“Quem me detesta tanto assim, para me
atacar até em sonho? Quis saber. E neste instante, vi minha imagem refletida no
espelho. ”
imagem tirada da internet
A autoria deste pensamento é de Lygia
Fagundes Telles, uma das mais importantes escritoras brasileiras. Por meio de
sua obra vasta, rica e profunda, ela aborda, sem rodeios, os vários e complexos
mundos do humano. Sem meias palavras. Sem demora.
Lygia Fagundes Telles, no meu
entendimento, é uma destas autoras e escritoras que nos tira do lugar comum. Que
nos convida a nos levantar.
A reflexão proposta por ela é real e
imprescindível, se quisermos nos conhecer e buscar sermos a melhor versão de
nós mesmos. Porém, é preciso nos levantar e caminharmos até o espelho para conhecermos
o que nele há refletido.
O que vamos enxergar no espelho? Só a gente
poderá saber. Ninguém mais.
Vivemos num mundo construído por nós. Vivemos
o que criamos. Tanto por nós quanto pelo outro. E a nossa criação nem sempre é
merecedora de aplausos. Assim como a criação do outro também. Muitas vezes nos
envergonhamos de nossas atitudes, de nossas criações. E em outros momentos, nos
sentimos orgulhosos do que fizemos, do que causamos, do que criamos.
A nossa boa criação afeta o outro. A
nossa má conduta afeta o outro. E a nós também.
A boa criação do outro nos afeta. A má
conduta do outro nos afeta. E a ele também.
E em meio a este caos de todas as ordens,
vamos nos equilibrando numa fina corda invisível que vai se ajustando e se
moldando frente às questões que se abrem. Enquanto esta nossa fina corda vai
nos sustentando, nossos diversos e diferentes papéis, na condição de humanos,
vão sendo mantidos e vividos. Porém, quando esta fina corda se rompe por
inúmeras razões, a nossa sustentação fica à deriva. Ficamos desequilibrados.
Caímos.
É como se esta fina corda rompesse o
silêncio e rompesse com o silêncio. Um silêncio vazio, cheio de perguntas e com
poucas respostas. E mesmo as que há, são questionáveis. E é nessa hora que
vamos ao espelho. E para a nossa surpresa, nos enxergamos lá. Estamos do lado
de lá do espelho.
Deveríamos ficar felizes ao nos
reencontrarmos no espelho. Deveríamos nos enxergar lá e nos ver de verdade.
Deveríamos nos cumprimentar e nos interessar por nós. Deveríamos querer
investigar o motivo pelo qual aquela fina corda nos derrubou.
Deveríamos...deveríamos...deveríamos...são
tantos os deveríamos que o que deveríamos, acabamos deixando para depois. Só
que o depois não nos espera. Não importa o seu motivo, nem o meu e nem o nosso.
Muito menos não importa o motivo do outro...
E neste esquecer de fazermos o que
deveríamos, o nosso espelho se torna o nosso inimigo. Torna-se uma ferramenta
poderosa para perseguirmos a nós mesmos. Olhamo-nos no espelho e simplesmente
não gostamos do que há lá. Mas por quê?
É preciso buscar estas respostas. E os
caminhos para esta busca somente nós sabemos.
Atacamos a nossa imagem porque assim fica
mais fácil. Quando atacamos e agredimos algo é porque estamos desistindo da
luta. A agressão é uma forma mais rápida de não precisar lidar com as nossas
questões. Sou agressiva para dizer que tenho medo. Sou agressiva para afastar o
inimigo. Sou agressiva para me fazer de forte e não precisar explicar.
Toda pessoa agressiva é carente de
ferramentas para lidar com o mundo, e consequentemente com as suas questões. A
agressividade não deveria nos representar. Mas como nos atacamos até em sonho,
como disse Lygia Fagundes Telles, como dizer que a agressividade não nos representa?
Rejeitamos, muitas vezes, a nossa imagem
refletida no espelho e a atacamos para que nossas fraquezas sejam
justificáveis.
O outro pode não gostar da gente. Podemos
ser ridicularizados pelo outro. A sociedade pode nos rechaçar, pode nos forçar
a saída. Mas isto não poderia ser o estopim para nos atacarmos frente ao
espelho e nos colocarmos no fim da fila.
Precisamos aprofundar as nossas questões
morais e íntimas. Somente desta forma, acredito, poderemos entender os motivos
de recusarmos a nós mesmos. Precisamos perseguir as nossas questões. São elas
que nos estimulam a irmos para o espelho.
Adélia Prado, outra escritora
imprescindível, dizia que “a mulher é desdobrável”, no sentido de
multiplicidade. Roubo esta frase para dizer que “somos todos desdobráveis”. É
preciso enxergar todas estas nossas multiplicidades e investirmos tempo para
conhecê-las. E o espelho é um excelente começo.
É preciso sair da horizontalidade do
pensamento e partirmos para a verticalidade. A linearidade do horizontal não
nos representa. Somos por demais complexos para nos contentarmos com o reto,
sem curvas. O vertical sim, nos representa. No mínimo, no trajeto vertical,
teremos de lidar com as inconstâncias.
Precisamos nos reconhecer nos papéis que
assumimos na vida. E um deles deveria ser o de ter maturidade para se olhar no
espelho sem se atacar. Somos dotados de histórias e é preciso respeitá-las
porque elas nos constroem.
O que se vê no espelho não é um espaço
construído, mas em construção. E uma construção sólida somente se dá quando
aprendemos a andar pelas estradas esburacadas da vida.
São muitas as hipóteses que podem
explicar os motivos que nos levam a nos atacar. E creio que uma delas seja o
desejo de sermos sempre o protagonista na vida. Não o protagonismo que assume
para si a responsabilidade e segue. Refiro-me àquele protagonismo criado por
esta sociedade (no caso, todos nós) que acredita nas falsas ilusões, nos velhos
chavões e tem, nas luzes e no palco, suas referências de vida. Então, quando
não somos estes protagonistas criados, a nossa imagem fica distorcida, para
nós, no espelho. Não nos reconhecemos.
Ser sempre o protagonista não significa
ser vitorioso. Só significa que você é o centro das atenções da vez, está no
palco e alguém acendeu as luzes para você. Somente isto. Mas daí a ser um
vitorioso há larga distância. Buscar ser sempre o protagonista é muito
diferente de buscar sempre conquistas na vida.
Querer sempre ser o protagonista nos levará
para um caminho sem volta. Um caminho solitário e triste de competições,
angústias e aparências. Não há como sempre ser o protagonista.
Querer sempre conquistas na vida nos
levará para um caminho de redescobrimento de nós mesmos. Conquistas. Simples
assim.
Quando perseguimos o caminho de
conquistas, competimos com nós mesmos, e não com o outro. Querer conquistas é
genuíno, legítimo, nos traz um movimento que produz e que cria.
O caminho do protagonista nem sempre tem
conquistas.
O contrário do protagonista é o estar
ofuscado e ausente. Anônimo. E quem diz que os anônimos não têm conquistas? A
conquista se dá pelo percorrer, pelo avançar. E não pelo aparecer, pelo se
mostrar, pelo ser reconhecido, pelo ego. E o protagonismo criado ocorre porque
alguém colocou você no palco. E você acreditou que ali era o seu lugar.
Olharmo-nos no espelho não deveria nos
fazer mal. Mas em algumas vezes faz, e muito. Precisamos mergulhar em nossas
subjetividades para buscarmos estas respostas. E isto é um exercício
individual. Difícil, porém prazeroso. Redescobrir-se é caminhar por caminhos
construídos pelos seus pés e não pelos pés dos outros. Isto já valerá a pena.
Enfim, são tantas as reflexões, porém
único é o caminho: o espelho. Que tanto pode ser concreto e visível, como
interno e subjetivo. Ou os dois juntos. Não importa. O que importa é passarmos
a nos enxergar neste espelho, seja ele interno ou externo. Quando nos enxergarmos,
inevitavelmente enxergaremos o outro. E enxergar o outro é uma forma de se
enxergar e de trilhar um caminho de conquistas.
O convite está feito. Mas é preciso se levantar
e caminhar. Caminhando aumentamos de tamanho.
Para encerrar o texto, mas não a
reflexão, quero compartilhar um pensamento de Carlos Drummond de Andrade, que
diz:
“Porque eu sou do tamanho daquilo que
sinto, que vejo e que faço, não do tamanho que as pessoas me enxergam. ”
Sábias palavras. Somente quem se respeita
e persegue conquistas e não protagonismo, sabe o seu tamanho. E pode olhar
corajosa e respeitosamente a sua imagem no espelho e reconhecer-se nela.