Este não é um texto religioso. E
nem poderia. Não é sobre isto o que quero falar. Mas sim deste de,
em itálico, que, discretamente, figura na fala do padre e que também figura
em tudo, em toda parte. Talvez por figurar em toda parte, explique o motivo de
não o enxergarmos. Porque se o enxergássemos, teríamos percebido que se é
preciso dizer Paz de Cristo para diferenciar da paz dos Homens, é porque ainda
a nossa relação com esta paz não é única. Existem diferenciações.
Desde minha infância escuto esta frase: a paz de Cristo. Mas
somente na fase adulta fui parar para ouvi-la.
E quando comecei a ouvi-la, ela começou a me incomodar. E se algo nos incomoda,
é porque há espaços para arrumações.
Na infância, quando somos
crianças, escutamos muitas coisas e outras tantas nos passam despercebidas. Não
entendemos outras muitas. Tudo certo. Na infância da vida, não nos são cobrados
compreensão e entendimento. Ainda estamos na fase da recepção das informações,
conhecendo este lugar para o qual fomos convocados. Por isso, podemos seguir. Sem
culpas e sem incômodos. Nesse momento, é ela, a vida, quem nos dá e traça os
caminhos para seguirmos. Utilizamos, para este seguir, valores, conceitos e
trechos vividos por quem nos educa e por quem nos apresenta este viver. Vamos
construindo nossa história a partir da história de outras pessoas, e nossos
contornos e entornos vão sendo desenhados e rabiscados. Rabiscos estes que se
tornarão um desenho pronto que somente lá na frente conheceremos melhor. A vida
nos conduz e nos serve. O nosso papel, entre tantos, é o de absorver o que nos
está sendo transmitido, além do papel de
convidado para um jantar cuja mesa está posta.
Não se trata de passividade, mas na infância, somos apenas um convidado
da vida. Fazer mais que isto é deixar de viver etapas importantes desta
infância que nos serão cobradas logo adiante. E não demora muito para a
cobrança chegar.
A infância é apenas uma das
etapas que nos conduzem a algo maior: o crescimento e a maturidade. Eles nos trazem
pausas imprescindíveis e obrigatórias para que possamos seguir. Sem estas
paradas, a vida não nos permite avançar. E se insistirmos, ela se vingará de
nós por meio de uma vida sem sentido e sem propósito. Como não é isto o que
buscamos, paramos para buscar esta compreensão. Isto se torna fundamental.
imagem tirada da internet
Quando respeitamos estas paradas,
passamos a ouvir a vida. De verdade.
E tudo aquilo que ela quer nos dizer. Uma voz suave e mansa. Porém firme e
assertiva. Uma voz que nos diz, claramente, que este de, em itálico, faz toda a diferença. Um de que traz outro propósito. O sentido da preposição de, entre tantos, é o de estabelecer uma
nova relação, uma nova visão. Portanto, a nossa paz, a dos homens, não é a mesma do
Cristo. Por quê? Porque ainda temos relações conflituosas e queremos nos impor
frente à vida. Continuamos a achar que temos as respostas e que sabemos muito.
E a verdade é que pouco sabemos. Como esta realidade do pouco saber nos
incomoda profundamente, criamos conceitos arrogantes como “paz dos homens” em
detrimento da “paz do Cristo”. E assim, abrimos mão do convite nos feito pela
vida para sairmos da horizontalidade e partirmos para a verticalidade. Acatamos
o conceito “paz do Cristo” como meramente religioso e desperdiçamos
oportunidades de construirmos, que passa a ser a nossa obrigação na maturidade
e no crescimento. Diferentemente da infância, quando éramos convidados para o
jantar, hoje o convite é o de prepararmos o jantar. E se conseguirmos ir além,
nos juntarmos aos outros, abarcaremos cada vez mais pessoas para o jantar. Afinal,
todos têm fome.
O jantar é uma representação
daquele que sente fome. Somente saciaremos a nossa fome quando respeitarmos as paradas
que a vida nos impõe.
A paz do Cristo significa que a
paz que criamos é arrogante e soberba. Criamos outro conceito e vivemos sob as
influências dele. Nossas pazes são diferentes. Independentemente de religião,
se é que a temos, a paz do Cristo é uma metáfora para buscarmos aquilo que nos
transcende, aquilo que nos alimenta, aquilo que nos faz maiores, mesmo
conscientes de nosso diminuto tamanho.
Não se trata de religião, mas de
postura diante à vida. O conceito paz do Cristo não tem caráter religioso,
apenas, mas muito além. Apresenta um caráter revolucionário de ruptura com a
mesmice, de insubordinação necessária, de uma revisitação de valores e de
caráter. Um convite para viajarmos dentro de nós mesmos. Talvez esta seja uma
das principais viagens que podemos nos dar de presente. Um navegar difícil, mas
necessário. Este caminhar por nós mesmos, como sinônimo de convivência com
nossos cotidianos, é muito saudável se quisermos saber o que significa a paz
deste Cristo, se quisermos viver a paz deste Cristo. Não um Cristo homem. Não
um Cristo religião. Não um Cristo líder. Não um Cristo físico. Mas um Cristo como
sinônimo de um repensar diante à vida. Se há a paz dele, por que criamos outra?
Por que criamos a nossa? A dele não nos serve? Ou não nos cabe? Ou será que
saiu da moda? Por que a dele existe antes e apesar da nossa? Isto não deveria
ser o suficiente para repensarmos nossas posições e lugares?
Por que, na missa, dizemos “a paz
de Cristo”, mas depois seguimos a cartilha da nossa paz?
Por que desejamos paz de Cristo
aos homens e à Terra, na virada do ano, e logo na madrugada, literalmente do
dia primeiro do primeiro mês, voltamos aos velhos e bons hábitos? Por que os dedos
nunca apontam para nós?
Abraçamos o nosso irmão e o
cumprimentamos porque o relógio disse que o novo ano chegou ou por que, de
verdade, é o desejo que vai em nosso coração? Talvez seja uma mistura dos dois,
mas, infelizmente, a primeira razão ainda ocupa mais espaços em nossas vidas.
Se assim não fosse, por que, então, o nosso abraço não se sustenta durante o
ano? Encurtamos nossos abraços e mãos na mesma medida que aumentamos a nossa
audácia de acharmos que podemos seguir, assim, impunemente, passando pela vida
ainda como simples convidados. Mas não somos mais. E há tempos. Por que existem
duas pazes? Por que aceitamos viver de forma menor a que poderíamos?
A paz dos homens é condicionante.
O se faz a diferença aqui. A paz do
Cristo é atemporal e transcendental. E são estas as paradas obrigatórias que a
maturidade nos traz e nos convida a fazer. Um caminhar sem voltas, mas que
valerá a pena se tivermos a disposição e a lucidez de assumirmos que não
sabemos fazer, mas que temos o principal: acesso ao livro de receitas e às
ferramentas para realizarmos este jantar, porque já é tempo. Um jantar cujo
convite se deu quando chegamos à maturidade ou até mesmo antes, quando saímos
da infância. Não importa se estamos atrasados. O que importa é podermos fazer
uso da flexibilidade que a vida nos oferece para que possamos iniciar o preparo
do jantar.
Crescer é isso: ouvir a vida.
Reparar no que ela tem a nos dizer. É incomodar-se em dizer “a paz do Cristo”
se não é o que vai em nosso coração. Seguir e viver a paz do Cristo é fazer algo muito além do que apenas desistir. Não
podemos desistir. A caminhada até aqui foi extremamente importante para não
seguirmos.
É preciso continuar. Não há como
continuar sem parar. Não há como ir além sem observar entraves e cercas. Não há
como seguir a paz do Cristo sem a construção, real, do conceito unidade.
Sermos agentes requer força e
coragem. Um além que somente atingiremos se nos levantarmos, assumirmos a nossa
posição de pequenos maduros. Sairmos das margens nas quais nos colocamos,
muitas vezes, dependerá da postura de aceitarmos, por exemplo, que o conceito
“paz dos homens” não faz o mínimo sentido, uma vez que temos um conceito
completo, único e universal vigente, mas que, por arrogância, o relegamos ao
segundo plano porque entendemos que nós somos quem, verdadeiramente, sabemos
sobre a Paz.
Quando este baixar de olhos para
as nossas insignificâncias e pequenezas se fizer presente em nossas vidas, a
maturidade e o crescimento terão batido na nossa porta. A maturidade independe
da questão cronológica, e sim, da postura diante à vida. Quanto mais rápido
entendermos isto, melhor será a nossa vida. Uma vida de paz, mas a do Cristo.
Desvendar estes nossos trilhos tortuosos, arrogantes, soberbos e egoístas trará
visibilidade para buscarmos caminhos mais limpos e livres. Caminhos
verdadeiramente felizes e de paz. A do Cristo.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação de Liev
Tolstói, escritor russo do século XIX, que diz:
“se queres ser universal, começa
por pintar a tua aldeia”.
Que a gente não desista da nossa
aldeia, no caso, da gente mesmo. Mesmo que tenhamos de fazer concessões,
acordos, negociações com a vida para que ela nos mostre o sentido da paz do
Cristo, que nossas promessas sejam mantidas para que tenhamos uma vida, de
verdade, autoral. Somente conseguiremos ser os autores da nossa história, se
tivermos a vontade, sabedoria e disciplina de ouvirmos a vida. Isto nos fará
universal. Quando isto acontecer, acredito, teremos atingido e compreendido,
finalmente, o sentido de paz, a do Cristo, e não mais falaremos, na missa, ou
em outro lugar, sobre qualquer outra paz que não seja a dele: a do Cristo.