O professor João
Adalberto Guimarães, brasileiro, em um intercâmbio na Europa, entrou numa
estação de Metrô em Estocolmo, capital da Suécia.
Ela explicou que
aquela catraca era destinada às pessoas que, por qualquer motivo, não tivessem dinheiro para o bilhete da
passagem.
Com sua mente
incrédula, acostumada ao jeito brasileiro de pensar, não conteve a pergunta,
que para ele era óbvia:
- E se a pessoa
tiver dinheiro, mas simplesmente não quiser pagar?
A vendedora espremeu
seus olhos, e num sorriso constrangedor, disse ao homem:
- Mas por que
ela faria isso?
Sem resposta,
ele pagou o bilhete e passou pela catraca, seguido de uma multidão que também
havia pago por seus bilhetes.
E a catraca livre continuou vazia.
imagem tirada da internet
Gloria Perez,
autora e escritora de novelas, disse, em entrevista, após ser questionada sobre
como é o processo de criação dela e sobre como ela tem a inspiração para
abordar tantos temas relevantes em suas obras:
“olho as pessoas como são. Examino o que
gostariam de ser e escrevo sobre este abismo.”
O texto sobre a
catraca livre exemplifica este abismo dito por Gloria Perez. Um abismo que
separa o que somos do que poderíamos ser, se não fosse a nossa insistência e crença
nos caminhos irrelevantes da vida. Este abismo que vai em nós é a representação
das nossas dores e das que causamos, também.
Pensar que o
outro possa se utilizar da catraca livre mesmo tendo o dinheiro da passagem é
estar do lado de cá. E ter em mente a tranquilidade de uma resposta como, “mas
por que ela faria isso?”, é estar do lado de lá. E entre estas duas frentes, um
abismo. Remover esta distância e outras tantas nas quais vivemos talvez seja o
nosso grande papel a ser desempenhado aqui.
Termos a mente
incrédula, acostumada ao nosso modelo mental, e perguntar: “e se a pessoa tiver
dinheiro, mas simplesmente não quiser pagar?”, é mais que acreditar na
corrupção e no mal que vai em nós. Afinal, corrupto, além de outras coisas, é
todo aquele que se utiliza de formas e de meios ilícitos para conseguir
vantagens e ganhos pessoais. É assumir que há, entre nós, um ato de
comportamento social, e não somente corrupção. Ou seja, a corrupção é uma
consequência de algo grave: nosso comportamento social. Nosso estar no mundo.
Utilizarmos um
benefício que não poderíamos deveria nos incomodar e nos impedir de agir. Mas
por que isto ainda não é uma realidade em muitos lugares? A resposta está
dentro de cada um de nós. E esta resposta passa por nos perguntar o que faríamos
se víssemos uma catraca livre de pagamento a nossa frente?
Ainda não consumimos
a Ética, como deveríamos, pela nossa falta de experimento. Nossas vivências
deveriam cobrir esta falta. Mas infelizmente não dão conta. Quando as chances
surgem, que são inúmeras, sempre estamos ocupados com o desnecessário. Poucos
são os experimentados. Aquelas pessoas que, na essência e na atitude, entendem
o sentido disto, a catraca livre é uma realidade.
Invejar aquele
que já usufrui das catracas livres seria o mesmo que abdicar da possibilidade
de termos e de vivermos esta mesma situação. Quando invejamos o outro, além de
buscarmos desestabilizar o bem que há nele, destruímos a nós próprios nos
impondo limites que nunca existiram. Portanto, se há algo cuja vivência também
gostaríamos de ter, por que não vamos buscar? O primeiro passo é sempre o mais
difícil, porém é ele que determina o sucesso ou não da caminhada.
Estar do lado de
cá do abismo, como ainda estamos, requer uma certa dose de alienação. Ela nos
permite não enxergar o óbvio e aquilo que tropeça a nossa frente. Sabemos que
há o lado de lá e até achamos bom e bonito, mas nos parece, num primeiro
momento, um tanto utópico aquele lugar. Por isso, ficamos aqui, mesmo.
Falar sobre
estes abismos que há em nós é falar sobre as nossas curvas que, ao fazê-las,
nos defrontamos conosco mesmos. Mas assustados, tratamos logo de buscar um
retorno. Queremos estar do lado de lá, mas quando acessamos o caminho, ele nos
assusta e recuamos.
As catracas
livres representam aquele que avança e que caminha. Não há milagres. Há
esforço, busca e abnegação do que não serve mais, daquilo que dificulta o
acesso para o outro lado. E para chegarmos lá, nossos abismos precisarão ser tratados
e curados.
Curamos e
tratamos os nossos abismos quando deixarmos de dar as mãos para a omissão. Quando
ela deixar de ditar as respostas da nossa vida. Omissão é uma falta de atenção
para com a vida. Uma ausência.
Curamos e
tratamos os nossos abismos quando nos enxergarmos e nos apropriarmos do
problema como realmente nosso. E é nosso. Ao fazermos a pergunta: “e se a pessoa tiver dinheiro, mas
simplesmente não quiser pagar?” é importante dizer que “esta pessoa”
simplesmente pode ser a gente mesmo que, num momento de fragilidade e de
imoralidade, utilizamos um benefício indevidamente.
Se quisermos, portanto, estarmos do lado de
lá do abismo, será preciso reforçarmos os calçados porque a caminhada será
longa.
A cura somente
virá quando enxergarmos o valor e a necessidade dela. E valorizando a cura,
respostas como a da vendedora de bilhetes: “mas por que ela faria isso?” serão
comuns entre nós.
Os abismos
existem porque precisam nos dizer algo. Existem porque os criamos.
Aprofundam-se porque damos espaços e acomodações a eles. Perpetuam-se porque a
arrogância do saber ainda nos faz companhia diariamente. Integram-se a nossa
rotina porque a nossa soberba em achar que somente o outro é que poderá usar a catraca indevidamente faz eco em nossas
mentes e em nossos corações.
Os abismos
existem para nos fazer entender que de profundidade eles entendem. A medida que
o tempo passa, eles se fortalecem e crescem. E quando nos damos conta e olhamos
para eles, eles também olharão para nós, como disse Nietzsche, nos chamando a atenção para que a gente não se
transforme no próprio abismo.
A vida nos dá chances inúmeras de
transpormos os nossos abismos e de até não permitirmos o nascimento deles. Mas
onde estávamos quando essas chances chegaram?
Não nos cabe
criticar um País em detrimento do outro, comparar um povo a outro, mas sim o
que estas atitudes diferenciadas representam para nós e qual é o nosso
distanciamento em relação a elas. Problemas todas as nações possuem. Mas
escolher mudar este patamar depende da atitude individual.
Catracas livres: ainda não temos por um
limite imposto a nós mesmos. Estamos distantes disto porque assim construímos
este distanciamento. Assim alimentamos os nossos abismos.
Catracas livres: um caminho ainda não
percorrido, mas possível.
Catracas
travadas e livres são a representação da mesma face. Do mesmo abismo. Se
queremos ir mais longe e chegarmos ao outro lado, é bom começarmos logo o
trabalho. Planejamento, intensidade, vontade e regularidade serão ferramentas
necessárias.
Abismos existem para serem vencidos. Abismos
vencidos, espaços trilhados e conquistados. Quando encurtarmos os abismos e
alongarmos as nossas pernas, os distanciamentos estarão fadados ao declínio.
Quero encerrar
este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Lao-Tsé,
filósofo e escritor da antiga China, que diz:
“Para ganhar
conhecimento, adicione coisas todos os dias. Para ganhar sabedoria, elimine
coisas todos os dias”.
Conhecimento
técnico nós temos. Conhecemos, por exemplo, muitos vieses do nosso caráter para
saber de nossa capacidade de utilizarmos a catraca vazia, principalmente se
estivermos com pressa ou se ninguém estiver vendo. Mas sabedoria, que é o conhecimento da vida, capaz de
nos permitir dizer: “- mas por que ela faria isso?”, somente eliminando coisas
todas os dias, como o supérfluo, o desnecessário, o tendencioso e o marginal.
Esta limpeza nos fará enxergar as catracas livres, e o mais importante:
permanecerão livres até que alguém, verdadeiramente,
precisar usá-la. E este alguém poderá ser
a gente mesmo.