segunda-feira, 29 de março de 2021

Camisas desbotadas

Para este texto, parto de uma fala popular que diz: “vista a camisa”.

Sobre qual camisa falamos?

Falas nascem da construção de um viver, seja esse viver solitário ou em comunidade. Elas refletem uma história, uma cultura nascida e criada com a anuência de muitos ou de pouco mais de meia dúzia, não importa. O que importa é que estas falam nascem. E se nascem, é porque há solo fértil para tal.

Vestir a camisa, no sentido figurado desta expressão, significa estar presente no território alheio, ser parceiro, assumir problemas, comprar e resolver conflitos, lutar por uma causa, não medir esforços para ajudar, dizer o que precisa ser dito etc. Qual o problema, então? Nenhum, desde que a camisa seja a minha, e não a sua. A nossa, e não a do outro. Quando visto a camisa do outro, raramente, ela me servirá sem que haja a necessidade de ajustes, arremates, troca de botões, encurtamento das mangas, reparo na gola, remendo na barra.

Não se trata de cuidar somente do meu quintal em detrimento do seu, mas de entender que o meu quintal, se não tiver cuidados e atenção, não poderá fazer efetivas contribuições com o seu quintal. Não se trata de um egoísmo de prevalência do meu, mas de abandonar a hipocrisia e o desserviço que constroem uma robusta ausência de mim para preencher o outro. Não se trata de não juntar forças em prol de uma casa coletiva, mas de me enxergar único dentro do todo no qual faço parte. Não se trata de não fazer o melhor que eu puder em prol do conjunto, mas de abrir mão desta inatualidade de me colocar à margem. Não se trata de ter excesso de generosidade em relação a mim, em prejuízo ao outro, mas de me enxergar com uma fisionomia nítida de uma pessoa que participa.

É imperativo juntar forças, fazer, realizar e contribuir. É genuíno construir parcerias. É imprescindível saber que se pode contar com o outro. Contudo, vestido com a minha camisa. E você, com a sua camisa. Se estou vestido com a sua camisa, a doação poderá até ocorrer, mas será manca, incompleta, perecível, insustentável. Se você está vestido com a minha camisa, assim será até quando? Talvez até a inauguração de nova loja, na rua, cujas promoções começaram ontem.

Como vestir algo cujo corte não foi criação minha? Como vestir algo cuja autoria não possui o meu nome? Vestir a sua camisa significa tirar a minha. Ou ficarei vestida com duas camisas sobrepostas? Os provadores ficarão cheios de nós, que, a essa altura, estarão entulhados e encalorados com excessos de camisas.

É preciso cuidar para que falas populares não se tornem vazias de significação. Vestir a camisa tornou-se uma fala pronta, cuja reflexão se perdeu, se é que um dia ela aconteceu. Falas populares reforçam lugares-comuns que ocupam espaços que deveriam ser preenchidos por ocupantes mais dignos e nobres.

Vestir a camisa que não nos pertence cria uma ausência de um habitar e de uma adaptação, em nós. E sem estarmos adaptados e habitados, em nós, nos perdemos de vista em função das inutilidades que nos ocupam. Vestir a camisa é uma forma de mecanizar a vida, torná-la servil, sem coragem para questionamentos. De tanto vestirmos a camisa alheia, não reconheceremos mais o nosso alfaiate, nem tampouco a nossa costureira, sabedores bem de nossas medidas, gostos e falhas da nossa natureza corporal. “Preciso subir mais um dedo”, me disse, certa vez, a costureira, fazendo a barra da minha calça, “você é baixinha, e a barra está arrastando no chão.” Vestida, se eu estivesse com a camisa alheia, como reconhecer as mangas longas e desformes, em mim? Falhas da educação que recebemos evidenciam, e que perpetuamos, estes hiatos. Fomos educados para a aparência do externo, para nos ocuparmos do que vai lá, e não do que está aqui.

Vestir a camisa alheia cria impasses: como volto para mim? Como reencontro aquilo que excluí, em mim? Minhas bagagens perdidas num aeroporto lotado de desconhecidos iludidos, vestidos com suas camisas desbotadas. A cor da minha camisa é única. A minha camisa é intransferível. E é, justamente, por estas duas principais características (cor única e identidade intransferível) que conseguirei reencontrar a disposição para ajudar, contribuir, juntar forças etc. Cada qual com o seu guarda-roupas. O meu. O seu. Todos presentes. Mas eu daqui. Você daí. Vestir a camisa alheia cria muitos sofrimentos: não me reconheço mais porque minhas medidas se perderam.

Estamos perdidos, há tempos, em discussões inúteis, exatamente, por acreditarmos em desserviços como vestir a camisa do outro, da empresa, de uma causa etc. Por isso, não avançamos. Como posso avançar descalço? Como posso querer vestir peças que não me pertencem? Como posso viver alheia a mim? Como posso alienar o meu corpo para que outra peça me caiba? Nossa grande demanda é a emocional. Somos andarilhos batendo em portas alheias que não nos ouvem. Mas por que não consertamos a nossa porta e adentramos? Nossa casa é o que há, em nós. Lá, não há fachadas, serventias inúteis e convencionais. Há, há tempos, roupas mofadas a espera de uso e de limpeza.

Não somos renováveis. Portanto, que as nossas camisas sejam utilizadas. Precisamos continuar a nós próprios. Sofremos uma carência de continuidade. Não é preciso tantas transformações, mas continuidade, em nós. Por que paramos para servir? Por que interrompemos os questionamentos? Por que os espelhos estão cobertos? Por que as margens nos confortam? Por que a camisa do outro cabe, forçosamente, em mim? Por que meus cabides vão vestidos de esquecimentos?

Vestir a camisa foi a proposta de reflexão deste texto. Toda e qualquer divergência de opinião em relação a minha, antecipo meu respeito. Mas penso ser urgente romper com o pronto. Há ambientes corporativos cuja pregação “vestir a camisa” é quase um mantra. E o resultado quase sempre tem sido a doença, a desagregação, a anulação da identidade, a dor, o constrangimento, o cinismo, a hostilidade. Não há nada mais desestabilizador que convidar o outro a não ser ele, só que de forma discreta e disfarçada.

Nossa cura se dá na relação com o que é meu versus o que é do outro. Não vejo forma de cura sem a consideração do meu espaço, das minhas dores, das minhas feridas, das minhas ânsias, das minhas carências, dos meus progressos, dos meus avanços, das minhas fendas. Não vejo forma de cura sem aceitarmos que, ainda na nossa forma de ser, o pronome possessivo meu/minha é parte integrante. Se insistirmos no despropósito da anulação do meu por meio da vestimenta da camisa do outro, continuaremos monstros, caminhando vagos, pelas estradas erradas que construímos.

Caminhando para uma conclusão desta reflexão, penso que respeitar a camisa do outro e mais, permitir que ele a utilize é um convite para ele dizer do que ele é feito. E vice-versa. Somos tecidos sendo construídos, diariamente. Qual é o risco da falta de investimento no autoconhecimento? Na autoempatia?  Vulnerabilidade. E como temos andado?

É preciso compreender a dor que nos domina. E para compreendê-la, apenas por meio da experiência que, a propósito, significa vestir a minha camisa. Se eu não compreender a dor que me domina, continuarei a ser dor para o outro.

Vestir a camisa é, além de uma falácia, um senso comum, uma fala pronta, uma teoria vazia que aumenta as nossas dificuldades. Nossas angústias existem, nossas dores são reais. Nossa alegria acontece. Por isso, a realidade precisa abrigá-las. Para tal, todos nós precisamos estar vestidos a caráter.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Guimarães Rosa que diz:

“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só fazer outras maiores perguntas”.

Que a gente guarde a metáfora de vestir a camisa, mas jamais a literalidade dela, porque isto seria abrir mão da dúvida, do questionamento, do aprender e do se reencontrar. Como nos ensina Guimarães Rosa, com o que mais aprendemos, certamente, é com as nossas maiores perguntas. E perguntar-se “por que visto a camisa alheia” é uma pergunta maior.

“Vestir a camisa” foi um dos piores conselhos que recebi, na vida. Mas pude desconfiar dele em tempo de não o seguir. Tive a sorte de conviver com pessoas que me obrigaram a “fazer perguntas”. Não a ter vestido custou uma demissão para o meu currículo, e está tudo certo.

Vista a sua camisa, faça a pergunta maior e as maiores perguntas. Contribua para e com, mas com a sua camisa. Ela te serve, fica perfeita em você. Esteja certo de que vesti-la terá sido a resposta da vida para a sua maior pergunta. Visto a minha camisa. Você veste a sua. A construção para o avançar nasce deste caminho que transitamos, sob diferentes rotas.

sábado, 6 de março de 2021

Agendas mancas

Para este texto, parto de uma fala popular que diz: “é o que tem pra hoje”.

O que tem pra hoje?

Várias podem ser as leituras acerca desta frase, deste pensamento popular. Mas o sentido que busco desta frase, por meio de uma reflexão que quero produzir aqui, é o de passagem obrigatória pelo presente para conquistarmos e construirmos os degraus para o futuro.

Somos andarilhos. Andamos tortos, ora à margem, ora sobre a via. O choro e o riso consomem a mesma energia que gastamos para os disfarces. Choramos. Rimos. Fingimos. Achamos. Fazemos de conta. Acreditamos. Desconfiamos. Respondemos. Desconfiamos de novo. Mudamos o canal. Identificamos como amigo com uma facilidade assustadora. Rompemos. Anotamos. Validamos. Atendemos. Dizemos. Esquecemos. Resgatamos. Preenchemos vazios. Criamos. Cansamos. Dormimos. Acordamos. O verbo nos representa. Não me refiro ao Verbo explicado no primeiro capítulo do Evangelho segundo João, o apóstolo do Cristo, para aqueles que nele creem. Mas, refiro-me ao verbo como única resposta que temos dado à vida: fazer, fazer, fazer, um fazer esvaziado de sentido.

O que tem pra hoje? Por ora, este verbo, esta lotação apertada de coisas feitas que não nos lembramos dos motivos da realização. São tantos os verbos realizados, que temos nos perdido nas conjugações: choramos. Mas choraríamos? Esquecemos. Mas teríamos nos esquecido? Anotamos, mas anotaremos? Dizemos, mas dissemos? Se choraríamos, por que há aqueles que choram choros invisíveis? Se acordamos, por que nossos olhos ainda não enxergam?

Quem está disposto a debruçar sobre este volume de verbos que fazemos, mas que tem deixado de caminhar conosco? Rotas tortas têm sido o nosso norte em nossas agendas mancas. Utilizamos lápis para marcarmos os nossos passos e para sabermos que passamos, aqui. Mas alguém tem utilizado borrachas que fortalecem o vínculo com o esquecimento. Laços firmes, fortemente tratados e contratados.

O que tem pra hoje? Os degraus são feitos pelos nossos pés, estejam eles nus, descalços ou calçados. O futuro é algo inatingível, mas possível nos é pensar sobre ele. Como chegar até ele se o que temos pra hoje não nos serve? Não nos tem servido? Quando falo “o que tem pra hoje” não me refiro à acomodação da mesmice, da inércia, da aceitação do medíocre e do nosso hóspede “fazer o quê?”, mas sim este avançar de que necessitamos e de que precisamos, no entanto, atropelamos e buscamos atalhos doentes que nos reconhecem.

O que tem pra hoje é o mapa que está nas nossas mãos. Aceitar este mapa significa aceitar que estamos perdidos, mas também significa um trajeto, um lugar de rotas, de caminhos e de ondes. Quando temos, que seja, um respingado de humildade para concordarmos que estar perdido não é uma condição vitalícia, mas provisória, o mapa começa a ficar mais amigável, e o que tem pra hoje começa a nos servir.

Somos andarilhos, ainda. Uma inconstância nos acomoda num ar fresco que temos dificuldades de sair. Queremos sair? Somos nômades em busca de estruturas sólidas. Penso que um dos passos que inicia o abandono do estado de andarilho é o reconhecimento do que se tem pra hoje.

Sofremos de um amadorismo quando desprezamos o feito, o construído. Queremos o do próximo sem querermos dar os passos que o próximo deu. Queremos o amanhã sem esperarmos o nascer do Sol. Apressamos a Lua. Ela, irritada, se demora a sair. Brigamos com a Natureza quando apressamos o nascimento. Somos Deuses, uma santidade vã que menospreza o ritmo pequeno, os passos miúdos, o cantar de um pássaro, o calçado sem marca e a blusa da moda passada. O que tem pra hoje pode ser pouco, pequeno e barato, mas é o que tem pra hoje. Imprescindível é aceitarmos que o amanhã virá a partir do que tem pra hoje. Não há rotas de fuga, tampouco atalhos inteligentes, neste caso. Não há. Sabemos. Mas por qual motivo ainda insistimos? Talvez por falta de memória de dores intensas. Aqueles que as possuem, certamente, possuem outra relação com o que tem pra hoje.

Sofremos de uma pressa crônica para chegarmos onde? Insistimos nas perguntas vazias, na ociosidade e na espuma que vende. Aquele que corta a fita não será o mesmo, provavelmente, a resolver o problema que acontecerá depois. Por isso, talvez, a pressa. O que tem pra hoje?

Numa reunião de trabalho, certa vez, o facilitador apresentou todo o trabalho, e nos trouxe as vulnerabilidades e problemas de uma determinada situação que estávamos passando. No momento de as pessoas se pronunciarem, fizeram apenas elogios à apresentação, sem discussão e possível solução alguma para o que se apresentou. O problema que o facilitador trouxe ficou em segundo plano, esquecido frente aos elogios para os slides. Somos andarilhos e agora, também alheios. Isto dificulta, muitíssimo, a aceitação do que se tem pra hoje. A falta de humildade para aceitarmos que somos falíveis, incompletos, mesquinhos, imprecisos nos atrasa. Poderíamos estar mais altos na nossa escada, mas ela possui inúmeros degraus sem pisadas, sem marcas. Nossos pés os desconhecem porque aqueles se esmeram no adormecimento.

O futuro é um lugar preenchido de presentes, de passados e de atualidades. Preciso é, portanto, valorizar o que se tem pra hoje. Não uma valorização vendida pela autoajuda que acredita num mundo mágico sem problemas, sem conflitos e que basta querermos que conseguiremos. Não um discurso barato de ode ao vitimismo, à pobreza e à perseguição do pouco, do fraco. Sabemos que a complexidade da vida não nos permite acreditar em tamanha leviandade. Mas uma valorização de um a partir de, de uma construção, de um gosto pelas etapas, de um esforço insistente porque traz sentido e valor. A obra poderá demorar, mas ela somente terá vida mediante a aceitação do que tem pra hoje.

Que o nosso tempo descontinue conversas inúteis, insossas, grosseiras e arrogantes. Que possamos, cada vez mais, enxergar valor nas pequenas contribuições, nas obras dos anônimos, no cumprimento daquele que vende limão na feira, no bolo quente sem cobertura, no arroz sem frescura, na Faculdade sem renome (um nome somente não bastaria?), no lixeiro e no peixeiro, assim como no empregado e no sorriso daquele Senhor, cuja moradia nobre é a rua. Sem hipocrisias nestas aceitações, porque o mínimo é relevante, o desprovido somente o é de dinheiro. Sem hipocrisias nestas aceitações, porque o que tem pra hoje é condição para avançarmos. Sem esta condição, certamente, vamos precisar reaprender a lavarmos o arroz e a cozinharmos o feijão.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um incômodo pensamento de Guimarães Rosa, escritor brasileiro dos mais importantes, que diz:

“Viver é etecetera...”

No fundo, somos este caminhar, este ir, esta etecetera. Por isso, o que tem pra hoje não pode ser desprezado, nem abreviado. Como avançaremos sem as nossas eteceteras? Sem as nossas sequências? Nossas eteceteras, como nos trouxe Guimarães Rosa, é o dever do nosso cuidar. E todo aquele que cuida cria compromissos. E todo aquele que tem compromisso cria uma relação. Uma relação de amor conosco, com o outro, com aquilo que vai, que foi e que irá em nós e no outro. Nossa maleta vai cheia de eteceteras que, certamente, está conversando com o que tem pra hoje.