domingo, 30 de janeiro de 2022

Supletivo acelerado

Para este texto, parto de uma chamada num outdoor que dizia: “aqui, supletivo acelerado”. Fiquei, por alguns minutos, refletindo sobre este convite. Seria aquilo um convite? De qual espécie? Ou uma farsa disfarçada? Farsas precisam de disfarces quando elas não dão conta do tamanho do despenhadeiro.

Voltei para casa pensando sobre o escrito no outdoor, sem saber que o tema para o próximo texto estava escolhido. E aqui está ele. Obrigada, outdoor.

É justamente com atenção ao não dito, que o dito se apresenta e se desdobra a nossa frente, sem demoras. Um outdoor inofensivo e sujo, estático na forma, mas não no conteúdo. Parado estava sobre uma parede. No entanto, o conteúdo dele, criado por alguém que possivelmente não se formou por meio de supletivo, não era estático, pelo contrário, dinâmico e vivo.

Dependendo da intenção que há por trás do convite, porque sempre há, e se eu o aceitar, a queda será somente uma questão de tempo. Um convite feito assim, sem pretensões, soa sincero e singelo, nos favorecendo à miséria camuflada de vitória. E como não percebemos a nossa miséria trajada de vitória, não parecerá ofensa. E se ofendidos não estamos, se miseráveis não formos, se camuflados não percebemos, o sino continuará a nos chamar para a missa porque nada terá de novo. E, assim sendo, será o bastante, suponho.

Supletivos existem para cobrir chagas criadas por aqueles que se servem delas, ganham com elas. Nada existe que não beneficie alguém. Eles refletem uma ausência e uma arbitrariedade. Quem faz o supletivo hoje é porque não pôde estar ontem. E como este alguém não pôde estar ontem, o supletivo surge, cheio de acúmulos. Para escondê-los, aquele que cria a chamada do outdoor grita “aqui, supletivo acelerado”. E acelerado, como enxergar os acúmulos?

Acumular significa amontoar, reunir ou, num sentido mais esperançoso, “juntar terra em volta das raízes das plantas”, como nos traz o dicionário. Mas, não desejando ser pessimista, creio que o acúmulo que trago aqui carrega mais o sentido daquilo que excede e mata, do que daquilo que é juntado para nutrir a raiz de uma planta. Portanto, o nosso supletivo segue carregado de acúmulos amontoados por fazeres excedidos. Acumulados, como enxergar o que vai lá, embaixo? Como saber a entrelinha se tampouco as linhas compreendemos?

Compreender os acúmulos é imprescindível se quisermos compreender o que nos ameaça. Um grito de “supletivo acelerado” é uma ameaça, uma agressão. Como fazer um supletivo de forma acelerada se, justamente, fazer supletivo indica atraso de uma estrada que deveria ter sido percorrida? Por que correr? Para quê? “Quem ganha com esta correria?”, perguntaria o Padre Faria, de “O Conde de Monte Cristo”, obra do escritor francês Alexandre Dumas. É preciso descer as escadas para conhecer a razão pela qual compramos a necessidade de correr, nos vendida por vendedores habilidosos. Desçamos, então. Vou à frente, leitor, afinal, dei a ideia. Mas aonde estão os corrimões para que, no mínimo, possamos apoiar as nossas mãos, na hora do cansaço?

Sem corrimões, a descida é mais rápida. Sem eles para nos apoiar e nos favorecer à parada para questionar o que se vê, aceitamos os convites, obedientemente. Não sentimos a necessidade da busca das razões desta obediência, porque a nossa obediência não é percebida, é, apenas, consentida, o que é bem diferente. Uma obediência exata e de medidas alinhadas.

Quando há obediência com medidas certas, há lugar para buscar razões? Há espaço para a dúvida? Neste lugar de obediência eficiente, a própria razão se desajusta, não se conhece mais.

Triste perceber o quanto vão cheios os supletivos acelerados. O quanto servimos a esta submissão. E de tão submissos, achamos que ganhamos. Como é triste! Apressamos para perder. Aumenta-se o preço na prateleira sem que saibamos. Depois nos dão o desconto, agora querem que saibamos. Ficamos felizes. Agradecidos, servimos sem saber, até porque agora não querem que saibamos. Por isso o outdoor, a correria, o acelerado, a retirada dos corrimões que nos ajudam a parar para, no mínimo, descansar. Sem eles, não descansamos. Sem descanso, não paramos. Não paramos: um passo para não encontrar, não enxergar, não ler. Se não lemos, não podemos interpretar. Sem interpretação, sem compreensão, seremos iscas fáceis para uma matrícula apressada.

Não se pode negar a necessidade da pressa, da urgência, da rapidez quando se fizeram demandadas. Mas é preciso confessar este hábito que nos conforma a tudo ter de resumir em um parágrafo, no discurso curto. É preciso assumir a hostilidade de mantermos um olhar ausente sobre aquilo cuja urgência de discutir exige. Supletivo acelerado? Não estamos exagerando neste desespero de chegarmos a um lugar sequer traçado, no mapa? Como acelerar o supletivo se nem começamos a estudar? Por qual motivo insistimos no nosso funeral? Como avançar se insistimos em regredir? Que grande crença temos no declínio.

O supletivo é a vítima deste texto, não o vilão. Quem são os vilões? Todos nós, exceto o supletivo. Vilão não é, somente, o que cria o texto para o outdoor. Ou somente aquele que paga para alguém criar o texto. Vilão é, também, aquele que consente de forma indulgente a mendicância que é criada com a anuência de todos, sem exceções. Um mais, outros menos. Mas todos. De forma direta, indireta, contribuímos para o que vivemos. Nossa sociedade, e tudo o que nela há, é reflexo, não origem. A nossa conivência com o caminho esgarçado vem de longa data.

O que nos atrai tanto na pressa, no acelerado? Talvez certa repugnância pela necessidade de construir. A paisagem da caminhada não nos interessa, mas sim o fixo da chegada. Encostamos. Passamos rapidamente para dar tempo de passar pelas outras coisas rapidamente. O rápido é o nosso lugar-comum. Queremos. Assinamos. Aceitamos. Agrada-nos o outdoor com o convite de “aqui, supletivo acelerado”. Entretanto, agredimos aquele que, um dia, nos convidou a conhecer o que havia fora da caverna. O mito da caverna de Platão encontra verdade e soa feliz, em nós.

O rápido nos acena, simpático. O devagar quer diálogo. Escolhemos o aceno simpático. Dialogar é ultrapassado.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de José Saramago, que diz:

“Também é bom fazer perguntas quando se sabe que não irão ter respostas. Porque depois delas se podem acrescentar outras, tão ociosas como as primeiras, tão impertinentes, tão capazes de consolação no retorno do silêncio que as vai receber.”

Que mais perguntas sejam feitas, mesmo que respostas não nos forem dadas. Formular uma pergunta nos ajuda a acertar as nossas posições nas cadeiras, a buscar outros lugares, a nos incomodar com os fiapos rotos que ameaçam a nossa roupa, a aceitar o supletivo porque ainda é o que se pode fazer, porém fazê-lo com tempo para exercê-lo, apesar de ele ser uma estrada que nos deram por esmola. Perguntar exige que todos trabalhem, mesmo que apenas silêncios nos tenham sido devolvidos, como nos traz Saramago.

Fazer pergunta incomoda. E o incômodo traz vida, remexidos, trabalho, ação. Fazer pergunta aguça o olhar para estranhar “aqui, supletivo acelerado”. Perguntar obriga o outro a buscar. Perguntar é ato de recusa ao pronto, ao fast, à esteira da commodity. Perguntar é revolucionário.

Se ainda obrigatório for que a gente ouça o silêncio doado como migalha, pelos criadores do outdoor, que esse silêncio seja ouvido tão alto, tão alto, que o autor dele saiba que o ouvimos, e bem. Não há inocentes. Também construímos migalhas e damos aos outros como restos. Ou não? Um deserto vivido por todos nós, de conveniências, de convivências, de achados e de perdidos. Sem muita água. Porque ela vai escassa.