domingo, 28 de janeiro de 2018

E se eu tentar

O que conseguiríamos se tentássemos? O que nos seria possível alcançar se não desistíssemos? Aonde chegaríamos se não parássemos? O que há por trás de uma simples pergunta: “e se eu tentar?”: há um descortinar de nós mesmos. Um descortinar que nunca se esgota e que nos leva a conhecer o que, insistentemente, buscamos esconder.

Nunca saberemos aonde poderíamos ter chegado ou aonde chegaremos se não tivéssemos tentado, se não tentarmos. A tentativa é a nossa resposta teimosa quando a vida nos diz não, quando o convite insinua um desistir de nossa parte. Mas há convites que devem ser recusados e devolvidos ao remetente. Quando tentamos, mesmo ainda sem sabermos o resultado, demonstramos a nossa crença na não desistência. E isso nos fortalece.

É inimaginável o que poderemos alcançar se tentarmos, se não desistirmos.

Desistir é concordar com a inércia, é dar ponto a quem quer que o jogo seja perdido por nós. Desistir é a entrega sem luta. É a concordância sem questionamento. É o baixar de olhos sem ter-se permitido ver. É aceitar uma conclusão sem emitir, se quer, uma opinião. Desistir é sair da vida, mas ainda permanecer nela sem perceber.

Fácil não é, mas alguém nos disse que seria? Os exemplos são muitos.

vídeo tirado da internet

Estarmos conscientes de nossas potencialidades e termos a humildade de abandonarmos um caminho é saudável e necessário. Mas é preciso sabermos diferenciar o caminho que deve ser abandonado, porque se o seguirmos não chegaremos a lugar algum, do caminho que deve ser percorrido e perseguido. Não podemos abandonar caminhos que nos pertencem. E esta certeza cada um de nós traz dentro de si.

Caminhos que devem ser abandonados não nos deixam felizes. Eles nos trazem uma sensação de frustração, de cansaço, de inércia diante à vida. São caminhos cansativos, exaustivos, tristes, que nada nos representam. Somos apenas um número. Estes devem ser abandonados porque possuem valores conflituosos com os nossos, e insistir neles é como abrirmos mão de sermos felizes. Os caminhos que devem ser percorridos aliviam a nossa alma, refrescam os nossos pensamentos e nos dão a doce sensação de pertencimento, de conexão conosco e com a vida. Mas somente alcançaremos estes caminhos se tentarmos. Tentativas conscientes, firmes e, acima de tudo, com propósito. Fizermos mais que desistir...

Inúmeras serão as investidas para desistirmos. Mas qual caminho escolheremos?

Encontrar equilíbrio e sabedoria para andar neste caminhar cheio de encostas, desvios, buracos, sinalizações falhas e mudanças de tempo é tarefa espinhosa e complexa, mas extremamente recompensadora. Os espinhos até tentam esconder a beleza do caminho, mas eles nunca conseguem.

Tentar e não desistir, e desistir porque, de verdade, não compensa insistir, é o que nos faz grandes, é o que nos faz importantes para a nossa própria história, e o quanto nos constitui como Homens que somos. Conscientizarmos de que a tentativa e a não desistência nos tornarão autônomos e donos de nós mesmos. E que também a consciência da necessidade de abandonarmos caminhos que não devem mais ser trilhados fortalecerão as nossas tentativas vitoriosas. Tudo é uma questão de escolha. Escolher é não desistir. E escolher bem é apurar o filtro das nossas tentativas na vida.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Clarice Lispector, que diz:

“Nunca sei se quero descansar porque estou realmente cansada, ou se quero descansar para desistir.”

Que estejamos, sempre, atentos a nós e aos nossos entornos e contornos. A dúvida de Clarice sempre existirá em nós. Mas saberemos lidar melhor com ela quando entendermos a razão do nosso cansaço, ou seja, se estamos desistindo porque efetivamente é preciso, ou se apenas por desculpa para justificarmos a nossa fuga da vida.

Que façamos mais que desistir, como disse Mandy Harvey, no vídeo. E o primeiro passo? Não desistir da gente e tentarmos quantas vezes forem necessárias. Mesmo que a vida descarregue sobre nós o seu mau humor e descontentamento. Ainda assim, terá valido a pena tentar.

domingo, 21 de janeiro de 2018

A paz de Cristo

Este não é um texto religioso. E nem poderia. Não é sobre isto o que quero falar. Mas sim deste de, em itálico, que, discretamente, figura na fala do padre e que também figura em tudo, em toda parte. Talvez por figurar em toda parte, explique o motivo de não o enxergarmos. Porque se o enxergássemos, teríamos percebido que se é preciso dizer Paz de Cristo para diferenciar da paz dos Homens, é porque ainda a nossa relação com esta paz não é única. Existem diferenciações.

Desde minha infância escuto esta frase: a paz de Cristo. Mas somente na fase adulta fui parar para ouvi-la. E quando comecei a ouvi-la, ela começou a me incomodar. E se algo nos incomoda, é porque há espaços para arrumações.

Na infância, quando somos crianças, escutamos muitas coisas e outras tantas nos passam despercebidas. Não entendemos outras muitas. Tudo certo. Na infância da vida, não nos são cobrados compreensão e entendimento. Ainda estamos na fase da recepção das informações, conhecendo este lugar para o qual fomos convocados. Por isso, podemos seguir. Sem culpas e sem incômodos. Nesse momento, é ela, a vida, quem nos dá e traça os caminhos para seguirmos. Utilizamos, para este seguir, valores, conceitos e trechos vividos por quem nos educa e por quem nos apresenta este viver. Vamos construindo nossa história a partir da história de outras pessoas, e nossos contornos e entornos vão sendo desenhados e rabiscados. Rabiscos estes que se tornarão um desenho pronto que somente lá na frente conheceremos melhor. A vida nos conduz e nos serve. O nosso papel, entre tantos, é o de absorver o que nos está sendo transmitido, além do papel de convidado para um jantar cuja mesa está posta.

Não se trata de passividade, mas na infância, somos apenas um convidado da vida. Fazer mais que isto é deixar de viver etapas importantes desta infância que nos serão cobradas logo adiante. E não demora muito para a cobrança chegar.

A infância é apenas uma das etapas que nos conduzem a algo maior: o crescimento e a maturidade. Eles nos trazem pausas imprescindíveis e obrigatórias para que possamos seguir. Sem estas paradas, a vida não nos permite avançar. E se insistirmos, ela se vingará de nós por meio de uma vida sem sentido e sem propósito. Como não é isto o que buscamos, paramos para buscar esta compreensão. Isto se torna fundamental.

imagem tirada da internet

Quando respeitamos estas paradas, passamos a ouvir a vida. De verdade. E tudo aquilo que ela quer nos dizer. Uma voz suave e mansa. Porém firme e assertiva. Uma voz que nos diz, claramente, que este de, em itálico, faz toda a diferença. Um de que traz outro propósito. O sentido da preposição de, entre tantos, é o de estabelecer uma nova relação, uma nova visão. Portanto, a nossa paz, a dos homens, não é a mesma do Cristo. Por quê? Porque ainda temos relações conflituosas e queremos nos impor frente à vida. Continuamos a achar que temos as respostas e que sabemos muito. E a verdade é que pouco sabemos. Como esta realidade do pouco saber nos incomoda profundamente, criamos conceitos arrogantes como “paz dos homens” em detrimento da “paz do Cristo”. E assim, abrimos mão do convite nos feito pela vida para sairmos da horizontalidade e partirmos para a verticalidade. Acatamos o conceito “paz do Cristo” como meramente religioso e desperdiçamos oportunidades de construirmos, que passa a ser a nossa obrigação na maturidade e no crescimento. Diferentemente da infância, quando éramos convidados para o jantar, hoje o convite é o de prepararmos o jantar. E se conseguirmos ir além, nos juntarmos aos outros, abarcaremos cada vez mais pessoas para o jantar. Afinal, todos têm fome.

O jantar é uma representação daquele que sente fome. Somente saciaremos a nossa fome quando respeitarmos as paradas que a vida nos impõe.

A paz do Cristo significa que a paz que criamos é arrogante e soberba. Criamos outro conceito e vivemos sob as influências dele. Nossas pazes são diferentes. Independentemente de religião, se é que a temos, a paz do Cristo é uma metáfora para buscarmos aquilo que nos transcende, aquilo que nos alimenta, aquilo que nos faz maiores, mesmo conscientes de nosso diminuto tamanho.

Não se trata de religião, mas de postura diante à vida. O conceito paz do Cristo não tem caráter religioso, apenas, mas muito além. Apresenta um caráter revolucionário de ruptura com a mesmice, de insubordinação necessária, de uma revisitação de valores e de caráter. Um convite para viajarmos dentro de nós mesmos. Talvez esta seja uma das principais viagens que podemos nos dar de presente. Um navegar difícil, mas necessário. Este caminhar por nós mesmos, como sinônimo de convivência com nossos cotidianos, é muito saudável se quisermos saber o que significa a paz deste Cristo, se quisermos viver a paz deste Cristo. Não um Cristo homem. Não um Cristo religião. Não um Cristo líder. Não um Cristo físico. Mas um Cristo como sinônimo de um repensar diante à vida. Se há a paz dele, por que criamos outra? Por que criamos a nossa? A dele não nos serve? Ou não nos cabe? Ou será que saiu da moda? Por que a dele existe antes e apesar da nossa? Isto não deveria ser o suficiente para repensarmos nossas posições e lugares?

Por que, na missa, dizemos “a paz de Cristo”, mas depois seguimos a cartilha da nossa paz?

Por que desejamos paz de Cristo aos homens e à Terra, na virada do ano, e logo na madrugada, literalmente do dia primeiro do primeiro mês, voltamos aos velhos e bons hábitos? Por que os dedos nunca apontam para nós?

Abraçamos o nosso irmão e o cumprimentamos porque o relógio disse que o novo ano chegou ou por que, de verdade, é o desejo que vai em nosso coração? Talvez seja uma mistura dos dois, mas, infelizmente, a primeira razão ainda ocupa mais espaços em nossas vidas. Se assim não fosse, por que, então, o nosso abraço não se sustenta durante o ano? Encurtamos nossos abraços e mãos na mesma medida que aumentamos a nossa audácia de acharmos que podemos seguir, assim, impunemente, passando pela vida ainda como simples convidados. Mas não somos mais. E há tempos. Por que existem duas pazes? Por que aceitamos viver de forma menor a que poderíamos?

A paz dos homens é condicionante. O se faz a diferença aqui. A paz do Cristo é atemporal e transcendental. E são estas as paradas obrigatórias que a maturidade nos traz e nos convida a fazer. Um caminhar sem voltas, mas que valerá a pena se tivermos a disposição e a lucidez de assumirmos que não sabemos fazer, mas que temos o principal: acesso ao livro de receitas e às ferramentas para realizarmos este jantar, porque já é tempo. Um jantar cujo convite se deu quando chegamos à maturidade ou até mesmo antes, quando saímos da infância. Não importa se estamos atrasados. O que importa é podermos fazer uso da flexibilidade que a vida nos oferece para que possamos iniciar o preparo do jantar.

Crescer é isso: ouvir a vida. Reparar no que ela tem a nos dizer. É incomodar-se em dizer “a paz do Cristo” se não é o que vai em nosso coração. Seguir e viver a paz do Cristo é fazer algo muito além do que apenas desistir. Não podemos desistir. A caminhada até aqui foi extremamente importante para não seguirmos.

É preciso continuar. Não há como continuar sem parar. Não há como ir além sem observar entraves e cercas. Não há como seguir a paz do Cristo sem a construção, real, do conceito unidade.

Sermos agentes requer força e coragem. Um além que somente atingiremos se nos levantarmos, assumirmos a nossa posição de pequenos maduros. Sairmos das margens nas quais nos colocamos, muitas vezes, dependerá da postura de aceitarmos, por exemplo, que o conceito “paz dos homens” não faz o mínimo sentido, uma vez que temos um conceito completo, único e universal vigente, mas que, por arrogância, o relegamos ao segundo plano porque entendemos que nós somos quem, verdadeiramente, sabemos sobre a Paz.

Quando este baixar de olhos para as nossas insignificâncias e pequenezas se fizer presente em nossas vidas, a maturidade e o crescimento terão batido na nossa porta. A maturidade independe da questão cronológica, e sim, da postura diante à vida. Quanto mais rápido entendermos isto, melhor será a nossa vida. Uma vida de paz, mas a do Cristo. Desvendar estes nossos trilhos tortuosos, arrogantes, soberbos e egoístas trará visibilidade para buscarmos caminhos mais limpos e livres. Caminhos verdadeiramente felizes e de paz. A do Cristo.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Liev Tolstói, escritor russo do século XIX, que diz:

“se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.

Que a gente não desista da nossa aldeia, no caso, da gente mesmo. Mesmo que tenhamos de fazer concessões, acordos, negociações com a vida para que ela nos mostre o sentido da paz do Cristo, que nossas promessas sejam mantidas para que tenhamos uma vida, de verdade, autoral. Somente conseguiremos ser os autores da nossa história, se tivermos a vontade, sabedoria e disciplina de ouvirmos a vida. Isto nos fará universal. Quando isto acontecer, acredito, teremos atingido e compreendido, finalmente, o sentido de paz, a do Cristo, e não mais falaremos, na missa, ou em outro lugar, sobre qualquer outra paz que não seja a dele: a do Cristo.