domingo, 22 de abril de 2018

Nossas fronteiras pedem passagem

O professor João Adalberto Guimarães, brasileiro, em um intercâmbio na Europa, entrou numa estação de Metrô em Estocolmo, capital da Suécia.

Aguardando na fila para comprar o seu bilhete, ele notou que havia, entre muitas catracas normais e comuns, uma de passagem grátis e livre. Ao chegar a sua vez no guichê, perguntou o motivo daquela catraca permanentemente liberada, sem segurança por perto, para a vendedora.

Ela explicou que aquela catraca era destinada às pessoas que, por qualquer motivo, não tivessem dinheiro para o bilhete da passagem.

Com sua mente incrédula, acostumada ao jeito brasileiro de pensar, não conteve a pergunta, que para ele era óbvia:

- E se a pessoa tiver dinheiro, mas simplesmente não quiser pagar?

A vendedora espremeu seus olhos, e num sorriso constrangedor, disse ao homem:

- Mas por que ela faria isso?

Sem resposta, ele pagou o bilhete e passou pela catraca, seguido de uma multidão que também havia pago por seus bilhetes.

E a catraca livre continuou vazia.

imagem tirada da internet

Gloria Perez, autora e escritora de novelas, disse, em entrevista, após ser questionada sobre como é o processo de criação dela e sobre como ela tem a inspiração para abordar tantos temas relevantes em suas obras:

“olho as pessoas como são. Examino o que gostariam de ser e escrevo sobre este abismo.”

O texto sobre a catraca livre exemplifica este abismo dito por Gloria Perez. Um abismo que separa o que somos do que poderíamos ser, se não fosse a nossa insistência e crença nos caminhos irrelevantes da vida. Este abismo que vai em nós é a representação das nossas dores e das que causamos, também.

Pensar que o outro possa se utilizar da catraca livre mesmo tendo o dinheiro da passagem é estar do lado de cá. E ter em mente a tranquilidade de uma resposta como, “mas por que ela faria isso?”, é estar do lado de lá. E entre estas duas frentes, um abismo. Remover esta distância e outras tantas nas quais vivemos talvez seja o nosso grande papel a ser desempenhado aqui.

Termos a mente incrédula, acostumada ao nosso modelo mental, e perguntar: “e se a pessoa tiver dinheiro, mas simplesmente não quiser pagar?”, é mais que acreditar na corrupção e no mal que vai em nós. Afinal, corrupto, além de outras coisas, é todo aquele que se utiliza de formas e de meios ilícitos para conseguir vantagens e ganhos pessoais. É assumir que há, entre nós, um ato de comportamento social, e não somente corrupção. Ou seja, a corrupção é uma consequência de algo grave: nosso comportamento social. Nosso estar no mundo.

Utilizarmos um benefício que não poderíamos deveria nos incomodar e nos impedir de agir. Mas por que isto ainda não é uma realidade em muitos lugares? A resposta está dentro de cada um de nós. E esta resposta passa por nos perguntar o que faríamos se víssemos uma catraca livre de pagamento a nossa frente?

Ainda não consumimos a Ética, como deveríamos, pela nossa falta de experimento. Nossas vivências deveriam cobrir esta falta. Mas infelizmente não dão conta. Quando as chances surgem, que são inúmeras, sempre estamos ocupados com o desnecessário. Poucos são os experimentados. Aquelas pessoas que, na essência e na atitude, entendem o sentido disto, a catraca livre é uma realidade.

Invejar aquele que já usufrui das catracas livres seria o mesmo que abdicar da possibilidade de termos e de vivermos esta mesma situação. Quando invejamos o outro, além de buscarmos desestabilizar o bem que há nele, destruímos a nós próprios nos impondo limites que nunca existiram. Portanto, se há algo cuja vivência também gostaríamos de ter, por que não vamos buscar? O primeiro passo é sempre o mais difícil, porém é ele que determina o sucesso ou não da caminhada.

Estar do lado de cá do abismo, como ainda estamos, requer uma certa dose de alienação. Ela nos permite não enxergar o óbvio e aquilo que tropeça a nossa frente. Sabemos que há o lado de lá e até achamos bom e bonito, mas nos parece, num primeiro momento, um tanto utópico aquele lugar. Por isso, ficamos aqui, mesmo.

Falar sobre estes abismos que há em nós é falar sobre as nossas curvas que, ao fazê-las, nos defrontamos conosco mesmos. Mas assustados, tratamos logo de buscar um retorno. Queremos estar do lado de lá, mas quando acessamos o caminho, ele nos assusta e recuamos.

As catracas livres representam aquele que avança e que caminha. Não há milagres. Há esforço, busca e abnegação do que não serve mais, daquilo que dificulta o acesso para o outro lado. E para chegarmos lá, nossos abismos precisarão ser tratados e curados.

Curamos e tratamos os nossos abismos quando deixarmos de dar as mãos para a omissão. Quando ela deixar de ditar as respostas da nossa vida. Omissão é uma falta de atenção para com a vida. Uma ausência.

Curamos e tratamos os nossos abismos quando nos enxergarmos e nos apropriarmos do problema como realmente nosso. E é nosso. Ao fazermos a pergunta: “e se a pessoa tiver dinheiro, mas simplesmente não quiser pagar?” é importante dizer que “esta pessoa” simplesmente pode ser a gente mesmo que, num momento de fragilidade e de imoralidade, utilizamos um benefício indevidamente.

Se quisermos, portanto, estarmos do lado de lá do abismo, será preciso reforçarmos os calçados porque a caminhada será longa.

A cura somente virá quando enxergarmos o valor e a necessidade dela. E valorizando a cura, respostas como a da vendedora de bilhetes: “mas por que ela faria isso?” serão comuns entre nós.

Os abismos existem porque precisam nos dizer algo. Existem porque os criamos. Aprofundam-se porque damos espaços e acomodações a eles. Perpetuam-se porque a arrogância do saber ainda nos faz companhia diariamente. Integram-se a nossa rotina porque a nossa soberba em achar que somente o outro é que poderá usar a catraca indevidamente faz eco em nossas mentes e em nossos corações.

Os abismos existem para nos fazer entender que de profundidade eles entendem. A medida que o tempo passa, eles se fortalecem e crescem. E quando nos damos conta e olhamos para eles, eles também olharão para nós, como disse Nietzsche, nos chamando a atenção para que a gente não se transforme no próprio abismo.

A vida nos dá chances inúmeras de transpormos os nossos abismos e de até não permitirmos o nascimento deles. Mas onde estávamos quando essas chances chegaram?

Não nos cabe criticar um País em detrimento do outro, comparar um povo a outro, mas sim o que estas atitudes diferenciadas representam para nós e qual é o nosso distanciamento em relação a elas. Problemas todas as nações possuem. Mas escolher mudar este patamar depende da atitude individual.

Catracas livres: ainda não temos por um limite imposto a nós mesmos. Estamos distantes disto porque assim construímos este distanciamento. Assim alimentamos os nossos abismos.

Catracas livres: um caminho ainda não percorrido, mas possível.

Catracas travadas e livres são a representação da mesma face. Do mesmo abismo. Se queremos ir mais longe e chegarmos ao outro lado, é bom começarmos logo o trabalho. Planejamento, intensidade, vontade e regularidade serão ferramentas necessárias.

Abismos existem para serem vencidos. Abismos vencidos, espaços trilhados e conquistados. Quando encurtarmos os abismos e alongarmos as nossas pernas, os distanciamentos estarão fadados ao declínio.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Lao-Tsé, filósofo e escritor da antiga China, que diz:

“Para ganhar conhecimento, adicione coisas todos os dias. Para ganhar sabedoria, elimine coisas todos os dias”.

Conhecimento técnico nós temos. Conhecemos, por exemplo, muitos vieses do nosso caráter para saber de nossa capacidade de utilizarmos a catraca vazia, principalmente se estivermos com pressa ou se ninguém estiver vendo. Mas sabedoria, que é o conhecimento da vida, capaz de nos permitir dizer: “- mas por que ela faria isso?”, somente eliminando coisas todas os dias, como o supérfluo, o desnecessário, o tendencioso e o marginal. Esta limpeza nos fará enxergar as catracas livres, e o mais importante: permanecerão livres até que alguém, verdadeiramente, precisar usá-la. E este alguém poderá ser a gente mesmo.

domingo, 15 de abril de 2018

Feche os seus parênteses

Nossos lentos avanços mostram e evidenciam os nossos retrocessos. A tecnologia na qual todos estamos inseridos, o mundo tecnológico no qual vivemos e o saber que achamos que temos somente porque somos ágeis nos dedos e nas teclas, rápidos nas postagens e fluentes na navegação na rede, na realidade, marcam nossos lentos avanços. Poderíamos estar mais longe.

A tecnologia é fundamental e nos ajuda muito. Todo o agradecimento a ela. Desmerecê-la seria, no mínimo, leviano e insensato. Ela nos proporciona avanços e acessos a lugares e a questões inimagináveis até pouco tempo. Encurta distâncias, traz descobertas, possibilita estudos, proporciona facilidades. Não me refiro, portanto, ao bem que ela traz, porque ele está claro, mas sim ao mais longe que poderíamos estar se não fosse o nosso lento caminhar, o nosso desvio de rota e de atenção ao que verdadeiramente importa. E este lento caminhar, quando poderíamos avançar, nos dá evidências dos retrocessos que vivem em nós.

A tecnologia deveria existir para nos servir e não o contrário. Ela deveria existir para nos ajudar a sermos melhores e a fazermos, deste mundo, um lugar mais belo de se viver.

Estamos muito expostos. Muito disponíveis. Muito acessíveis. Muito de muito. Muito do muito. Isto denota as carências e faltas que habitam em nós, mas que insistimos em colocá-las para debaixo do tapete. Este excesso de exposição é aprovado por nós. Colocamo-nos no centro das atenções e queremos todas as atenções. Somos localizáveis o tempo todo porque também assim o permitimos. Colocamo-nos como vítimas de uma situação que buscamos, de uma posição que gostamos de estar: a da exposição. Quando não estamos expostos de alguma forma (comentários nas redes, fotos, vídeos, likes, etc) é como se estivéssemos à margem da vida. É como se algo nos faltasse. Uma sensação de alguém oferecer uma festa e não nos convidar. Conferimos um poder às redes e à tecnologia que não deveríamos. Isto tudo nos faz criar vínculos e laços com o desmedido, desnecessário, efêmero. Faz-nos ficar viciados na novidade, no curto, no raso, no superficial.

Superestimamos o som da mensagem que chega e paramos imediatamente o que estamos fazendo para ver sobre o que se trata. Quando recebemos um zap e não respondemos na mesma velocidade daquele que nos enviou, somos cobrados. Quando ligamos para o celular de alguém e este mesmo alguém não atende, ficamos aflitos. Uma postagem no facebook foi realizada por um amigo desconhecido e indiferente à nossa vida, mas imediatamente curtimos ou, no mínimo, colocamos algum comentário. O twitter nos encaminha um e-mail dizendo que temos atualizações que são, muitas vezes, inúteis e desprovidas de conteúdos de qualidade, mas que damos uma passadinha lá.

São tantas as janelas abertas na parte inferior do nosso computador, que o sol mal entra nas janelas verdadeiras da nossa casa. Perdemo-nos no meio de tantas informações, mas o conhecimento está à margem há tempos. O que fazemos com tudo o que nos chega?

Valorizamos a nossa agilidade na navegação, elogiamos os mais jovens pela desenvoltura com que manuseiam as máquinas, acessamos notícias, zapeamos na rede. No final do dia, para onde exatamente fomos? Aquilo tudo nos construiu ou não?

O tempo é uma moeda com a qual não podemos brincar. Além de não aceitar desaforos, costuma cobrar pela inabilidade do uso.

Somos interrompidos a todo o momento não por causa da tecnologia, mas sim por causa de nós mesmos que nos deixamos interromper a qualquer hora, momento e circunstância. A questão não é a tecnologia, mas sim nosso agir diante isto. Criamos um monstro, e agora não conseguimos mais controlá-lo e nem viver sem ele.

Vivemos excessos de interferências que nos causam sobreposições. Estes excessos de interferências e de interrupções simbolizam o nosso retrocesso. Um retrocesso que nos faz ainda falar sobre os mesmos velhos assuntos que, apesar de ressurgirem com outras roupagens, possuem a mesma essência. A violência é um destes velhos e mesmos assuntos. A nossa agressividade ainda é um velho assunto. A covardia e o egoísmo ainda são velhos assuntos, mas que agora se apresentam de forma tecnológica.

Abrimos tantos parênteses ao falarmos, que nos perdemos. O que estávamos falando mesmo?

imagem tirada da internet

Estamos ansiosos por informações que não sabemos o que fazer com elas. Esta ansiedade cria instabilidade. E na instabilidade, obviamente, nada se estabelece. Um livro de 50 páginas se torna grande. Pensar exige um transbordar de nós próprios. E como acontecer este transbordamento se logo ali há mensagens para serem lidas agora?

Senso de urgência e de prioridade são distintos de falta de triagem e de filtro para selecionarmos o que, verdadeiramente, importa. Como tudo se tornou urgente, como uma das medidas do sucesso se tornou o imediatismo, o pensar e o refletir realmente estão ficando fora de moda. Mas desconfio que este não seja o melhor caminho.

Coisas vão sendo colocadas sobre as outras, janelas abertas sobre as outras, mensagens sobre as outras. Sobreposições camuflam a mesmice, o retrabalho, o ineficiente, o favorecimento de alguém, o cansaço. Sobreposições nos dão a falsa sensação do trabalho, do pertencimento e da utilidade porque criam necessidades desnecessárias, que somente serão percebidas lá na frente, quando alguém quiser resolver algumas velhas questões.

Portanto, sobreposições interessam àqueles que querem nos desviar da rota e do caminho.

Textos são lidos mecanicamente porque há algo pulando aqui na nossa tela, clamando nossa atenção. São tantas as irrelevâncias que nos chamam a atenção, que aquilo que necessita, de verdade, do nosso olhar, muitas vezes fica para segundo plano. É uma pena.

Somos o tempo todo interrompidos. É fundamental compreendermos que interrupções, discretamente, sugerem uma troca de contextos. Elas nos tiram do lugar no qual estávamos, que poderia ser um lugar necessário. O pior é que muitas vezes não voltamos para este lugar certo e necessário. E a nossa oportunidade de transformação e de reflexão se perde no meio dos erros construídos por nós, e por uma sociedade que anseia pelo rápido e pelo novo para que não tenha tempo de lidar com aquilo que demanda tempo: nós.

Quando somos interrompidos, invariavelmente, paramos de fazer o que estávamos fazendo para atendermos a algum chamado. E muitas vezes um chamado que poderia esperar ou até que não deveria ser atendido.

Interrupções são um compartilhamento do nosso tempo. Com ou sem a nossa autorização. Um
desperdício de tempo com eventos diferentes.

A interrupção e a interferência forçam uma mudança que nos transfere da nossa rotina.

Estamos fragmentados, viciados em novidades, em notícias curtas, em manchetes que nada dizem. Interrupções têm prioridade, mas estão se tornando a regra. Ou não?

Que a gente se desligue dos cliques imediatos e das respostas prontas para que possamos nos ligar nas possibilidades daquilo que poderemos ser.

Estar o tempo todo conectado nos faz abrir muitos parênteses e nos ausentar de nós mesmos. Quando fechamos os nossos parênteses, abrimos espaços em nossas mentes para o pensar e para o ir além. A conexão tecnológica é importante e fundamental. Mas que saibamos delimitar espaços e tempos. É isso. Mais que isso, é delegar o indelegável. É permitir invadir espaços preciosos de tempos que poderiam ser utilizados para a ação e reflexão.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Rubem Alves, um escritor atemporal, que diz:

“No silêncio, mora o mundo.”

Por que, então, este silêncio nos incomoda tanto? Acredito que seja porque nunca aprendemos a silenciar os nossos ruídos, que são muitos. E as interferências e interrupções cumprem bem o papel de não permitirem nos ouvir.

A realidade nos traz a velocidade da interrupção e da interferência a todo momento. Estarmos o tempo todo conectados e velozes apenas nos dedos, nos tira a velocidade do pensar e a possibilidade de nos revisitar e enxergar o que nos perturba.

Viver é bem mais complexo que a própria realidade. Ainda mais sob os efeitos cruéis e ineficientes de tantas interferências e interrupções. Por isso, é preciso parar para que se possa seguir. Um seguir firme, sustentável e focado, mesmo que interferências e interrupções insistam em nos distrair. Quando chegarmos neste ponto, certamente não teremos mais tantas janelas abertas na parte inferior do nosso computador. Porque outras, bem mais importantes, terão sido, há tempos, abertas.

domingo, 8 de abril de 2018

Ditos ocos, ouvidos moucos

Sonhar é viver, e viver é sonhar. Um depende do outro. Um completa o outro. Quando enxergamos isto, o nosso compromisso com a vida se torna sólido, verdadeiro e profundo, e todas as possibilidades que ela nos oferece são lucidamente percebidas por nós. No entanto, esta lucidez e fluidez com que percebemos este sonhar e este viver, ou seja, nossas possibilidades, vão cedendo e perdendo espaço na mesma medida que dedicamos tempos preciosos para ouvirmos o desnecessário, o vão, o tolo, o inútil. Portanto, deixar de ouvir algumas vozes, alguns ruídos e barulhos faz todo sentido. Ouvidos moucos são bem-vindos.

“Ditos ocos, ouvidos moucos”, diz o provérbio português.

Onde estão os nossos sonhos? Dentro das nossas vidas. Para enxergá-los, será necessário silenciar as nossas tormentas internas e calar vozes que teimam em nos desviar da rota que buscamos trilhar. E infelizmente muitas vezes elas conseguem. E triunfam.

Sonhar e realizar é maravilhoso. Mas nem sempre sonharemos e realizaremos. Faz parte da vida e do nosso processo de construção e de consolidação como seres autônomos que somos ou que, no mínimo, buscamos ser.

Sonhos realizados significam que andamos de mãos dadas com o tempo e com a vida. Sonhos ainda não realizados podem significar um convite do tempo e da vida para que nossas mãos estejam estendidas. Assim eles podem nos alcançar.

O tempo e a vida sempre nos darão pistas que revelarão os motivos da realização e da não realização dos sonhos. Acima de tudo, acreditar e desenvolver as condições para. Se vamos conseguir, somente o caminho dirá. Guimarães Rosa diz que “...a realidade está na travessia”. Portanto, nossa realidade está no sonhar, no viver e nos pés que precisamos tirar do chão se quisermos avançar, apesar de eles nos conectarem com a base.

Ouvidos moucos nos ajudam a não afrouxarmos diante à vida. Ajudam-nos à concentração no que, verdadeiramente, importa. Fernando Pessoa nos provoca dizendo:

“Os meus sonhos são mais belos que a conversa alheia.”

Aquele que deixou de sonhar, normalmente, já não tem muito mais o que fazer. E por conta do tempo ocioso que resta a ele, comumente tenta e busca destruir o sonho do outro. E destruir o sonho do outro são conversas alheias.

É preciso fazer ouvidos moucos para aqueles cuja capacidade de sonhar se perdeu.

Deixar de sonhar nos causa desequilíbrios. Por isso, aquele que se perdeu de sua capacidade de sonhar busca apoio nos ombros e ouvidos alheios.

Todo aquele que deixou de sonhar, deixou de viver. E se não estivermos atentos, faremos companhia a esse cujo sonho se tornou desconhecido.

Ouvidos moucos nos blindam de interferências que poderiam nos fazer desviar da rota. Eles não são sinônimos de alienação ao que precisa ser ouvido por nós, mesmo que seja algo difícil como uma crítica ou a constatação de que ainda não estamos prontos. A vida nos transmite recados e é preciso termos a humildade para ouvi-los. Ouvidos moucos são, fundamentalmente, ferramentas necessárias que nos ajudam e fortalecem a nossa caminhada. Utensílios imprescindíveis para não abandonarmos o caminho e a rota porque sabemos que estamos na direção correta.

Sonhar é fundamental para aquele que vive. É o movimento que conduz. É o recuo como refúgio. É o arriscar para se acertar. Quando não desistimos, o sonho permanece.

O sonho ilumina nossas estradas. É ele quem nos acomoda. A falta de sonho nos deixa desconectados com a vida. A lua perde todo o sentido.

Sonhar nos ajuda a ser seletivos e objetivos. O tempo nos exige isto.

Aquele que sonha ouve os seus silêncios. Faz o caminho de volta para se reencontrar. Aquele que sonha segue as próprias marcas deixadas no chão. Desta forma, o caminho de volta fica mais fácil e familiar.

O homem que sonha é um corajoso, um destemido.

As conversas alheias são os excessos diários que cumprem o papel de nos chamarem à reflexão. São exatamente os excessos que nos fazem refletir sobre a necessidade do limite. São os excessos de exposição que nos fazem refletir sobre a importância e lucidez da reclusão e da preservação. Estas conversas alheias e desnecessárias servem para nos fazer refletir sobre a relevância do silêncio. Elas não nos permitem sonhar. Falam muito e ocupam espaços não autorizados. Entram e se alojam. Elas nos intoxicam porque nos tiram da relação conosco.

É preciso tempos vazios para a contemplação. Nela, os sonhos ressurgem. Reaparecem. Descem das estrelas, aonde os colocamos, para alcançarem as nossas mãos.

Os sonhos são a prova de que a vida existe. E a vida é a prova de que se é possível sonhar.

O sonhar nos torna humanos e singular a nossa experiência. Exige tempo, reflexão e construção. Quando deixamos de sonhar para nos conectar, abrimos mão de um espaço de construção dentro de nós.

É preciso fazer ouvidos moucos para que conversas alheias não tenham vez conosco. Pois como disse Fernando Pessoa, os nossos sonhos são mais belos. E são mesmo!

Que as conversas alheias, os barulhos, interrupções, desestímulos sejam apenas belas oportunidades para reforçarmos aquilo que não queremos.

Que os nossos sonhos nos encontrem na bela vida que vivemos. Os sonhos nos constituem. Revisitá-los é como olhar para nós mesmos.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Victor Hugo, romancista e poeta do século XIX, que diz:

“Eu caminho vivo no meu sonho estrelado.”

Que a nossa vida seja este caminho vivo, como uma representação dos nossos mais belos sonhos estrelados, como disse o Poeta. Somente quando calamos as vozes neutras e dúbias, é que as estrelas podem ser vistas. Quando damos vozes a vozes desprovidas da crença no sonho, as estrelas choram e se escondem para não serem vistas.

Que a gente não tenha pressa para preencher as nossas lacunas. Elas indicam o caminho para os nossos sonhos, para a nossa vida. Enquanto nossos sonhos existirem em nós, estaremos vivos e o melhor: sonhando.