Há um pensamento que diz: “se mudarmos
o começo da história, mudamos a história toda.” O começo é sempre a base sobre
a qual construímos, inauguramos formas de convívio conosco e com o mundo, e evitamos
ausências que nos custarão caro. Todo o começo (base) é, portanto, imprescindível,
porque ele permite que nossos pés conheçam a textura do caminho que começa a surgir
e que será necessário percorrer.
A reflexão deste texto propõe um
pensar sobre algo que dificulta, e muito, a nossa percepção de necessidade de
mudança deste começo, desta base, se preciso for, para que possamos ter condições
de reorganizarmos as nossas rotas, o nosso caminhar e assim, reajustarmos a
nossa história toda. Quando percebemos, em tempo, que é preciso mudar este
começo, temos mais chances de termos um caminho eficiente, preciso e verdadeiro.
E o que dificulta esta necessidade de mudança da base, deste começo de história
é o cultivo da procrastinação. Um fantasma em forma de hábito que, frequentemente,
assombra aqueles que permitem intimidade e aproximação com o supérfluo, que
conversa com o raso, resumido e com o oco.
Perceber as necessidades de
mudanças, ao longo de toda a nossa trajetória, é essencial. No entanto, no
começo, é mais crítico e crucial porque as diretrizes e as linhas ainda estão
sendo traçadas. O trem ainda está parado, na estação. Os rabiscos ainda são
rabiscos, passíveis de ajustes e combinações. Mudar os começos colaboram, e
muito, para que o desenho e a obra possam ter roteiros consistentes, menos
amadores.
Não estarmos atentos às
necessidades de mudanças da base, do começo, nos coloca na banalidade, nas ocorrências
em recortes, nas aparências, nos picados com intervalos. Estarmos atentos às
necessidades de mudança da base, do começo, nos retira dos sintomas tolos, confusos
e nos dá clareza sobre o significado dos nossos sinais, das nossas manifestações
e da relevância da nossa inteireza, da nossa essência, sem ou quase nenhum
intervalo.
Etimologicamente, procrastinação significa
“aquele que é a favor do amanhã, coloca-se à frente da causa para o amanhã,
aquele que se lança e se joga à frente, para o amanhã”. Do latim pro (em
favor de, diante de, à frente) + a palavra latina crastinatus (amanhã). Aquele
cras (amanhã) famoso, escrito nos pés de Santo Expedito. Uma pessoa que
procrastina é alguém que desempenha um papel principal no se lançar a favor de
algo para se fazer amanhã.
Temos relação com isso? Conseguimos
nos reconhecer?
imagem tirada da internet
Hoje ou amanhã? Não um hoje literal,
sem pensar, sem planejar, não um sair fazendo. Mas um hoje que entende a urgência
de buscarmos as mudanças primeiras que precisam ser feitas. Sem isso, nossa
história fica à deriva, à espera de um bote que nos salve.
Sabemos que não há garantias, que
a qualidade das nossas relações depende de experiências vividas e construídas
por meio do tempo, do exercício diário do levantar-se, e que a imprevisibilidade
é um item obrigatório da nossa lista. Mas atuar nos inícios, mudar os começos,
se necessários, apesar de não haver garantias, fará que o socorro chegue mais
rápido, e aumentará a chance de termos uma história menos dolorida.
Por que procrastinamos? Porque,
de certa maneira, achamos que assim nos protegemos. Buscamos proteção o tempo
todo. Mas a verdadeira proteção reside na avaliação acerca de quem somos, e
isto é infinito, um exercício eterno, diário. Só que fazer isso cansa e muito. Dói.
Por isso, deixamos para amanhã com a esperança, quase infantil, de que o amanhã
nunca chegue para nos cobrar com as contas sobre o capacho. É urgente fazermos
uma avaliação realista sobre quem somos e sobre o que nos acontece. De posse disso,
talvez, possamos nos proteger mais, mas não procrastinar como sinônimo de
proteção. Somente o fazer, o conhecer e o buscar do conhecimento protege. A
procrastinação, pelo contrário, expõe, descuida e nos deixa ao relento e ao
abandono.
Procrastinar é um ir adiando, agendando,
protelando. É um ir para um lugar que ainda não fomos porque o adiamento foi a
nossa parada de contemplação. Um adiantamento programado porque não queremos
encontrar os sofrimentos presentes das nossas encostas. Um adiamento para entrarmos
no mundo. É um ir à cata de facilidades, resumos, técnicas milagrosas, receitas,
truques infalíveis.
Procrastinar é uma forma de fazer
vistas grossas para as coisas profundas que não podem ser simplificadas. Mas
como existem influências que nos diminuem, como o curto, o raso, o rápido,
vamos deixando para amanhã, que o amanhã Deus pensa. Vamos sendo este “a favor
do amanhã, do fazer depois” e damos graças porque o amanhã sempre, para aquele
que procrastina, raramente chega.
Sentimos frio porque não fizemos
as mudanças necessárias na base, no inicio da história. Por isso, agora, o frio
intensificou-se, e a mudança em toda a história fica, se não impossível, prejudicada.
A prevenção é vital para que a gente não se torne patológico. Prevenção como sinônimo
de perceber a necessidade da mudança no início, para que toda a história possa
ocupar patamares versáteis e universais.
A procrastinação evidencia o
nosso lado permissivo. Acomodamo-nos como se não pudéssemos interferir. Entregamos
a nossa caneta ao acaso, sem nos lembrar de que o acaso adora nos fazer companhia.
Somente assim ele surge: com a nossa anuência, disponibilidade para o erro,
indulgência mórbida e, o pior de tudo: receptividade. Somos um caminho de
linhas retas e fáceis quando agimos desta maneira. Precisamos nos mover para
provocarmos e reproduzirmos efeitos, movimentos, resultados das mudanças que
fizemos no início, nas nossas bases. Ao fazermos isso, tiramos os nossos vagões
estacionados para vivermos a relação com o essencial, não mais com o superficial.
Procrastinar é alongar os
nossos erros, agravá-los. É mais que deixar para amanhã. É um amanhã agravado,
angustiado e com lágrimas. Um viver amanhecido de um amanhã mofado que poderia
ter sido, mas não foi.
Precisamos dar o espaço para que
as coisas consigam andar e ajustar a nossa história. E não procrastinar será
imprescindível, para que isso possa acontecer. Fácil? Não. Mas quem nos prometeu
facilidades, além das fórmulas e receitas mágicas da autoajuda?
Não podemos esperar pelo “despertar
da nossa conscientização” de necessidade da mudança para que o todo possa
também ter chance de mudar, não acredito nisso. Acho um discurso moralizante,
não funciona. Acredito, sim, numa reflexão diária, como um excelente exercício de
se propor, de se lançar para o fazer com aquilo que se tem à mão. Um trabalho
de obras. Somos esta obra: uma obra inacabada, inconclusa, incompleta, mas que
caminha, que faz, que cai, que segue. Não há fórmulas e receitas. Não há o
momento do despertar. Este momento nasce dos pequenos momentos, e não de algo
pronto e imediato. Se prestarmos atenção aos aprendizados diários que a vida,
de forma generosa e empática, dilui para nós, a nossa visão deixará de ficar
turva e o nosso caminhar será o nosso grande gerúndio.
O convite está feito. Urgente
mudarmos o eixo sobre como as coisas são apresentadas. Um olhar agudo sobre as
necessidades de mudança dos começos, da base, para que o todo seja vivo. E com
isso, podermos ocupar o lugar que há tempos a vida insiste em nos oferecer.
Há palavras que nunca param de
nos dizer algo. São os clássicos. E procrastinação é uma destas palavras. Com um
olho treinado, a procrastinação é convidada ao esquecimento.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento ácido de Santo Agostinho, um homem que, em
parte da vida, procrastinou, que diz:
“Deus prometeu perdão para o seu
arrependimento, mas não um amanhã para a sua procrastinação.”
Que possamos desejar e buscar um
amanhã como um lugar do saber que se quer chegar. Um lugar que a construção nos
ajudará a alcançar. Um amanhã como sinônimo de esperança, de possibilidades de
construção, de dinamismo. Mas não desejar e buscar um amanhã para servir como
depósitos de nossas pendências, de nossos viveres amanhecidos, enrugados e
entristecidos por não terem tido a chance de terem sido.