quarta-feira, 28 de junho de 2017

O que é dar certo?

Há muitas perguntas subjetivas na vida, e esta é uma delas. O que é dar certo? Não há uma resposta a esta pergunta. Não há receitas e fórmulas. Quem souber e tiver uma resposta pronta para esta questão, certamente está mal informado.

Gente com fórmulas e receitas prontas para questões complexas e, acima de tudo, subjetivas, não está preocupado em viver, em saborear a vida, em apreciar cada momento aqui, em se aprimorar e servir, mas sim na rapidez para aparecer, no entregar algo, mesmo que este algo seja completamente sem sentido. A preocupação está em corresponder às expectativas, mesmo que não saibamos quais são elas e para que servem.

No entanto, me parece que isto não corresponde ao que pensam aqueles jovens que realizaram uma festa à fantasia, num colégio no estado do Rio Grande do Sul, há algumas semanas. Sob o tema, “se nada der certo”, estes pobres alunos se fantasiaram de vendedores ambulantes, faxineiros, funcionários do Mc Donald´s, pedintes, moradores de rua, cozinheiros, atendentes do Grupo Carrefour. E o mais emblemático: alguns se fantasiaram de ladrão.


imagens tiradas da internet

Triste ver o racismo e o preconceito passeando livremente, sem qualquer tipo de retaliação, ocorrendo em um ambiente cujo conteúdo abordado deveria, por motivos óbvios, ser outro.

Esta festa ocorreu em dois colégios do Sul. E como sabemos que coincidências não existem, os dois colégios são frequentados por alunos de alta renda. O que isto nos traz de reflexões? Muitas coisas. E a primeira delas, é que, certamente, a maioria, senão todos, tem a sua mensalidade paga pelos pais. Estes alunos desconhecem, certamente, os bastidores necessários para que este tipo de mensalidade seja sustentada. Isso para dizer o mínimo.

Obviamente não podemos generalizar. Nem todos os colégios de alta renda realizam este tipo de aberração. Mas, infelizmente, o dinheiro e o poder deturpam e revelam a face dos que não conhecem a ética e o escrúpulo. E foi o que aconteceu nestas duas escolas cujos nomes deveriam ser divulgados como exemplos de desserviços prestados à sociedade.

São exemplos tristes e de uma pobreza inquestionável que sempre devem ser lembrados como modelos educacionais a não serem seguidos.

Após uma repercussão péssima socialmente, alguns pais de alunos e profissionais destas duas escolas desculparam-se em público, dizendo que isto não mais se repetirá. Um pouco tarde, ou não? E muito conveniente pedir desculpas depois que todos perceberam.

Para aqueles que colocam o dinheiro, o poder e o estatus em patamares questionáveis e inalcançáveis, dar certo é sinônimo destas conquistas materiais. E se não atingirem este patamar, não terão dado certo. E a consequência disto? Tornarem-se varredores de rua, por exemplo, na opinião deles.

O que estes alunos ainda não entenderam, se é que um dia entenderão, é que agir da forma como eles agiram e pensar da forma como pensam, isto sim é não dar certo. São pobres cegos no caminho, perdidos em busca de algo para alimentar o ego construído em falsas bases. E quando descobrirem isto, poderá ser tarde demais. Muito tempo terá sido perdido e desperdiçado.

Estes alunos estão construindo um passado por meio deste tipo de atitude. Passado que no futuro será cobrado. Lá na frente, quando olharem para trás, encontrarão, sim, o passado deles, mas serão passados que não terão traduzido uma vida plena de sentido. O passado destes pobres aspirantes a seres humanos traduzirá formas tortas, imprecisas, ininteligíveis, inacessíveis. Uma visão triste do que se transformaram devido à busca pela incoerência.

Quando olharem a si próprios, num futuro incerto, verão insignificância em seus espelhos de ouro e de luxo. Serão prisioneiros do externo, do supérfluo, das aparências, do dinheiro. Uma prisão que até terá as portas abertas, mas como eles estarão com suas máscaras tão presas ao rosto, como disse Fernando Pessoa, não enxergarão a saída das prisões. E lá permanecerão.

Dar certo não há fórmulas, mas caminhos que não o trilhado por estes pobres jovens que já estão e são perdidos, ainda no começo da vida. Uma vida desperdiçada nos disfarces, naquilo que não importa, no desrespeito, no racismo e no preconceito. Isto, sim, é não dar certo.

O mote da festa, em si, estava representado naqueles tristes jovens. Os arrogantes de agora e do futuro. Pessoas cegas que dispensam guias por os considerarem desnecessários. Mas que tropeçam em pequenos obstáculos pela mais pura falta de jeito e de cuidado com tudo o que cerca a vida, a vida de verdade, e não esta que eles vivem.

Uma triste realidade que possui cúmplices: pais, educadores, escola, Estado etc. Mas que somente se pronunciaram após barulhos nas redes sociais e na sociedade, em si. Barulhos?

Até quando vamos agir apenas porque alguém gritou e reclamou? Por que temos tamanha dificuldade de ouvir os silêncios? Silêncios que constroem, que marcam, que edificam e que deixam marcas sólidas e verdadeiras.

Apesar da pouca idade, mas o suficiente para saberem o que fazem, estes pobres jovens encontram-se embrutecidos, cegos e alheios às necessidades do outro, mostradas, todos os dias, pelas janelas das espaçosas sacadas aonde vivem estes pobres jovens. Vivem embrutecidos devido à falta de uma educação ética e sadia, além da baixa moral que possuem.

Não se mede o certo pelo dinheiro, pelo luxo, pelo poder, mas sim pela capacidade que se tem de lidar com as próprias fraquezas, de se aceitar o que se tem e de buscar mais com honestidade e dignidade. Reconhece-se que o outro está no caminho do dar certo quando assume, sem hipocrisias, a sua condição de incompleto e de imperfeito. A imperfeição e a incompletude são características dos fortes e dos que estão no caminho do dar certo.

Deveríamos ser medidos pelas perguntas que fazemos e não pelas facilidades que buscamos e que temos, na vida. Deveríamos ser valorizados pelas construções que ajudamos a levantar e não pelos títulos que temos, muitas vezes custeados pelos pais e sem sentido algum.

Denegrir a imagem dos trabalhadores expostos nas fotos, somente evidencia o conceito torto e impreciso que estes jovens têm sobre eles mesmos.

Dar certo é uma questão moral. É aprender a lidar com as nossas pequenezas, incertezas e inferioridades. Isto independe da profissão e da condição social e financeira. Mas aqueles pobres jovens, falidos em conceitos preconceituosos e infelizes, demorarão bastante tempo para fazerem esta descoberta.

Dar certo é assumir o nosso ínfimo tamanho frente àquilo que precisa ser feito. É assumir que nada somos. E que o pouco que sabemos revela quem somos, como disse o Filósofo. E aqueles pobres jovens nada sabem. Ou melhor, pouco sabem sobre a vida. E o que pensam que sabem camufla a imagem deles refletida no espelho: uma imagem de alguém cuja índole enferrujou.

E não se espantem, pobres jovens, se ao buscarem estes menosprezáveis trabalhos por conta de nada mais ter dado certo, vocês encontrarem as respostas para o que seja dar certo. E, espantados, aprenderem o significado de palavras como valores, ética, moral, decência que serão incluídas, por compaixão, no dicionário de vocês. Dicionário que não constava naquela listinha de materiais comprados para vocês, pelos pais, quando iniciaram suas vidas, inclusive escolares.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Einstein, que diz:

“Não tente ser bem sucedido; tente, antes, ser um homem de valor.”

Dura e necessária reflexão. O convite de Einstein e de tantos outros que vão à frente já foi feito. Resta a nós aceitá-lo ou não. A nossa decisão será determinante para, de verdade, darmos certo na vida.

Quando o nosso olhar não puder mais distinguir os presidentes de Empresas e os limpadores de rua, teremos merecido, então, ocupar um lugar na categoria dos que deram certo na vida, de verdade.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Nossas escolhas nos revelam

imagem tirada da internet

imagem tirada da internet

As duas imagens falam por si. As palavras que escreverei aqui serão coadjuvantes. A imagem e, principalmente, a mensagem, já foram ditas. Um olhar atento às fotos para não precisarmos de uma palavra sequer.

A primeira imagem é da menina Rivânia, oito anos, moradora de uma cidade do interior de Pernambuco. Na semana passada, durante uma enchente, a avó dela pediu para ela buscar um abrigo, se proteger e tentar salvar o que fosse o mais importante. A menina, então, no auge da maturidade dos seus oito anos, salvou a mochila que leva à escola, com os livros e materiais de estudo.

A segunda imagem, uma pessoa corre com uma mala recheada de dinheiro. Uma cena que nos é familiar, infelizmente. Há poucas semanas, um certo deputado foi visto saindo de uma pizzaria, em São Paulo, correndo com uma mala cheia de dinheiro, fruto de propina e de roubo. Dentro da mala, R$ 500 mil, dinheiro suficiente para comprar muitos livros para várias Rivânias que existem no Brasil e no mundo.

Duas imagens fortes, mas com sentidos opostos. Duas malas, mas com conteúdos distintos.

Nossas escolhas nos revelam. Nossas escolhas dizem o que carregamos dentro de nossas mochilas. Nossas escolhas nos conduzem pela vida. Nossas escolhas nos reduzem ou aumentam o nosso tamanho.

Existe um pensamento que diz que “para se conhecer alguém, de verdade, é preciso dar dinheiro e poder a este alguém. ” Concordo. Acredito. Mas acho que além de poder e de dinheiro, ferramentas que nos permitem conhecer alguém, há uma outra ferramenta tão poderosa quanto: o desespero. Em situações desesperadoras ou quando nos sentimos acuados, nosso melhor e nosso pior ângulo se mostram. E também nesta hora somos revelados.

As duas cenas acima mostram isto. São situações extremas de desespero e de medo. Quando nos encontramos nestes momentos, quem somos, verdadeiramente, surge e se confirma. Nossos valores são colocados à prova, à mostra e evidenciamos a nossa força ou a nossa fraqueza, a nossa moral ou a nossa imoralidade. A nossa ética ou a nossa completa falta de escrúpulos.

O que escolhermos fazer, será o resultado de nossa caminhada até aqui.

O poder e o dinheiro: duas forças que constroem e que destroem. As duas coisas juntas. Ora uma, ora outra. Ou uma ou outra. O conteúdo de nossas mochilas determinará esta resposta.

O desespero e o medo: duas forças que escondem e que revelam. E o que colocamos na mochila será determinante para localizarmos os esconderijos aonde escondemos aquilo que não queremos que seja revelado.

Na primeira cena, uma completude. Apesar da tristeza da cena acinzentada, a postura decidida e consciente de Rivânia, segurando a mochila da escola, não nos deixa margem a dúvidas. Os seus oito anos de idade são suficientes para ela saber o que fazer aqui. Esta menina é uma prova de que maturidade independe de idade, mas sim de condição moral.

Na segunda cena, uma incompletude. Uma valorização do vazio, do insosso, daquilo que não tem importância, do excesso, do supérfluo. Um não-querer ouvir a própria fraqueza porque a fala se tornou intolerante e impiedosa. Um passo dado maior que a perna. Um desprezo ao silêncio que diz muito, mas que não é ouvido. Muitas das nossas dificuldades resultam da nossa incompletude, da nossa imperfeição.

Na primeira cena, o comportamento que traduz o que se busca; na segunda, um comportamento construído em bases de mentiras cuidadosamente selecionadas, muitas vezes, no começo da vida e nos valores que a família não possuía. Então, como transmiti-los?

O mal é barulhento. O bem é silencioso. O homem que corre com a mala cheia de dinheiro tem o passo apressado que produz barulho. A menina silencia, no barco, agarrada a sua mochila.

O mal que aparece porque é indiscreto e desnecessário. O bem que não aparece porque silencia e é omisso, muitas vezes. Uma omissão que surge porque acreditamos numa coerência e numa racionalidade inexistentes. Uma omissão que nos leva à submissão.

Por que não descontruir comportamentos falidos para entender a raiz do insucesso? Porque isto seria aceitar o insucesso e a nossa completa falta de jeito para muitas coisas. Seria aceitar que erramos e que é preciso refazer o caminho, mesmo que isto custe e demore muito tempo.

Ensinaram-nos a pensar. Mas será que nos ensinaram da forma correta? É preciso trilhar caminhos pisados para conhecermos melhor o significado das nossas pisadas. Somente assim, acredito, saberemos o conteúdo, ao certo, de nossas mochilas. Sem sustos, sem medos.

Na mala com dinheiro, uma banalização da vida, um acesso fácil àquilo que não é nosso, um encurtamento de caminho que jamais poderia ter sido diminuído, um roubo de nossas memórias, de nossa moral, de nossa ética. Uma exposição do lixo que esgota a bilheteria. Todos querem ver. Uma amostra, a céu aberto, de nossas baixas medidas e de nossa régua em nossos pés, demonstrando que ainda mal começamos a caminhar. Uma caminhada que, certamente, fará doer muito, e muito, os nossos pés, caso queiramos voltar para a trilha, se é que um dia estivemos nela. Mas ela existe. Tudo é uma questão de crença.

Na mochila da escola, um abraço de valorização da vida. Do saber o que se quer. Do entendimento sobre o que se faz aqui. Uma sensibilidade que não se ensina, se sente. Uma combinação do certo. Uma imagem que dispensa porquês. Uma imagem que emociona devido à profundidade do seu significado.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Monteiro Lobato, um escritor que também dispensa porquês, que diz:

“Um País se faz com homens e livros. ”

A Rivânia já entendeu isto, literalmente. A imagem dela, naquela canoa, não nos deixa dúvidas de que ela abraçou o que, verdadeiramente, importa.

Que possamos encontrar mais Rivânias pelo mundo, mostrando, orgulhosamente, o conteúdo do que carregam nas mochilas. Que possamos abraçar, além dos livros, propriamente ditos, mais certezas do certo, do justo, do ético. Que possamos abraçar o que, de verdade, for importante para nós, o que contribuir para que possamos ser melhores em todos os sentidos.

E que nossas mochilas, após se acostumarem a carregar o que, de verdade, importa, possam se engrandecer e aumentar de tamanho para carregarem, cada vez mais, conteúdos que revelem nossas sábias escolhas.

O que vai, portanto, dentro da sua mochila?

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Afiando os dentes

Era uma vez uma serpente venenosa que vivia, isoladamente, na Índia. Como não era sociável e nem gostava de conversa, ninguém se aventurava a passar por lá, aonde ela vivia, com medo de ser atacado. Vivia quieta e isolada.

Até que um bom homem, a serviço de Deus, foi até lá. A serpente, então, mais que depressa, o atacou. Após dominá-la, com o olhar sereno, o homem disse a ela:

- Minha irmã, por que você ataca e faz mal aos outros?

As palavras do bom homem eram de uma doçura comovente e, ao mesmo tempo, firmes e justas, fazendo que a serpente se sentisse envergonhada pelo que havia feito. Recolheu-se e não mais se ouviu falar de ataques da serpente naquela região.

O bom homem continuou o caminho e por onde passava, distribuía olhares serenos e amor. Após algum tempo, e após muito refletir, a serpente saiu da sua toca e, decidida a mudar, tomou uma decisão: procurar todos aqueles a quem havia prejudicado para reparar os seus crimes. A cada um que encontrava, se mostrava pacífica e pedia perdão. No entanto, a serpente não foi bem recebida por alguns que, inclusive, começaram a abusar da boa vontade dela e passaram a humilhá-la. Devido à submissão absoluta da serpente, todos passaram a apedrejá-la. Triste, a cobra se recolheu e não mais foi vista em público.

imagem tirada da internet

Algum tempo depois, o bom homem foi visitá-la. Ao encontrá-la num estado deplorável, perguntou a ela o que havia acontecido. Ela relatou, então, toda a história. Disse que desejava ser boa, se transformar e refazer o caminho de transgressões e de males que havia causado, mas que não estava conseguindo em função de perseguições e de apedrejamentos.

Após ouvi-la, o sábio respondeu:

- Mas, minha irmã, houve engano de tua parte. O conselho que te dei foi para que não mordesse mais ninguém e nem machucasse as pessoas, ao passarem aqui. Aconselhei, também, que não perseguisse o seu semelhante e que não matasse as pessoas como você estava fazendo. Porém, em momento algum disse para que você evitasse assustar os maus. Disse para você parar de atacar seus irmãos do caminho, mas não parar de dar a sua contribuição ao mundo. E o mais importante que te disse:

“- Não morda e nem fira o seu semelhante, mas o mantenha a distância mostrando os seus dentes e emitindo os seus silvos. ”

Em tempos conturbados, confusos e reveladores como estes nossos, é natural querermos fazer justiça com as nossas mãos, falarmos o que, verdadeiramente, pensamos, agirmos de acordo com o que achamos correto. Identificamo-nos com esta serpente, muitas vezes. Ela age rápido e resolve, em poucos minutos, o que a incomoda. Ela age de acordo com o instinto e com a percepção que faz do mundo e de tudo que a cerca.

Porém, em nosso caso, a racionalidade deve ser levada em consideração, e seguir nossos instintos e vontades, nem sempre será possível e nem sempre será o certo a ser feito. Mesmo que nossos instintos e vontades estejam certos e justos, a adequação precisa ser ouvida e praticada. Portanto, é preciso saber lidar com estas ambiguidades:

o querer fazer e poder
o querer fazer e não poder
o querer fazer e não dever
o não querer e ter de fazer
o fazer e não poder fazer
o não fazer e poder fazer

e saber que nem sempre, o justo prevalecerá, infelizmente. Nem sempre a nossa natureza poderá ser exercida. Quem já aprendeu a lidar com essas inconsistências e incongruências está mais adiante e consegue vislumbrar outros horizontes.

Ambiguidades e contradições que nos movem, nos completam, nos constroem e, o mais importante, nos mostram quem somos, de verdade. Elas nos ensinam o caminho certo ou nos reconduzem à rota, sinalizando que perdemos a mão em algum momento da estrada.

As ambiguidades e contradições são indissociáveis, por isto dão certo juntas. Somos estas duas coisas. Somos o resultado destas duas atuações dentro de nós.

A serpente que morde e mata porque faz parte da natureza dela.

A serpente que se arrepende, mas é incompreendida e apedrejada por pessoas que sofrem do mesmo problema dela: ambiguidades e contradições.

A serpente que deixa de ferir para ser ferida.

O homem que deixa de ser morto pela serpente para depois matá-la.

Escolhemos sempre as pontas: o equilíbrio ainda está muito distante da gente. E aqueles que já o encontraram, ou não estão mais aqui ou ainda são os incompreendidos do caminho.

Matar e apedrejar não são, definitivamente, as melhores escolhas, mesmo que isto vá ao encontro da nossa essência e da nossa natureza. Nem sempre a nossa essência e a nossa natureza devem ter asas. É preciso questioná-las. Muitas vezes elas precisarão ser transformadas e domadas. Mas o fato de não exercermos a nossa natureza integralmente não quer dizer que não podemos trazer parte desta natureza para ser exposta. E mostrar nossos dentes e nossos silvos é uma destas possibilidades.

O cerceamento de nossas ações é, por diversas vezes, realizado por nós. Precisamos saber ler as entrelinhas da nossa natureza para poder colocá-la em prática. Isto nos trará equilíbrio e conheceremos, de verdade, o valor do respeito.

Nem tudo pode ser dito, feito e falado. Mas sempre há o que ser dito, feito e falado.

Não se deve resolver as coisas por meio da brutalidade, da rispidez e da covardia. Mas também nada se resolve recolhendo-se para a toca e escondendo-se do mundo.

O que resolve o problema é a ação sobre ele precedido do conhecimento.

Mostrar nossos silvos e nossos dentes mostra que somos parte disto. E devemos ser. Não é possível delegar o indelegável. Ninguém pode mostrar os dentes e silvos por nós. Esta tarefa é nossa e acredito que estamos atrasados. Há tempos nossos dentes e silvos estão a nossa disposição. Mas por que não os usamos? Porque estão escondidos por trás da descrença que há em nós.

Quando são mostrados, evidenciam, também, as decisões que tomamos até aqui, as que poderíamos ter tomado e as que deixamos de tomar porque tivemos medo de mostrar os nossos dentes e fazer ouvir os nossos silvos. Muitas vezes mordemos e machucamos o outro por pura ignorância e inabilidade de lidarmos conosco mesmos. Mas também em muitas outras vezes, deixamos de participar da vida por puro desconhecimento de nossos dentes que, por nossa negligência, não estão devidamente afiados.

Nossas ambiguidades e nossas contradições: caminhos que conduzem ao mesmo lugar.

Que nos seja possível enxergar outros caminhos. E isto é o mais importante: enxergar estes outros caminhos. Que a imobilidade e a inatividade, no segundo momento da serpente, não seja a nossa escolha. E que o primeiro momento dela, a morte, também não seja a nossa escolha. Temos opções, mas é preciso saber identificá-las. Que diante do ataque, a nossa inteligência e o respeito por nós mesmos sejam os nossos mestres e os nossos condutores.

É preciso, portanto, que os nossos dentes estejam afiados para não sermos abordados de surpresa e de calças curtas.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento que diz:

“Uma alma sem respeito é uma morada em ruínas. Deve ser demolida para construir uma nova. ” (Código do Samurai)

O respeito por nós começa quando enxergamos janelas e portas abertas como solução para os nossos problemas. E fazer ouvir os nossos silvos e fazer ver os nossos dentes é o primeiro passo para que o respeito se estabeleça em nós. Que a nossa natureza seja questionada, se assim for necessário, como fez o bom homem para com a serpente. Por que matar se temos outras opções? Mas que, depois de questionada, consigamos transformá-la numa ação para o bem.

Morder e matar podem ser mais rápidos, mas de longe os métodos mais eficazes. Mostrar os nossos dentes e nossos silvos podem ser mais lentos, mas certamente os métodos mais sustentáveis e eficientes para que não haja ruínas dentro de nós. Com nossos dentes à mostra e nossos silvos sendo claramente ouvidos, não deixaremos dúvidas, para aqueles que tentam nos impedir a caminhada, sobre qual caminho escolhemos para as nossas vidas.

O caminho do respeito por nossa essência e por nossa natureza, mesmo que ela deva ser reeducada e transformada para quem sabe, um dia, ser capaz de equilibrar as nossas ambiguidades e nossas contradições. Sem ruínas, para que não sejamos forçados a fazermos nova construção.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

O equilíbrio acontece no desequilíbrio

imagem tirada da internet

Quando tentamos agir contra a nossa natureza, o resultado é o sofrimento e o desequilíbrio.

Sofremos porque tentamos manter uma aparência de quem não somos. É como se vestissem uma capa obrigatória em nós, e nos obrigassem a caminhar com ela. Mas como esta capa é curta e apertada, não cabemos nela. E aí nos machucamos: física e emocionalmente. No sentido físico, porque esta capa cria marcas em nós, evidenciando, a todo o momento, que aquele não é o nosso tamanho, e no sentido emocional, porque esta falsa capa vestida fica, a todo instante, iluminando nossa essência e nossos valores escondidos e camuflados, com medo de surgirem e de mostrarem a face.

Obviamente que nem tudo são flores quando investigamos a nossa natureza. Acredito, inclusive, que há mais espinhos que flores, na nossa natureza. Mas, o que verdadeiramente importa, é saber que temos a capacidade de transformar estes espinhos em flores. Investigar a nossa natureza e buscar o aprimoramento diário é tarefa árdua, mas recompensadora. Da mesma forma que sofremos se agirmos contra a nossa natureza, deixá-la completamente livre é abrir mão do autoconhecimento. É preciso, portanto, equilíbrio entre agir de acordo com o que somos (nossa natureza), versus compreender e aparar os espinhos de nossa natureza para que eles não firam e machuquem aqueles que fazem a mesma caminhada que a gente.

Agir de acordo com a nossa natureza é não fugir da nossa essência, é não abrir mão de quem somos. É assumir o nosso lugar no mundo.

É saber o que se passa em nossos avessos, entrelinhas, bastidores e porões e, mesmo assim, não desistirmos da gente. É fincarmos os nossos pés no chão e não cedermos o nosso lugar, simplesmente porque aquele é o nosso lugar.

E ao mesmo tempo que fincamos os nossos pés, olhamos as deficiências deles e assumimos que somos falíveis e inacabados. É preciso, pois, firmar os pés, sim, mas sem deixar de aprimorar as nossas pegadas, sem deixar de corrigir nossos passos e sem deixar de assumir nossas necessidades de crescimento.

Equilíbrio e constância: dois lados da mesma moeda, mas que duvidamos porque não os enxergamos. Ora partimos radicalmente para esquerda, ora para a direita. Por que não o caminho entre estas duas coisas? Simplesmente porque ainda o desconhecemos.

É como se participássemos do movimento de um pêndulo: os resultados obtidos serão mediantes à força e à forma com que as esferas foram manuseadas. Até que o equilíbrio se estabeleça, muito trabalho haverá de ser feito.

imagem tirada da internet

Aprendermos a lidar com isto é aliviar e amenizar as nossas dores. Não há atalhos e outros caminhos. Quando reconhecemos nossos desequilíbrios e nossas frustradas tentativas de ser quem não somos, teremos dado início ao processo de cura. É um longo caminho, mas de frutos no final, certamente. A dor do desequilíbrio e da consciência da imperfeição que há em nós precisa ser processada para poder ser tratada.

O desinvestimento em nós é a causa da dor. E isto faz paralisar a vida que buscamos e que queremos. Ninguém deve buscar a dor, obviamente. Mas reconhecê-la como constituinte de nossa personalidade é fundamental se quisermos buscar e chegar a um equilíbrio, assim como um pêndulo.

A dor e o desequilíbrio nos equilibram desde que não caminhemos por caminhos já caminhados.

Conhecemos a dor para reconhecermos a alegria. Conhecemos a solidão para reconhecermos a companhia. Conhecemos a escuridão para reconhecermos a claridade. Conhecemos o conflito para reconhecermos a paz.

O caminho se constrói com pedras e materiais pesados e densos. E a dor e o desequilíbrio fazem parte deste arsenal de materiais necessários para a nossa construção.

Acredito, de verdade, que chegará o dia que o sofrimento, as dores e os desequilíbrios não serão mais necessários para que nossa consciência caminhe sozinha. A alegria acontecerá, simplesmente. Sem motivos aparentes, sem despertadores. Seremos alegres pela alegria em si, mas não por termos vivenciado a tristeza. E neste dia, estes despertadores não serão mais úteis para nós. Terão caído em desuso por obsolescência, uma vez que o nosso despertar já terá acontecido. E aquelas capas que tentaram colocar em nós, e que também colocamos nos outros, não serão mais realizadas. Terão caído de moda.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com duas passagens do poema de Paulo Leminski, A Dor Elegante, que diz:

“Um homem com uma dor é muito mais elegante...carrega o peso da dor como se portasse medalhas...”

Que a gente não se porte elegante ao sofrer, ao sentir dores, forçando nossas costas para suportá-las. E que a gente também não se orgulhe delas como se fossem medalhas. Medalhas, estas, que não gostaríamos de ter ganho. Valorizar e buscar a essência que há em nós, fazer valer a nossa estada no mundo e fincar os nossos pés no lugar que é nosso, por direito e mérito, aliviará a dor de nossas costas. E, ironicamente, este comportamento diminuirá o nosso quadro de medalhas, pelo menos este.

E a segunda passagem do poema que convido à reflexão é:

“...não me toquem nessa dor. Ela é tudo que me sobra.
Sofrer vai ser a minha última obra. Ela é tudo que me sobra.
Viver vai ser a minha última obra. ”

Que a gente não faça de nossas dores, a dor do nosso próximo. E que nossas dores não sejam desculpas para a não realização. É preciso tocá-las para que possam ser reconhecidas.

Que a dor, jamais, seja a nossa última obra. Elas sempre existirão. Fazem parte da gente. Que a nossa última obra, seja, portanto, a nossa própria vida buscando, sem desistir, viver e conviver com as nossas dores e alegrias, num compasso que somente a própria vida conhece o ritmo. A nós, só cabe respeitar.