Para este texto, parto de uma fala
popular que diz: “vista a camisa”.
Sobre qual camisa falamos?
Falas nascem da construção de um
viver, seja esse viver solitário ou em comunidade. Elas refletem uma história,
uma cultura nascida e criada com a anuência de muitos ou de pouco mais de meia
dúzia, não importa. O que importa é que estas falam nascem. E se nascem, é
porque há solo fértil para tal.
Vestir a camisa, no
sentido figurado desta expressão, significa estar presente no território
alheio, ser parceiro, assumir problemas, comprar e resolver conflitos, lutar
por uma causa, não medir esforços para ajudar, dizer o que precisa ser dito
etc. Qual o problema, então? Nenhum, desde que a camisa seja a minha, e não a sua.
A nossa, e não a do outro. Quando visto a camisa do outro, raramente, ela me
servirá sem que haja a necessidade de ajustes, arremates, troca de botões,
encurtamento das mangas, reparo na gola, remendo na barra.
Não se trata de cuidar somente do meu
quintal em detrimento do seu, mas de entender que o meu quintal, se não
tiver cuidados e atenção, não poderá fazer efetivas contribuições com o seu
quintal. Não se trata de um egoísmo de prevalência do meu, mas de abandonar a
hipocrisia e o desserviço que constroem uma robusta ausência de mim para
preencher o outro. Não se trata de não juntar forças em prol de uma casa
coletiva, mas de me enxergar único dentro do todo no qual faço parte. Não se
trata de não fazer o melhor que eu puder em prol do conjunto, mas de abrir mão
desta inatualidade de me colocar à margem. Não se trata de ter excesso de
generosidade em relação a mim, em prejuízo ao outro, mas de me enxergar com uma
fisionomia nítida de uma pessoa que participa.
É imperativo juntar forças, fazer,
realizar e contribuir. É genuíno construir parcerias. É imprescindível saber
que se pode contar com o outro. Contudo, vestido com a minha camisa. E você,
com a sua camisa. Se estou vestido com a sua camisa, a doação poderá até
ocorrer, mas será manca, incompleta, perecível, insustentável. Se você está
vestido com a minha camisa, assim será até quando? Talvez até a inauguração de
nova loja, na rua, cujas promoções começaram ontem.
Como vestir algo cujo corte não foi
criação minha? Como vestir algo cuja autoria não possui o meu nome? Vestir a
sua camisa significa tirar a minha. Ou ficarei vestida com duas camisas
sobrepostas? Os provadores ficarão cheios de nós, que, a essa altura, estarão
entulhados e encalorados com excessos de camisas.
É preciso cuidar para que falas
populares não se tornem vazias de significação. Vestir a camisa
tornou-se uma fala pronta, cuja reflexão se perdeu, se é que um dia ela
aconteceu. Falas populares reforçam lugares-comuns que
ocupam espaços que deveriam ser preenchidos por ocupantes mais dignos e nobres.
Vestir a camisa que não nos pertence
cria uma ausência de um habitar e de uma adaptação, em nós. E sem estarmos
adaptados e habitados, em nós, nos perdemos de vista em função das inutilidades
que nos ocupam. Vestir a camisa é uma forma de mecanizar a vida, torná-la
servil, sem coragem para questionamentos. De tanto vestirmos a camisa alheia,
não reconheceremos mais o nosso alfaiate, nem tampouco a nossa costureira,
sabedores bem de nossas medidas, gostos e falhas da nossa natureza corporal.
“Preciso subir mais um dedo”, me disse, certa vez, a costureira, fazendo a
barra da minha calça, “você é baixinha, e a barra está arrastando no chão.”
Vestida, se eu estivesse com a camisa alheia, como reconhecer as mangas longas
e desformes, em mim? Falhas da educação que recebemos evidenciam, e que
perpetuamos, estes hiatos. Fomos educados para a aparência do externo, para nos
ocuparmos do que vai lá, e não do que está aqui.
Vestir a camisa alheia cria impasses:
como volto para mim? Como reencontro aquilo que excluí, em mim? Minhas bagagens
perdidas num aeroporto lotado de desconhecidos iludidos, vestidos com suas camisas
desbotadas. A cor da minha camisa é única. A minha camisa é intransferível.
E é, justamente, por estas duas principais características (cor única e
identidade intransferível) que conseguirei reencontrar a disposição para
ajudar, contribuir, juntar forças etc. Cada qual com o seu guarda-roupas. O
meu. O seu. Todos presentes. Mas eu daqui. Você daí. Vestir a camisa alheia cria
muitos sofrimentos: não me reconheço mais porque minhas medidas se perderam.
Estamos perdidos, há tempos, em
discussões inúteis, exatamente, por acreditarmos em desserviços como vestir a
camisa do outro, da empresa, de uma causa etc. Por isso, não avançamos. Como
posso avançar descalço? Como posso querer vestir peças que não me pertencem?
Como posso viver alheia a mim? Como posso alienar o meu corpo para que outra
peça me caiba? Nossa grande demanda é a emocional. Somos andarilhos batendo em
portas alheias que não nos ouvem. Mas por que não consertamos a nossa porta e
adentramos? Nossa casa é o que há, em nós. Lá, não há fachadas, serventias
inúteis e convencionais. Há, há tempos, roupas mofadas a espera de uso e de
limpeza.
Não somos renováveis. Portanto, que as
nossas camisas sejam utilizadas. Precisamos continuar a nós próprios. Sofremos
uma carência de continuidade. Não é preciso tantas transformações, mas
continuidade, em nós. Por que paramos para servir? Por que interrompemos os
questionamentos? Por que os espelhos estão cobertos? Por que as margens nos
confortam? Por que a camisa do outro cabe, forçosamente, em mim? Por que meus
cabides vão vestidos de esquecimentos?
Vestir a camisa foi a proposta de
reflexão deste texto. Toda e qualquer divergência de opinião em relação a
minha, antecipo meu respeito. Mas penso ser urgente romper com o pronto. Há
ambientes corporativos cuja pregação “vestir a camisa” é quase um mantra. E o
resultado quase sempre tem sido a doença, a desagregação, a anulação da
identidade, a dor, o constrangimento, o cinismo, a hostilidade. Não há nada
mais desestabilizador que convidar o outro a não ser ele, só que de forma
discreta e disfarçada.
Nossa cura se dá na relação com o que
é meu versus o que é do outro. Não vejo forma de cura sem a consideração
do meu espaço, das minhas dores, das minhas feridas, das minhas ânsias, das
minhas carências, dos meus progressos, dos meus avanços, das minhas fendas. Não
vejo forma de cura sem aceitarmos que, ainda na nossa forma de ser, o pronome
possessivo meu/minha é parte integrante. Se insistirmos no despropósito da
anulação do meu por meio da vestimenta da camisa do outro, continuaremos
monstros, caminhando vagos, pelas estradas erradas que construímos.
Caminhando para uma conclusão desta
reflexão, penso que respeitar a camisa do outro e mais, permitir que ele a
utilize é um convite para ele dizer do que ele é feito. E vice-versa. Somos
tecidos sendo construídos, diariamente. Qual é o risco da falta de investimento
no autoconhecimento? Na autoempatia?
Vulnerabilidade. E como temos andado?
É preciso compreender a dor que nos
domina. E para compreendê-la, apenas por meio da experiência que, a propósito,
significa vestir a minha camisa. Se eu não compreender a dor que me
domina, continuarei a ser dor para o outro.
Vestir a camisa é, além
de uma falácia, um senso comum, uma fala pronta, uma teoria vazia que aumenta
as nossas dificuldades. Nossas angústias existem, nossas dores são reais. Nossa
alegria acontece. Por isso, a realidade precisa abrigá-las. Para tal, todos nós
precisamos estar vestidos a caráter.
Quero encerrar este texto, mas não a
reflexão, com um pensamento de Guimarães Rosa que diz:
“Vivendo, se aprende; mas o que se
aprende, mais, é só fazer outras maiores perguntas”.
Que a gente guarde a metáfora de vestir
a camisa, mas jamais a literalidade dela, porque isto seria abrir mão da
dúvida, do questionamento, do aprender e do se reencontrar. Como nos ensina
Guimarães Rosa, com o que mais aprendemos, certamente, é com as nossas maiores
perguntas. E perguntar-se “por que visto a camisa alheia” é uma pergunta maior.
“Vestir a camisa” foi um dos piores
conselhos que recebi, na vida. Mas pude desconfiar dele em tempo de não o
seguir. Tive a sorte de conviver com pessoas que me obrigaram a “fazer
perguntas”. Não a ter vestido custou uma demissão para o meu currículo, e está
tudo certo.
Vista a sua camisa, faça a pergunta maior e as maiores perguntas. Contribua para e com, mas com a sua camisa. Ela te serve, fica perfeita em você. Esteja certo de que vesti-la terá sido a resposta da vida para a sua maior pergunta. Visto a minha camisa. Você veste a sua. A construção para o avançar nasce deste caminho que transitamos, sob diferentes rotas.