoa pobre, materialmente. Por mais que haja vontade de disfarçar, não é possível com o externo. Ele é visível e muito bem traduzido. Mesmo envergonhado, nosso externo está sempre à mostra.

Mas e o interno? Onde está a nossa pobreza interna? Quando ela se mostra? Sabemos estas respostas, mas as disfarçamos, novamente.

Marketing pessoal disfarçado de trabalho voluntário.

Supérfluos e excessos.

Não sentir a dor do outro, ter mórbido prazer porque o outro sofre.

Ter inveja das conquistas alheias e buscar diminui-las.

Não enxergar a necessidade do outro. Impedi-lo de avançar no seu desenvolvimento.

Apressar o passo do outro num ato de total desigualdade de condições.

A pobreza nos representa, portanto. E vai logo aqui, dentro de nós.

Parece-me que evidências não nos faltam. Talvez o que nos falte seja o diálogo com isto. A conversa franca. Somente quando enfrentamos os fantasmas, eles diminuem de tamanho. Eles têm o tamanho e a dimensão que damos a eles.

Sabemos identificar a pobreza física porque ela está escancarada a nossa frente. Quem apagou as luzes para que nós não víssemos as nossas pobrezas morais? A escuridão é conveniente.

Somos pobres por fora porque a pobreza fez morada em nós.

Somos ricos por fora porque a riqueza encontrou espaço em nosso íntimo. O bom também está presente. Mas precisaríamos dar mais espaço a ele. Ou não?

Somos hipócritas por fora porque a hipocrisia nos alimenta por dentro.

Somos insensíveis por fora porque a insensibilidade nos representa.

A tristeza do outro nos toca porque sabemos o que ela nos diz.

Portanto, se o externo existe é porque o interno foi o seu Mestre. E parece que aprendemos direitinho a lição.

Como não fomos ensinados a iluminar o que vai em nós para que pudéssemos saber quem, verdadeiramente, somos, camuflamos o interno e só queremos mostrar o externo, o melhor de nós, obviamente. Se tivéssemos olhado para dentro de nós desde o começo, talvez houvéssemos percebido a pobreza que mora logo aqui, dentro da gente, há tempos.

Pedir para alguém “andar logo”, naquele contexto e cenário, simboliza a pobreza que vai em nós. Por que demoramos a perceber que o outro não está pronto? Por que insistimos em exigir mais de que o outro pode oferecer, com as atuais condições? Por que levamos anos para conseguir fazer algo, mas do outro esperamos o imediato, no mínimo? Ao aprendermos, nos esquecemos da complexidade do caminho. A arrogância toma conta de nós e exigimos destreza do outro. Esquecemo-nos da complexidade que agora toma conta do caminho dele pelo qual passamos há tão pouco tempo.

A arrogância é um dos elementos que nos favorece à cegueira.

Não há como encontrarmos as respostas sem investigarmos o interno. Sem nos interessarmos por quem nós somos. As respostas nem sempre serão agradáveis, mas necessárias.

Quando exigimos mais do que o outro pode oferecer, estamos minando todas as possibilidades de desenvolvimento dele. Damos ao outro um rótulo que ele não merece: o de incompetente. No entanto, o incompetente é aquele que não vê o outro, que não respeita a condição dele de aprendiz. O alienado.

imagem tirada da internet

A pobreza revela quem somos. Revela a nossa condição de seres inacabados e incompletos.

Os passos mais lentos possuem perspectivas diferentes dos que possuem passos mais rápidos. E se uníssemos estas visões? Qual seria o fruto? Talvez um enxergar além.

Um passo mais lento hoje, um passo mais rápido amanhã. Um passo crescente hoje, para se chegar a uma construção amanhã.

Passos lentos, mas constantes. Isso importa.

Passos apressados, mas insustentáveis. Isto não importa.

Passos lentos porque talvez tenha iniciado agora na estrada. Ou está nela faz tempo.

Passos apressados porque talvez a noção do tempo tenha se perdido.

Passos lentos significam, muitas vezes, respeito ao ritmo que se tem. Passos rápidos não percebem, muitas vezes, os avisos do caminho.

Apressar o outro significa assumir a nossa pobreza interna. Demonstra, ao outro, que o ritmo e o tempo dele não importam para nós. Que a construção dele é irrelevante. Apressar significa interromper a criação da obra que, inacabada, perderá o sentido.

A lentidão faz parte da criação. Não a lentidão que deforma, ineficiente. Mas a que não pula etapas e que vê, no tempo, seu melhor aliado.

É preciso cuidar para não estarmos, apenas, na vida. Mas sim para vivermos a vida.

Quem está apenas na vida, corre e apressa o outro o tempo todo, sem trégua. Não vê a graça do cantar do pássaro que só aquele que reduz o passo conseguirá ver. Respeitar o tempo do outro é compreender o seu processo de construção da vida.

É preciso perceber isto. Nossa responsabilidade está além de fazer aquilo que está ao nosso alcance, mas também em perceber o que já nos é possível diagnosticar, aquilo que já temos condições de fazer, mas que ainda não estamos fazendo.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Padre Lebret, religioso católico do século XIX, nascido na Bretanha, que diz:

“O maior mal do mundo não é a pobreza dos desafortunados, mas a inconsciência dos privilegiados.”

Assim como Padre Lebret que dedicou sua vida à construção de uma civilização mais solidária e humanitária, que possamos ser um local de reflexão para nós mesmos. Uma civilização mais solidária e humanitária apenas se dará no momento que os nossos passos rápidos fizerem eco e sentido para melhorar a vida do outro, e quando os passos mais lentos do outro nos fizerem resgatar a beleza de vivermos a vida e de não, apenas, estarmos nela.

domingo, 29 de outubro de 2017

Vítimas da abundância

Não se trata, exatamente, da pobreza, mas da desvalorização da fartura e da riqueza. Pobreza é a resposta. Fartura é a responsabilidade de fazer mais.

Não se trata da falta de tempo, mas das horas que sofrem a inércia das nossas faltas e das nossas ausências. O tempo sempre está lá. Mas não o enxergamos.

Não se trata da falta de educação, mas da nossa desfaçatez e do nosso descaso em deixarmos este assunto para depois. Um depois que esperamos sentados, acanhados, no final da fila.

Não se trata da depressão, mas da ausência do convívio conosco ao longo do tempo. Há tanto tempo não falamos conosco, que nos esquecemos do som da nossa voz.

Não se trata do conflito, mas da cegueira produzida por nós que nos favorece não enxergar o nosso próximo. Abrir mão de pequenas conquistas para que o longe e o maior sejam alcançados, definitivamente, não está em nossos planos.

Não se trata da infelicidade, mas da autossabotagem praticada por nós, ironicamente, nos nossos momentos felizes.

O sorriso frouxo e sem graça que damos porque estamos nos esquecendo da importância de um sorriso verdadeiro e sincero.  A ferrugem é o destino das ferramentas não usadas.

A abundância que há em nós, mas que há tempos necessita passar por uma ressignificação e ganhar outros sentidos. E assim ampliarmos nossos olhares e enxergarmos espaços não preenchidos que, se merecermos, poderemos ocupar. Mesmo sem percebermos, estamos nos tornando vítimas desta abundância. Quanto mais a temos, mais ela se distancia de nós. Quanto mais a buscamos, mais a desvalorizamos. Quanto mais sabemos da existência dela em nossas vidas, mais a desperdiçamos. Somos vítimas dela porque a criamos, a produzimos. Somos coparticipantes e coautores dela. Participamos e ajudamos a construir algo grandioso, porém não sabemos como usá-lo. Reféns de nós mesmos.

Acendemos as luzes, mas a sala está vazia. Nosso banco está repleto de atletas de potencial que não conseguem expressá-lo em campo. Nossa saúde está em perfeito estado, mas escolhemos a difamação ao exercício. Nossas tristezas sofrem por quererem transmitir os seus recados, mas que são sufocadas por pílulas que prometem fazer o que não podem.

Temos tanto, mas não sabemos o que fazer com tudo isto. Exatamente por termos tudo, sentimos falta de tantas coisas. O que nos falta está escondido em nossos excessos, que, obviamente, não pode ser visto.

Somos vítimas de nossas próprias luzes. Vítimas talvez por termos antecipado o acender das luzes sem um mínimo de preparo. E quando acendemos, não pudemos com tanta luminosidade. Não é porque são luzes que podem ser acesas em sua totalidade. É preciso dosar a intensidade da luz para que possamos enxergá-la e valorizá-la.

O desperdício é a abundância mal trabalhada e mal compreendida. Ele se dá em função dos excessos, do muito de tudo que temos e que, talvez por isto, não valorizamos. Os excessos dizem muito a nosso respeito. Eles denunciam nossas personalidades lotadas e pesadas. Eles clareiam aonde tentamos escurecer. Eles nos desmascaram e nos deixam desconcertados buscando desculpas vexatórias. Afinal, somos um dos países que mais desperdiça alimento no mundo, por exemplo (cerca de 40 mil toneladas por dia – fonte: site terra serviços – julho de 2016).

Porque temos, desperdiçamos. Porque temos, somos abundantes. Mas nem sempre sabemos valorizar esta abundância. Uma abundância que, não valorizada, nos torna vítimas de nós mesmos. Somos vítimas do nosso próprio sucesso que um dia tivemos.

A dificuldade de doarmos até dos nossos excessos é refletida no mundo em que vivemos. Aquele que nada tem poderia viver dos nossos excessos. Mas como esta relação simplesmente não se dá, ou se ocorre, é bem discreta, produzimos mais vítimas além de nós: o nosso próximo. Distribuir nossos excessos seria uma pequena forma de demonstrar que queremos avançar.

Quando o outro se beneficia dos nossos excessos e vice-versa, o mundo começa a acreditar na justiça, a violência dá mostras de um possível recuo e o bem avança timidamente.

No excesso, dizemos que somos melhores do que o outro. Tudo para mim e nada para você. Eu mereço. Você não. O excesso é a prova incontestável de que está faltando algo para alguém, exatamente porque alguém tem em excesso.

O que são os excessos? A abundância mal trabalhada. Simples assim.

Um abraço que não se dá é um excesso de mesquinharia e de avareza.

Comidas estocadas, não consumidas e, consequentemente, estragadas são excessos de egoísmo, porque certamente alguém tem fome, agora.

Palavras duras e ásperas são excessos de intolerância.

O abuso do forte sobre o fraco é o excesso da arrogância e da covardia.

O falso Líder que usa seus liderados para servi-lo é o excesso do egoísmo.

Os excessos mostram a doença.

O culto à felicidade é um excesso que escancara a tristeza escondida, mas que nos envergonhamos de mostrar. O esconder da tristeza é um excesso de fingimento. Por que a tristeza está tão difamada nestes novos tempos? O que há de errado com ela? Por tentarmos escondê-la, ela surge com força nos excessos nossos de cada dia.

É por termos tamanha liberdade, que não conseguimos mantê-la.

Precisamos fazer reflexões para que elas provoquem, em nós, deslocamentos entre as nossas respostas fáceis e aquilo que queremos construir. E isto começa por questionar nossos excessos, nossas abundâncias não valorizadas.

É preciso buscar caminhos com menos senãos e desenvolvermos a nossa capacidade de reflexão e de percepção. Somente assim, acredito, desconstruiremos colocações sem reflexões e que favorecem a alienação. Numa época em que temos menos tolerância, menos paciência e mais urgência, se não refletirmos, provocarmos e pensarmos, nos condenaremos a sermos pouco, a sermos menos, a estarmos aquém. Sem pensamento crítico, nos condenamos ao servir sem propósito.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de José Ortega y Gasset, filósofo do século XIX, que diz:

“Não é a fome, mas, pelo contrário, a abundância, o excesso de energia, que provocam a guerra.”

Precisamos decidir acreditar que somos capazes. Tratar-nos como seres com história, e não como objetos disponíveis e manipuláveis.

Que saibamos enxergar a beleza da abundância em nossas vidas antes de elas se tornarem excessos perniciosos para nós e para o outro. Que saibamos escolher o melhor lado da história, enquanto, ainda, temos tempo e chance para isto.

domingo, 22 de outubro de 2017

A nossa disponibilidade disfarçada

Uma vez presenciei um diálogo que dizia assim:

- “Você viu a lua, ontem? Nossa, estava linda! ”

- “Ando tão ocupado, está tudo tão corrido, que ando de cabeça baixa e nem me lembro de olhar para cima e de ver a lua. ”

Apesar dos exageros que sempre fazem parte dos nossos diálogos (e com este não seria diferente), um fundo de verdade sempre tem naquilo que dizemos e expressamos. Nossas falas, mesmo supervalorizadas, exprimem o que vai em nós, revelam as nossas ausências, crenças, abismos, valores e bastidores. Mesmo que sejam inconscientes.

A tecnologia avança, realiza múltiplas tarefas que até pouco tempo eram realizadas por nós, porém estamos cada vez mais sem tempo. Onde foi parar o tempo que nos sobrou a partir do momento que a tecnologia nos foi apresentada?

O acesso às informações se democratizou. Hoje a informação é de todos, pelo menos de quase todos. Mas por que não avançamos, então, em conhecimento e em discernimento? O que estamos fazendo com tantas informações?

A liberdade que temos para dizer o que pensamos, para construir o que acreditamos, para ser o que queremos. Mas por que, então, estamos cada vez mais sozinhos? Por que somos campeões no consumo de antidepressivos?

Avançamos na longevidade, mas o que estamos fazendo com este tempo a mais?

Orgulhamo-nos de tantos amigos virtuais. Mas onde foram parar os reais? Por que nos custa entender que a quantidade, neste caso, é improdutiva e irreal?

A medicina avançou, mas nunca fomos tão rapidamente diagnosticados por doenças, distúrbios, transtornos, síndromes de todas as ordens. Realmente estamos descobrindo isto tudo porque, de fato, existem, ou estamos transformando a dor em algo proibido de se sentir? E, aí, portanto, a medicalização da dor se torna uma saída estratégica? Atingimos o ápice da arrogância e da prepotência quando dizemos sem tempo para sentirmos dor ou que não queremos sentir dor. Ela é um poderoso instrumento de transformação. Se não queremos senti-la, por que a buscamos? Por que a provocamos?

Encontrar uma causa exterior para o nosso problema pode, num determinado ponto, ser reconfortante. Seria um caminho mais curto optar pelo diagnóstico sem mesmo antes tentarmos buscar, internamente, o significado de tudo aquilo?

Não condeno, absolutamente, o remediar, o diagnosticar, e nem digo que isto está errado. Mas a pergunta que fica é: para quê? Por que isto está acontecendo desta forma? Isto não explicaria nossa falta de disponibilidade para a vida? Na vida? Com a vida?

Refletindo sobre isto, uma palavra chega em minha mente: disponibilidade. Estar disponível. Aquela pessoa não viu a lua simplesmente porque ela não estava disponível para. Simples assim. A lua sempre esteve e sempre estará lá. E, de verdade, para ela será indiferente se a percebermos ou não. No entanto, para nós, a percepção e a contemplação da lua farão enorme e brutal diferença.

Estar disponível é participar da vida, mesmo que estejamos com muitos compromissos. Quais têm sido, portanto, os nossos compromissos?

A sensação que tenho é que, mesmo com tantas facilidades, de todas as ordens, que temos hoje, sempre vamos encontrar uma maneira de preencher os vazios que ficarem. Vazios que deveriam ser respeitados e mantidos. Mas que insistimos em preenchê-los, muitas vezes, com superficialidades e amenidades que nos fazem ter a alienação como uma de nossas irmãs.

Mesmos ocupados, podemos estar disponíveis. Disponíveis para a vida, para nós e para o nosso próximo. Não é possível que não tenhamos tempo para isto. Mas insistimos em acreditar que estar ocupado o tempo inteiro é sinônimo de importância, nos dá uma posição frágil de acreditarmos que somos alguém. Quando dizemos que não temos tempo para olharmos a lua, quem perde com isto? Nós, certamente. E a vida sabe nos cobrar contas bem caras por nossa desfaçatez e descaramento.

Não temos tempo de olharmos a lua, mas gastamos horas verificando quantos viram nossa última postagem. Não temos tempo de ligarmos para um amigo de verdade, mas aceitamos convites virtuais de ilustres desconhecidos que nem sabem quem somos. Não temos tempo para lermos um livro, mas navegamos horas preciosas em postagens sem sentido. Uma constatação nossa de cada dia. Uma realidade construída por nós.

A disponibilidade passa pelas escolhas que fazemos. Temos mais facilidades, mas encurtamos a nossa ideia de felicidade, de normalidade, de individualidade, de amizade. Buscamos o intangível, o inacessível, a completude e a felicidade plena. Não há esta completude. Simplesmente ela não existe. Então por que a buscamos? Sentimos vergonha por não atingirmos esta completude. Deprimimos. Ficamos com a sensação e com a percepção de insuficiência. E aí enchemos, novamente, nossas agendas e nos orgulhamos de estarmos o tempo todo ocupados, muitas vezes, do nada, do vazio e do improducente.

Esta busca incessante nos torna inacessíveis e indisponíveis. Dedicamos tempo, muitas vezes, à realização do incoerente em detrimento do que é possível fazer.

Os virtuais nos leem, mas muitas vezes alguns curtem em segundos um texto que levaria minutos para ser lido. Ou seja, não leram. A questão não é o virtual, a tecnologia, o externo. Mas sim a falta de equilíbrio e o tamanho das necessidades que depositamos nisto tudo. Necessidade de nos esconder, de sermos agressivos, de não nos colocar, de não interagirmos. E isto tudo é reflexo da falta de disponibilidade para e com a vida.

É preciso nos ocuparmos do que produz, do que impulsiona, do que constrói. Ou seja, estarmos disponíveis e enxergarmos o que precisa. Renunciar a desejos inatingíveis e ter a maturidade de assumir isto e as consequências de nossas renúncias. Abrir mão de privilégios que pouco ou nada fizemos para merecê-los. Comungar com a dor e com a alegria. Não podemos ter a ilusão de que somente alegrias teremos. As dores são necessárias para que as alegrias sejam vistas e reconhecidas. Isto não significa ir ao encontro das dores, mas sim não medicalizá-las e camuflá-las. Isto seria como negar uma parte de nós. Somos seres comuns cuja dor, assim como a alegria, constituem a nossa existência.

A dor e a alegria trazem contornos, unidades para a construção da nossa imagem. Dá-nos a sensação e a percepção de, finalmente, existirmos. Isto é estar disponível para a vida.

O sociólogo Alain Ehrenberg diz que “esta sociedade (a nossa) que valoriza o ato e o individualismo produz todas as patologias que temos. ” E a falta de disponibilidade é uma de nossas patologias.

Deixamos de enxergar o outro porque não nos enxergarmos mais em nossos próprios espelhos ou se nos enxergamos, difícil está nos reconhecermos.

Estar disponível é olhar o próximo e dar a ele um suporte. Ser testemunha de que ele existe. Devolver a ele a oportunidade de buscar a essência perdida. Silenciar ao lado de quem precisa. Entender a dor do outro sem precisar que ele diga. Dedicar-se. Ler as necessidades dele antes que ele diga. Apoiá-lo por meio do olhar e tornar-se presente na vida dele. Devolver-nos para o outro em forma de uma escuta ativa, atuante e que não finge que ouve enquanto digita um texto num e-mail cujo assunto é sem importância.

Não estamos interessados no problema do outro. Mas disfarçamos. Nem na felicidade do outro. Mas disfarçamos. E vice-versa. Por isto estamos tão sós e ao mesmo tempo tão cheios de nós mesmos. A construção é coletiva. Mas insistimos no individualismo. E depois, quando a conta chega (já chegou), fingimos que o porteiro não a colocou sobre o capacho.

Para isso, é preciso ampliar a nossa linguagem de afeto para o próximo. Educar as nossas reações, os nossos olhares, as nossas palavras e assim, melhorarmos as nossas respostas ao outro. A verdadeira disponibilidade passa por estes três componentes essenciais à vida. E assim, criamos outras narrativas para as nossas vidas e para a vida do outro, que, até então, estavam desconexas. E isto começa dentro de nós.

Admitir a nossa falta de disponibilidade é humilhante. Faz-nos relembrar a nossa pequenez e o nosso tamanho, que, desconfio, esquecemos por conveniências. Ao mesmo tempo, explicitarmos isto, nos recoloca na condição de humanos, portanto, imperfeitos. Assumirmos nossa condição de amadores e de eterno aprendiz, como diz a música, revela que uma mudança é sempre bem-vinda, que queremos mais. Esta inquietação é fruto de um modelo que não queremos mais. E isto é positivo.

A nossa falta de disponibilidade para a vida está nos fazendo perder de vista os caminhos que já tínhamos trilhado. Precisamos prestar atenção às conquistas que estão sendo deixadas pelo caminho. Darmos atenção a nossa individualidade e enxergar o próximo como um igual. Caso contrário, seguiremos na construção de nossas violências não percebidas, porém sentidas. Em nossas disponibilidades disfarçadas.

Desconfio que ser feliz é algo bem mais simples do que imaginamos. Mas como complicamos, nunca conseguimos enxergar a simplicidade deste caminho. A felicidade está a nossa espera. Mas para ser encontrada, o único caminho é a simplicidade.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Paulo Freire, um Educador revolucionário, que diz:

“É preciso diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, até que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática. ”

Alimentamos uma fala bonita, disponível, mas não praticada. A nossa disponibilidade, que está disfarçada de educação, muitas vezes é somente conveniência e não convicção. Quando estivermos disponíveis para o outro e quando o outro estiver disponível para nós, as falas não serão mais necessárias porque nossas atitudes e as do outro ocuparão todos os espaços.

sábado, 7 de outubro de 2017

A vaidade vaidosa

Talvez seja este o problema: somos vaidosos. Sempre. Mesmo aquele que nega ser vaidoso, no fundo, é também. Certo é que uns são mais que outros. Mas somos todos vaidosos. Por causa disto, a discrição ocupa um lugar que não chama a atenção, em nossas vidas. Um lugar pequeno, simples, calado, quieto e ponderado. Apenas quando a vaidade começa a dar sinais de cansaço e de vontade de recolhimento, a discrição avança e nos preenche com o seu imenso conteúdo. Ou também quando a vaidade é pega desprevenida e de calças-curtas. Neste momento, a discrição tem nova chance de surgir e de ocupar espaços tão ociosamente mantidos pela vaidade.

A vaidade sempre nos convida à exposição de nós mesmos. E os momentos nos quais estamos menos prontos são os preferidos dela. Assim, imaturos e inacabados, mas vaidosos, nos tornamos presas fáceis de nós mesmos ou daqueles que nos espreitam. A nossa vaidade cria condições para nossas próprias prisões. Ela nunca está a nosso favor. Expor-se por pura vaidade é dar voz à alienação. É abrir mão dos entornos e dos contextos que nos contextualizam para olhar apenas para nós e para as nossas pequenas grandes obras.

A vaidade nos preenche de nadas e de coisas desprezíveis. Coloca confetes em nossas cabeças cujo merecimento é indevido. Ela, em si, é oca, vazia e ociosa. Sem significado, ocupa espaços aleatórios e provoca movimentos que criam desequilíbrios. Por que isto nos alimenta? Talvez porque nos mostrar seja uma possível saída para nossas dores sem cura. A sociedade nos convida e nos instiga, o tempo todo, à exposição. Mas, quem é esta sociedade que não nós mesmos? Por que aceitamos tão facilmente estes convites? É preciso ressignificar nossas bases de valores e de aprendizados para alcançarmos outros conceitos e consequências.

A vaidade diverge do orgulho que sentimos por nós, pela obra que realizamos, com intenção e propósitos claros, que significa um passo que contribui para a construção do passo do outro e que traz significado de valor para nossas vidas. É preciso abrir mão de privilégios. E isto implica exercer a educação da nossa vaidade. Por que ainda estamos distantes disto? Talvez porque o orgulho de si seja pequeno demais para dar conta do nosso imenso tamanho. Achamo-nos tão grandes. Por isto, temos dificuldades de cabermos em nossos próprios tamanhos.

De onde vem esta ânsia pela visibilidade? Obviamente isto tem sido reforçado por meio das redes sociais. Mas, há mais coisas no mundo além das redes sociais. Ou não?

O vaidoso se vangloria o tempo todo do supérfluo, do desnecessário, do efêmero. Não enxerga a essência exatamente pela vaidade estar inundada na superficialidade, no que não interessa. É uma pessoa presa às regras criadas em contextos que já não existem mais. O vaidoso difere daquele que sente orgulho de si mesmo, de ser quem é.

O vaidoso é um manipulável, uma porta aberta para o deslize, para o abismo, para o desleixo. Busca o poder, a fama, o estatus, o palco. Seus valores estão na efemeridade e não na sustentabilidade. Busca a autopromoção porque se desespera ao perceber que os outros são incapazes de fazê-lo.  É uma pessoa cujo projeto próprio de vida é inexistente. Frágil e facilmente levado a obedecer aos interesses de terceiros.

A vaidade diverge da liberdade e da individualidade.

Aquele que é, verdadeiramente livre, é aquele com menos necessidades. E o vaidoso é uma pessoa cheia de necessidades.

Aquele que possui uma individualidade límpida e sem bastidores manchados é aquele que floresce. Há passos longos até lá. Mas o caminho é possível.

Sentirmo-nos orgulhosos de nós mesmos e de algo que realizamos é saudável e necessário como sustentação de nossa caminhada. Mas, nos envaidecermos é chamar a atenção para nós e, mais, é atribuirmos a nós um tamanho que ainda demoraremos a atingir. É preciso, portanto, valorizar, sim, as nossas conquistas, os nossos passos e a nossa jornada, mas como subprodutos para uma construção maior. Os nossos passos e as nossas conquistas devem servir como etapas para realizações maiores e expressivas. Isto é orgulhar-se de si. Quando conseguimos, de verdade, enxergar que os nossos grandes passos construirão os passos dos outros e vice-versa, o orgulho que sentiremos de nós mesmos começará a fazer sentido. Ao passo que a vaidade não empresta os seus louros para ajudar a construir os passos dos outros. Ela se encerra. Ela se basta. Ela nela mesma. E, portanto, nos induz ao erro.

Expor-se é fazer parte da vida. Não há como viver sem se expor. Porém, com critério, propósito e intenção, três pilares fundamentais e sustentáveis para que o objetivo avance e a construção seja realizada em bases sólidas.

Machado de Assis diz que “a vaidade é um princípio de corrupção. ” Quando nos corrompemos, portanto, a nossa vaidade é quem está sendo atendida, servida e alimentada.

imagem tirada da internet

A vaidade sempre esteve presente. Quando desmedida, nos faz adoecer e nos traz sofrimento. No entanto, o sofrimento nos mantém acordados. Há outros caminhos antes de sofrermos, mas me parece que este tem sido a nossa escolha. Não em todos os momentos, mas a prevalência, sim.

Importante aceitar que somos esta mistura de coisas boas e de coisas desprezíveis. Censurar a existência da vaidade em nós é abrir mão da percepção. Toda censura é uma luta contra a percepção. E quando não percebemos, não mudamos. Conveniente, não?

Como a vaidade nos integra, o melhor que fazemos é acolhê-la. Acredito que somente por meio do acolhimento, o entendimento é possível. E assim, vamos descobrir o que a vaidade quer de nós, o que ela busca, o que ela nos diz. Ouvir a voz dela é estabelecer um processo de escuta conosco, imprescindível se quisermos alcançar visões elaboradas sobre a vida.

Quando nos escutamos, automaticamente escutamos e percebemos o outro. Nossa identidade começa a passar por reformulações e nos enxergar passa a ser constante. Nossas lacunas vão sendo preenchidas pelos nossos avanços e pelos frutos dos nossos bastidores descortinados. A vaidade é uma das nossas fragilidades. É preciso coragem para lidar com elas, portanto.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com duas provocações de autores fundamentais de nossa literatura.

A primeira é de Tolstói, escritor russo do século XIX, que diz:

“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia. ”

Que nossas aldeias internas sejam valorizadas por nós, que tanto nos dizem, mas que não as ouvimos. Se as ouvíssemos, nossa universalidade já teria sido alcançada. Há muito por fazer dentro de nossas casas, em nossas aldeias interiores. E o trabalho está apenas começando.

Pintar as nossas aldeias trará uma nova experiência de um olhar novo para nós mesmos. Um retorno para nossa aldeia, um lugar que sempre foi nosso. Por excesso de exposição e de vaidades desmedidas, nossas aldeias ficaram apagadas no escuro. Mas as tintas que usaremos na nossa pintura retomarão as luzes que, uma vez acesas, de verdade, nunca mais se apagarão.

E a segunda é de Balzac, escritor francês do século XVIII, que diz:

“Deve-se deixar a vaidade aos que não têm outra coisa para exibir. ”

Que possamos enxergar o que há de nobre em nós e mostrá-lo ao mundo como tentativa de construirmos algo sólido. Se conseguirmos, teremos deixado de viver e de presenciar tentativas disfarçadas de afastar o outro das possibilidades as quais ele tem direito, porque isto é pura vaidade. Ela, a partir deste dia, não fará mais sentido para nós.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A Compaixão que não habita em nós

Recentemente, uma amiga foi demitida. O até então gestor dela, após as formalidades resolvidas, designou uma pessoa da área para acompanhá-la até o ambulatório, aonde seria realizado o exame de desligamento. Durante o trajeto até lá, a minha amiga caminhava em silêncio. A situação pedia silêncio. Isto para falar o mínimo. No entanto, a outra pessoa que a acompanhava, começou a falar que estava muito feliz porque iria entrar em férias e viajaria para lugares maravilhosos. Começou a contar, inclusive, todos os passeios que estavam programados para esta viagem. Minha amiga continuou recolhida em seu silêncio. Esperava contar com um pouco de bom senso, mas que não veio. A pessoa continuou a desenrolar a esteira dela de absurdos, de conquistas frágeis e de valores banais.

Após a passagem pelas catracas, a minha amiga entregou o crachá, um símbolo de pertencimento para muitos, e tomou o caminho de volta para casa.

Independentemente das injustiças cometidas a ela no campo profissional, o que busco chamar a atenção, por meio deste texto, é para ausências presentes em nossas vidas: e a compaixão é uma destas ausências. Um artigo de luxo e para poucos.

Dalai Lama diz que há dois tipos de compaixão: a biológica, aquela que existe dentro de cada um de nós, mesmo sem a exercitarmos; e a compaixão adquirida por meio do treinamento, do olhar, do abrir mão de privilégios em benefício do outro.

O primeiro tipo de compaixão não há o que dizer: é biológico e pronto. Está ali, mas isto não quer dizer que irá se manifestar. É puramente biológico. É a compaixão de uma mãe em relação ao filho, por exemplo. É natural e tendencioso que a mãe tenha compaixão pelo filho. No entanto, o segundo tipo, é bem diferente. Não é tendencioso e faz o convite para irmos além das fronteiras do grau de parentesco, laços de sangue e de amizade. O segundo exemplo, se atingido, é quando vamos além. É quando conseguimos ter a compaixão pelo próximo, independentemente de quem ele seja. E acredito que esteja aí uma das mais difíceis provas para nós: ter a compaixão pelo próximo simplesmente por ele ser o nosso próximo. Um próximo que não nos dará algo em troca, um simples desconhecido. Mas que sem ele (eles) talvez não existíssemos.

Ter compaixão é saber e querer compartilhar o sofrimento do outro. É, junto dele, sofrer também, simplesmente pelo fato de sabermos que ele sofre. Isso não significa abrirmos mão da nossa felicidade e não a buscar mais. Muito menos nos sentir culpados por estarmos bem, por exemplo. Significa, apenas, respeitar a dor do outro e, dentro das possibilidades e capacidades de cada um de nós, melhorar a situação dele por meio do nosso olhar, da nossa ajuda, da nossa mão. A compaixão não tripudia, não ri, não menospreza, não desdenha, não ironiza, não ignora a dor alheia. Ela é um sentimento nobre que caminha à frente. E para aqueles cuja presença da compaixão é uma realidade, certamente são pessoas que enxergam uma beleza na vida que a maioria ainda, infelizmente, desconhece.

O silêncio é uma forma de compaixão. A palavra certa, dita no momento certo, e com a intensidade certa é outra forma de compaixão. O abrir mão de privilégios é uma forma de compaixão. Aliviar a dor do outro é uma forma de compaixão.

A segunda forma de compaixão, como trouxe Dalai Lama, precisa ser ensinada. E isto começa cedo, bem cedo. Para aqueles que não tiveram esta sorte de aprendizado, contar vantagens sobre viagens inexpressivas e conquistas estéreis faz parte dos discursos empobrecidos deles que acreditam, infelizmente, que o mundo deve a eles uma atenção que não merecem.

É preciso, muitas vezes, silenciar a nossa voz para dar voz ao outro. Isto é compaixão. Precisamos nos incomodar de não percebermos as sutilezas que a vida nos oferece. E aquela pessoa, contando sobre uma viagem, num momento tão difícil e crítico para o outro, não foi capaz de perceber esta sutileza.

Podemos chamar isto de egoísmo? Sim. Podemos chamar isto de falta de senso de equipe? Sim, também. Mas tudo isto são apenas consequências. O fato é que se não aprendermos e se não tivermos referências, pouco ou nada avançaremos. Preciso é acabarmos com as distâncias que há dentro de nós, para depois buscarmos nos aproximar do nosso próximo. Como disse o escritor, “é preciso descobrir, em nós, matéria-prima para construirmos novos tempos. ”

Devemos tomar o cuidado para não passarmos pela vida sem vivê-la. E não desenvolver este segundo tipo de compaixão é abrir mão de boa parte da vida.

O vídeo abaixo nos convida à reflexão. Uma excelente oportunidade para repensarmos as nossas formas de atuação no mundo.


vídeo tirado da internet

Enfim, algo tão simples de se fazer, mas ao mesmo tempo, tão distante de nós exatamente por não enxergarmos esta simplicidade. Simplicidade tão necessária para que possamos sair de nossos carnavais, de nossos privilégios, e irmos ao encontro dos nossos interiores, de nossos ossos, de nossos bastidores. Acredito que somente desta forma o outro será visto por nós e nós por eles. Seremos os primeiros beneficiados se buscarmos esta compaixão que não habita em nós. E se habita, há muito está escondida no fundo do armário.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Friedrich Schiller, poeta alemão do século XVIII, que diz:

“Todas as almas nobres têm como ponto comum a compaixão. ”

Que possamos ser nobres como aquelas crianças africanas do vídeo, que muito têm a nos ensinar. Apesar da pouca idade, já caminham à frente porque compreenderam o real sentido da vida. Quando a competição for transformada em cooperação, e quando enxergarmos que dividir os doces com todos traz mais alegria que comê-los sozinhos, teremos despertado, dentro de nós, o segundo tipo de compaixão: a que vai além de nós, a que vê o outro como parte da gente, parte de todos nós.

Ubuntu!

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

A visita dos fantasmas

Recentemente, num noticiário de televisão, ouvi a seguinte expressão: “os fantasmas saindo dos armários”, referindo-se às velhas notícias que vão e que voltam sem a mínima cerimônia. Dia sim, dia não, as mesmas falas, os mesmos problemas, inclusive com as mesmas pontuações, os mesmos desrespeitos, as mesmas infrações, os mesmos retrocessos. Damos vinte passos, mas voltamos vinte e três. E estes três passos de diferença dizem alguma coisa. A questão é ouvi-los e saber identificar o que dizem.

imagem tirada da internet

Fantasmas existem por toda parte. Integram a vida humana. Nossos medos são fantasmas. Nossas inseguranças são fantasmas. Nossas incertezas são fantasmas. Nossas insatisfações são fantasmas. Nós somos os nossos fantasmas, que nada mais são do que as nossas representações passadas, aquilo que deixamos inacabado, e futuras, aquilo que queremos fazer, por exemplo, mas que achamos que não vamos conseguir. Estamos sempre num passado ou num futuro e raramente no presente.

Num passado, com nossas obras inacabadas, os nossos fantasmas fantasiam-se de culpa, remorsos. Um pedido de desculpas que ficou para depois se tornou tão mais para depois que até os fantasmas não se ocupam mais dele. E quando nos damos conta, mais uma obra inacabada. Para retomá-la, a relação das complicações e dos entraves que precisa ser trabalhada para que a obra seja concluída fica imensa. Mais fácil será, então, ceder ao pedido dos fantasmas e deixar nossas obras inacabadas neste mesmo passado, servindo de alimento para eles. É preciso lembrar que somos seres que complicamos as coisas.

Um passado incompleto de obras iniciadas por nós. Um passado de fantasmas alimentados por nós. Fantasmas que não precisariam existir se não fosse a nossa capacidade de criá-los enquanto deixávamos de viver. Esta incompletude causada por nossas obras inacabadas nos perturba. E como temos dificuldades de lidarmos com os nossos vazios e incompletudes, criamos mais fantasmas. E assim, vão se procriando e criando autonomia dentro da gente.

Num futuro, com aquilo que queremos fazer mas que teimamos dizer que não conseguimos. Os fantasmas também se acomodam aí. Sempre estamos à espera de um fato novo para começarmos, mas nunca começamos. Os fantasmas adoram as nossas incertezas.  Enquanto nos enrolamos nelas, eles crescem na certeza de nos controlarem e de nos ditarem o caminho que deveria ser construído por nós, somente por nós. Num futuro, com as chamadas “um dia eu faço”. Os fantasmas adoram este tal de “um dia”, porque se trata de algo que nunca chegará. Um dia será sempre o próximo, e nunca o hoje. É preciso lembrar que a procrastinação é o ingrediente principal das atitudes dos fantasmas. Sem ela, eles não existiriam. E assim, vão se fortalecendo e conquistando territórios dentro da gente.

Nossos passados e nossos futuros são nossas representações do que acreditamos, do que pensamos e do que esperamos. Imprescindível incluir o presente nestas nossas representações. Somente ele dará conta de esvaziar os armários cheios de fantasmas e o principal: não deixará mais que eles se acomodem lá ou em qualquer outro lugar. Os fantasmas sabem disto e podem traçar estratégias. Mas é preciso ser mais fortes que eles.

Os fantasmas não são ruins, mas nos atrapalham um bocado. Ensinam-nos muito, mas às custas de sofrimento e de dores que poderiam ser evitadas se visitássemos mais os nossos armários. Geralmente os fantasmas ocupam muito espaço. E nossos armários estão cheios deles. São silenciosos. Por isso, a presença deles não nos importa tanto. Vamos mantendo uma convivência pacífica. Sabemos que eles estão lá porque de vez em quando dão o ar da graça e surgem se avolumando e reclamando soluções. Mas em instantes, empurramos todos eles para dentro do armário, novamente, e a rotina volta mansamente.

A rotina é uma excelente saída para camuflar o que teima em surgir. Ela dá voz à ignorância. O ar de normalidade que a rotina demonstra, camufla operários noturnos.

Sufocá-los significa, muitas vezes, dizer que estão certos, só não queremos ouvi-los. Eles são fortalecidos por meio de nossa conduta. Na maior parte das vezes, ficam quietos dentro do armário. Mas, de tempos em tempos, ouvimos batidas. São eles pedindo para saírem. E como não deixamos, eles abrem a porta independentemente de nossa vontade. Afinal, instalamos uma fechadura pelo lado de dentro, mas havíamos nos esquecido. E quando eles saem, o melhor que fazemos é ouvi-los, acolhermos as  reclamações deles e buscarmos, juntos, a melhor solução que deve ser, acredito, ir até lá embaixo, no fundo, aonde o fantasma adora se esconder. E de lá, trazê-lo à superfície, mesmo sendo um lugar desconfortável para ele. E nesse lugar, o fantasma, ainda assustado, se mostrará para nós, sedento da luz que somente nós poderemos dar a ele.

Quando agimos isoladamente, somos ineficientes. Quando agimos em conjunto, damos vazão à inteligência para que nos tornemos seres verdadeiramente sustentáveis.

A luz que somente nós possuímos será capaz de transformar o fantasma em vida. Uma doação nossa para ele. O reflexo de quem somos mostrado pela face do fantasma. Uma doação dele para nós. Eles existem para comprovarem a nossa incompletude, para atestarem que os nossos bastidores são, muitas vezes, desconhecidos de nós mesmos. Nossas curvas, esquinas e lombadas são testadas e mostradas por eles, que sempre se escondem e dormem em nossos territórios inexplorados e pouco investigados, por nossa própria decisão.

Ir até o fundo de nós para resgatá-los é provar as nossas forças não usadas, mas disponíveis. Forças não usadas são forças extintas. Forças usadas são forças renovadas.

O olhar atento daquele que passa percebe fantasmas em nosso ser. Percebemos os fantasmas nos outros. Também o riso previamente preparado e direcionado esconde fantasmas. A fala pronta esconde fantasmas. O choro revela fantasmas. O cansaço provoca fantasmas. O medo cria fantasmas. A vaidade e o palco excessivos escondem inúmeros fantasmas. A verdade é que eles não mentem e se mostram através de nós. O que eles refletem, portanto, é o nosso próprio eco, nossa própria voz. Nosso eu escondido e solitário.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Gilbert Keith, escritor inglês do século XIX, que diz:

“A razão porque os fantasmas abandonaram os velhos castelos da Escócia é porque as pessoas deixaram de acreditar neles.”

Que a gente faça as pazes com os nossos fantasmas e os liberte. Fazendo as pazes com eles, os nossos armários estarão limpos e arejados guardando o que, de verdade, importa. E mesmo que insistam em voltar, que seja apenas para um breve chá conosco, numa rápida visita, para nos lembrar de nossas fortalezas que não podem ser esquecidas.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Disfarces

Sempre que queremos dar outra aparência ou identidade a algo, disfarçamos. O artista que muda a voz e a vestimenta para dar vida ao personagem; a fantasia de carnaval que canta na avenida; a criança que se veste como o super-herói; a blusa mais larguinha para disfarçar os excessos; a tinta nos cabelos para disfarçar os brancos; o sono inexistente para não se levantar do banco do metrô. Disfarces. Disfarces. Disfarces: uma poderosa ferramenta de condução da vida. Por meio dele, vamos moldando as coisas e situações a nossa maneira e, principalmente, vamos direcionando o objeto de nossos disfarces (coisas ou pessoas) para aquilo que buscamos e queremos.

Acredito que há dois tipos de disfarces: os inofensivos e os abusivos. Apesar de os dois carregarem uma intenção, o primeiro tem, como base, a manutenção da boa relação, o evitar de um conflito, o diálogo e a preocupação com o bem-estar do outro. São disfarces cuja intenção está no não brigar, no contornar uma situação aflitiva e problemática. Afinal, quem nunca disfarçou uma contrariedade em nome de algo maior? Quem nunca disfarçou uma tristeza apenas para não precisar dar explicações? Quem nunca disfarçou um “bom dia”, no trabalho, quando se quis ficar calado, apenas para não passar uma imagem de mal-educado?  São diversos os exemplos. O todo e o sentir de todos fazem a diferença aqui.

O segundo tem, como base, a manipulação, a arbitrariedade, a ausência do outro, o monólogo. São disfarces cuja intenção é levar o outro para um caminho que foi desenhado apenas pelo manipulador. Um caminho que serve apenas aos interesses dele, porque este é o tipo de ferramenta que ele utiliza para viver. O interesse do outro não importa. O individual e o exclusivo fazem a diferença aqui.

O caráter de um homem se mostra nas escolhas e nos contornos que ele faz. Contornos que disfarçam para que o bem prevaleça.

As manipulações se mostram nas entrelinhas dos disfarces. Elas também evidenciam o caráter de um homem cuja intenção é a de camuflar a sua perniciosa essência.

Todo disfarce carrega uma intenção. Resta-nos saber qual e decidir se continuaremos a alimentá-la.

imagem tirada da internet

O choro preso disfarçado pelo esboço de um sorriso.

A conversa tensa disfarçada pelo desvio do tema.

A doença crítica disfarçada pela teimosia da esperança.

A fome disfarçada pelo prato que chega com comida.

A rudeza de um diálogo disfarçado pela compreensão e pela tolerância.

A ignorância do ato disfarçado pelo saber que ainda não se conquistou.

A solidão disfarçada pela companhia de um bom livro.

A tristeza do palhaço disfarçada pelo nariz engraçado e pelo chapéu desengonçado.

A dificuldade motora do outro disfarçada pela convivência comum, sem alertas para isto.

A falta de habilidade de alguém disfarçada por chamar a atenção para os talentos.

Disfarçamos para que a vida siga. Para que ela flua. Abrimos mão de nossas posturas rígidas e inflexíveis para que o outro possa participar desta conversa também. Os disfarces para o bem nos conduzem com leveza pela vida. Eles não se escondem, apenas cedem o seu lugar àquele que, verdadeiramente, precisa.

O assédio moral que se esconde num falso feedback assertivo.

A compra e a venda de pessoas que se esconde na bonita fala “manobra política”.

A falta de vergonha que se disfarça na falta de quórum.

O marketing pessoal que se disfarça num medíocre “voluntariado”.

A injustiça que se disfarça na falsa meritocracia.

A gambiarra que está disfarçada no ajuste técnico.

A inveja que se disfarça no pequeno pensamento “não queria mesmo”.

A fila dupla que se disfarça no ligar do pisca-alerta.

O avançar do sinal disfarçado no famoso “está tranquilo, não há pessoas passando”.

Disfarçamos para que a vida siga somente a nosso favor, para que a vida sirva aos nossos interesses. Eu posso. Você não pode. Nós talvez possamos desde que os meus interesses prevaleçam. Estes disfarces se escondem porque se envergonham de se mostrarem. São fracos demais para mostrarem as suas faces marcadas. Mas a insistência da luz, cujo disfarce não é possível, evidenciará esses bastidores.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Voltaire, escritor francês do século XVII, que diz:

“A guerra é o maior dos crimes, mas não existe agressor que não disfarce o seu crime com pretexto de justiça. ”

Que possamos ter pretextos mais nobres, a cada dia mais. Que nossos disfarces continuem a existir, mas como sinônimos de abertura de caminho para que o outro também possa fazer parte. E quando o outro fizer parte, de verdade, todas as formas de guerras terão ficado para trás. Teremos alcançado o real significado da palavra Justiça, e sem disfarces.