É comum acharmos que somos
invejados e não invejosos. É comum falarmos mais sobre nós e pouco ou nenhum
interesse pela fala do outro.
É comum aguardarmos horas numa
sala de um médico qualquer. É comum acharmos que a corrupção sempre é do outro.
É comum ultrapassarmos pelo
acostamento porque o nosso motivo
sempre se justifica. É comum a tecnologia substituir as nossas mãos
obrigatórias.
É comum a violência disfarçada de
assertividade. É comum a vaidade pintada de autoestima.
É comum a pressão por discursos
mais rápidos e eficientes. É comum o essencial ter perdido o lugar para o
banal. É comum o eu porque o nós pediu afastamento.
É comum a construção ter se
tornado ultrapassada. É comum a quantidade ter se tornado sinônimo de
qualidade, apesar de muitos dizerem que não. A gentileza de mentir ainda
existe.
É comum a fala vazia ter ocupado
cada vez mais espaços. “Fale para que eu
te veja”, dizia Sócrates. É comum considerarmos amigo aquele que pensa como
nós. Aquele que pensa diferente, ou não sabe o que diz ou é nosso inimigo.
É comum a pausa ser
constrangedora porque os vazios, há muito, deixaram de ser espaços de
construção e de reflexão. É comum naturalizarmos o que não poderíamos, e
abrirmos os braços para a banalização.
É comum a opinião do outro ser a
extensão da nossa. É comum o quadrado do vizinho ser sempre o melhor. É comum a
injustiça sempre acontecer com a gente.
É comum entregarmos o fútil para
alimentarmos a futilidade de alguém que tem, na trivialidade, sua marca de
expressão. É comum acharmos que a nossa história daria um livro e a do outro
nem numa página de livro de subliteratura caberia.
É comum o vício nas novidades
porque o atemporal cansa. A insustentabilidade da novidade nos situa nos
degraus debaixo da vida que ajudamos a construir, nos acomodando numa cegueira
confortável. A atemporalidade tira as vendas dos nossos olhos, desfaz o pacto
com a dependência e nos situa no tempo: nosso verdadeiro lugar.
É comum o insustentável criar a dependência e o atemporal criar raízes.
É comum darmos poder ao outro por meio da nossa submissão.
É comum jogarmos nossos rascunhos
fora. No entanto, neles, são construídos os verdadeiros passos da nossa vida. O
sentido está no rascunho e na travessia de Guimarães Rosa, e não na obra
pronta.
É comum que o erro do outro se
torne instrumento para persegui-lo. É comum descartarmos a oportunidade de
discussão sobre o significado daquele erro. É comum desconsiderarmos que o erro
é, também, o processo de compreensão do outro. Todos erram. Mas é comum o outro
errar e a gente acertar.
É comum descontinuarmos uma
relação. Concertá-la é para os antigos. É comum delegarmos para a tecnologia um
saber que deveria ser nosso. É comum vivermos correndo, sem tempo e com agendas
sem espaços. Aquele que diz ter tempo, ou é um desocupado ou está mal
informado.
Atualizar, caminhar, construir,
fazer, ser: verbos em desuso. O comum ocupando espaços largos e sem a mínima
cerimônia. O comum tendo acesso a nós porque assim o aceitamos como parceiro de
conduta. Ter um conivente deste quilate
nos autoriza a estar, uma vez que também é comum este mesmo estar ocupar o
lugar do que deveria ser.
O comum como forma de um ser
debilitado. Um ser manco, mas que se apoia em muletas longamente construídas.
Na sala de espera, pessoas estão
aguardando há uma hora. Uma das pessoas diz: “Não tem jeito, médico atrasa
mesmo.” E assim, autorizamos, por meio de cartas em branco, nossa sentença de
subordinação, de acatamento, de obediência. Porque é comum, também, darmos a
nossa voz àqueles que não a querem ouvir.
Ao mesmo tempo, é comum darmos crédito
a nossas contradições. Uma pessoa na sala de espera, ao ser chamada
pontualmente pelo médico, pensa: “não deve ser bom médico. Atendeu muito
rápido. Não deve ter tantos pacientes.”
Afundamos nas nossas contradições
porque elas nos conduzem e ditam as regras. Aceitamos o comum porque ajudamos a
construí-lo.
O comum faz moradia em nós. O natural seria que assim não fosse. O
comum não nos traz mais constrangimento. No entanto, o natural seria que assim
não fosse. De tão comum que o comum se tornou, ele agora é parte de nós.
Convidá-lo a se retirar seria como se parte de nós também partisse.
Acostumamo-nos com o irracional, com o ilusório, com o raso, com aquilo que não
nos convida a pensar. Pensar é pesado e trabalhoso.
Comum é aquilo que todos fazem. Inclusive
a gente. Aceitamos o comum sem o mínimo acanhamento, como se fosse algo
aceitável. Naturalizamos o que, de longe, é natural. Pode ser comum machucar
alguém por meio de um olhar repressor, mas não é natural.
O comum vem de todos. O natural
vem da natureza, daquilo que deveríamos fazer, daquilo que é essencial. É comum
andarmos por cima. O natural seria aprofundarmos os nossos pés.
Concedemos ao comum o nosso dever
do pensar e do refletir. No momento que o inserimos em nossas vidas, ele passa
a entrar em nossas casas sem, ao menos, tocar a campainha. Acomoda-se e faz
tronco em nós. Nossos troncos retorcidos e falíveis. Mas é comum também não
percebermos isso. A natureza tem feito, há tempos, o seu papel. Ela segue o que
é natural. Mas e a gente?
Na fila de um Banco, apenas um
caixa. Uma forma direta de a Instituição dizer que não somos bem-vindos àquele
lugar. Isso é comum. Mas quem se importa? Somos desprezados e desprezamos. Uma
linguagem comum de todos os tempos, não é exclusividade da contemporaneidade.
O comum que dá guarida à
banalidade, que dá o berço para a ausência da moral, para o nascer do desprezo.
Coisas que naturalizamos, mas que não poderíamos. Coisas que aceitamos como
parte de uma construção doente, mas que nossos olhos não enxergam. Aceitamos o
comum como natural, ora porque “faz parte”, ora porque nem percebemos que o
comum nos marginaliza, nos aprisiona, nos acovarda.
Na formatura dos médicos, o
juramento solene dito pelo aluno traz “o compromisso de considerar a saúde do
doente como a primeira preocupação”. No
consultório ao lado, o médico que pede exames desnecessários apenas para ganhar
mais dinheiro. Ou o convênio que diz que “sem carteirinha, não tem
atendimento”, como diz a música da Legião Urbana.
Faz parte. “É comum”, alguém diz.
Fazer o quê? Num quarto de hospital, uma pessoa sofre com câncer. O estágio da
doença está avançado. E o médico diz ao enfermeiro: “se o paciente reclamar de
dor, nem faça mais nada.” Um crime ou um comércio de saúde? Acho que há espaço
para ambos. Enquanto tentamos provar, mais cenas como estas serão vistas como
comuns. Fazer o quê?
Os doentes morrem. Os marginais
se avolumam. Horas são perdidas a espera de atendimento porque seguimos agendas
vaidosas. Maus gestores se apropriam de um poder que não possuem. Os Bancos
lucram com a inflação que consome a vida alheia. O panetone, que é palco de
lucros desmedidos na época do Natal, impõe a presença dele, a nós, até o dia
das mães. Mas depois do Natal é comum uma
ofertinha. Precisamos agradecer por
isto? É comum, ainda por cima,
acharmos que fizemos um bom negócio comprando um panetone, de marca boa, a doze reais. Pobres que somos. O comum se
apropriando do natural, daquilo que deveria ser, que importa e investiga a
essência, essa que deveria estar a serviço.
O comum se apropria do indevido e
se serve exclusivamente. Esta é a meta. O natural não se apropria do exclusivo
porque sabe que toda construção sólida está no coletivo. Não sei se vamos
querer estar lá quando descobrirmos isso.
O comum cega. Traz caminhos
rasos. Convence-nos sobre a inutilidade do pensar. Oferta-nos uma rapidez
ineficiente. É como se caminhássemos milhões de quilômetros, só que na direção
errada. Chegará o dia (ou será que já chegou?) que pediremos informação ao
viajante do caminho e ele nos dirá: “desculpe, amigo. Você andou quilômetros na
direção errada. Vai precisar refazer o caminho.”
O natural agrega, alimenta e
avança. Traz caminhos tortuosos, densos e repletos de obstáculos. No entanto, o
único possível se não quisermos caminhar quilômetros em vão.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação atualíssima de Maquiavel, um dos principais escritores da literatura mundial, que
diz:
“Todos veem o que você parece
ser, mas poucos sabem o que você realmente é.”
É comum parecermos, e sermos medidos e identificados por isso. Mas o natural seria que soubessem, inclusive
a gente, quem realmente somos. Vivemos num estar, num parecer. Um comum de vida
que todos conhecem, todos sabem, todos veem. Mas, infelizmente, não somos. E
quando somos, poucos são os que percebem, poucos são os que sabem. Há,
portanto, um verdadeiro abismo entre o que é comum e o que é natural.
Um abismo que frequentamos porque
foi criação nossa. Sem exceções.