domingo, 19 de maio de 2019

Abismos construídos

É comum acharmos que somos invejados e não invejosos. É comum falarmos mais sobre nós e pouco ou nenhum interesse pela fala do outro.

É comum aguardarmos horas numa sala de um médico qualquer. É comum acharmos que a corrupção sempre é do outro.

É comum ultrapassarmos pelo acostamento porque o nosso motivo sempre se justifica. É comum a tecnologia substituir as nossas mãos obrigatórias.

É comum a violência disfarçada de assertividade. É comum a vaidade pintada de autoestima.

É comum a pressão por discursos mais rápidos e eficientes. É comum o essencial ter perdido o lugar para o banal. É comum o eu porque o nós pediu afastamento.

É comum a construção ter se tornado ultrapassada. É comum a quantidade ter se tornado sinônimo de qualidade, apesar de muitos dizerem que não. A gentileza de mentir ainda existe.

É comum a fala vazia ter ocupado cada vez mais espaços. “Fale para que eu te veja”, dizia Sócrates. É comum considerarmos amigo aquele que pensa como nós. Aquele que pensa diferente, ou não sabe o que diz ou é nosso inimigo.

É comum a pausa ser constrangedora porque os vazios, há muito, deixaram de ser espaços de construção e de reflexão. É comum naturalizarmos o que não poderíamos, e abrirmos os braços para a banalização.

É comum a opinião do outro ser a extensão da nossa. É comum o quadrado do vizinho ser sempre o melhor. É comum a injustiça sempre acontecer com a gente.

É comum entregarmos o fútil para alimentarmos a futilidade de alguém que tem, na trivialidade, sua marca de expressão. É comum acharmos que a nossa história daria um livro e a do outro nem numa página de livro de subliteratura caberia.

É comum o vício nas novidades porque o atemporal cansa. A insustentabilidade da novidade nos situa nos degraus debaixo da vida que ajudamos a construir, nos acomodando numa cegueira confortável. A atemporalidade tira as vendas dos nossos olhos, desfaz o pacto com a dependência e nos situa no tempo: nosso verdadeiro lugar.

É comum o insustentável criar a dependência e o atemporal criar raízes. É comum darmos poder ao outro por meio da nossa submissão.

É comum jogarmos nossos rascunhos fora. No entanto, neles, são construídos os verdadeiros passos da nossa vida. O sentido está no rascunho e na travessia de Guimarães Rosa, e não na obra pronta.

É comum que o erro do outro se torne instrumento para persegui-lo. É comum descartarmos a oportunidade de discussão sobre o significado daquele erro. É comum desconsiderarmos que o erro é, também, o processo de compreensão do outro. Todos erram. Mas é comum o outro errar e a gente acertar.

É comum descontinuarmos uma relação. Concertá-la é para os antigos. É comum delegarmos para a tecnologia um saber que deveria ser nosso. É comum vivermos correndo, sem tempo e com agendas sem espaços. Aquele que diz ter tempo, ou é um desocupado ou está mal informado.

Atualizar, caminhar, construir, fazer, ser: verbos em desuso. O comum ocupando espaços largos e sem a mínima cerimônia. O comum tendo acesso a nós porque assim o aceitamos como parceiro de conduta. Ter um conivente deste quilate nos autoriza a estar, uma vez que também é comum este mesmo estar ocupar o lugar do que deveria ser.

O comum como forma de um ser debilitado. Um ser manco, mas que se apoia em muletas longamente construídas.

Na sala de espera, pessoas estão aguardando há uma hora. Uma das pessoas diz: “Não tem jeito, médico atrasa mesmo.” E assim, autorizamos, por meio de cartas em branco, nossa sentença de subordinação, de acatamento, de obediência. Porque é comum, também, darmos a nossa voz àqueles que não a querem ouvir.

Ao mesmo tempo, é comum darmos crédito a nossas contradições. Uma pessoa na sala de espera, ao ser chamada pontualmente pelo médico, pensa: “não deve ser bom médico. Atendeu muito rápido. Não deve ter tantos pacientes.”

Afundamos nas nossas contradições porque elas nos conduzem e ditam as regras. Aceitamos o comum porque ajudamos a construí-lo.

O comum faz moradia em nós. O natural seria que assim não fosse. O comum não nos traz mais constrangimento. No entanto, o natural seria que assim não fosse. De tão comum que o comum se tornou, ele agora é parte de nós. Convidá-lo a se retirar seria como se parte de nós também partisse. Acostumamo-nos com o irracional, com o ilusório, com o raso, com aquilo que não nos convida a pensar. Pensar é pesado e trabalhoso.

Comum é aquilo que todos fazem. Inclusive a gente. Aceitamos o comum sem o mínimo acanhamento, como se fosse algo aceitável. Naturalizamos o que, de longe, é natural. Pode ser comum machucar alguém por meio de um olhar repressor, mas não é natural.

O comum vem de todos. O natural vem da natureza, daquilo que deveríamos fazer, daquilo que é essencial. É comum andarmos por cima. O natural seria aprofundarmos os nossos pés.

Concedemos ao comum o nosso dever do pensar e do refletir. No momento que o inserimos em nossas vidas, ele passa a entrar em nossas casas sem, ao menos, tocar a campainha. Acomoda-se e faz tronco em nós. Nossos troncos retorcidos e falíveis. Mas é comum também não percebermos isso. A natureza tem feito, há tempos, o seu papel. Ela segue o que é natural. Mas e a gente?

Na fila de um Banco, apenas um caixa. Uma forma direta de a Instituição dizer que não somos bem-vindos àquele lugar. Isso é comum. Mas quem se importa? Somos desprezados e desprezamos. Uma linguagem comum de todos os tempos, não é exclusividade da contemporaneidade.

O comum que dá guarida à banalidade, que dá o berço para a ausência da moral, para o nascer do desprezo. Coisas que naturalizamos, mas que não poderíamos. Coisas que aceitamos como parte de uma construção doente, mas que nossos olhos não enxergam. Aceitamos o comum como natural, ora porque “faz parte”, ora porque nem percebemos que o comum nos marginaliza, nos aprisiona, nos acovarda.

Na formatura dos médicos, o juramento solene dito pelo aluno traz “o compromisso de considerar a saúde do doente como a primeira preocupação”.  No consultório ao lado, o médico que pede exames desnecessários apenas para ganhar mais dinheiro. Ou o convênio que diz que “sem carteirinha, não tem atendimento”, como diz a música da Legião Urbana.

Faz parte. “É comum”, alguém diz. Fazer o quê? Num quarto de hospital, uma pessoa sofre com câncer. O estágio da doença está avançado. E o médico diz ao enfermeiro: “se o paciente reclamar de dor, nem faça mais nada.” Um crime ou um comércio de saúde? Acho que há espaço para ambos. Enquanto tentamos provar, mais cenas como estas serão vistas como comuns. Fazer o quê?

Os doentes morrem. Os marginais se avolumam. Horas são perdidas a espera de atendimento porque seguimos agendas vaidosas. Maus gestores se apropriam de um poder que não possuem. Os Bancos lucram com a inflação que consome a vida alheia. O panetone, que é palco de lucros desmedidos na época do Natal, impõe a presença dele, a nós, até o dia das mães. Mas depois do Natal é comum uma ofertinha. Precisamos agradecer por isto? É comum, ainda por cima, acharmos que fizemos um bom negócio comprando um panetone, de marca boa, a doze reais. Pobres que somos. O comum se apropriando do natural, daquilo que deveria ser, que importa e investiga a essência, essa que deveria estar a serviço.

O comum se apropria do indevido e se serve exclusivamente. Esta é a meta. O natural não se apropria do exclusivo porque sabe que toda construção sólida está no coletivo. Não sei se vamos querer estar lá quando descobrirmos isso.

O comum cega. Traz caminhos rasos. Convence-nos sobre a inutilidade do pensar. Oferta-nos uma rapidez ineficiente. É como se caminhássemos milhões de quilômetros, só que na direção errada. Chegará o dia (ou será que já chegou?) que pediremos informação ao viajante do caminho e ele nos dirá: “desculpe, amigo. Você andou quilômetros na direção errada. Vai precisar refazer o caminho.”

O natural agrega, alimenta e avança. Traz caminhos tortuosos, densos e repletos de obstáculos. No entanto, o único possível se não quisermos caminhar quilômetros em vão.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação atualíssima de Maquiavel, um dos principais escritores da literatura mundial, que diz:

“Todos veem o que você parece ser, mas poucos sabem o que você realmente é.”

É comum parecermos, e sermos medidos e identificados por isso. Mas o natural seria que soubessem, inclusive a gente, quem realmente somos. Vivemos num estar, num parecer. Um comum de vida que todos conhecem, todos sabem, todos veem. Mas, infelizmente, não somos. E quando somos, poucos são os que percebem, poucos são os que sabem. Há, portanto, um verdadeiro abismo entre o que é comum e o que é natural.

Um abismo que frequentamos porque foi criação nossa. Sem exceções.