O “ainda” do título mostra um
certo cansaço, um certo desgaste. Ele me remete àquele disco riscado que tocava
na vitrola do meu pai. O mesmo trecho, a mesma faixa. A música não era só
aquilo, mas era só aquilo que tocava.
O ainda traz cansaço e desgaste.
E as reticências dizem que há muito o que fazer e que este assunto, pelo jeito,
vai longe...
Vai longe e vem de longe. Não é
de hoje que falamos sobre isto. Que ouvimos sobre isto. Que sofremos as
consequências disto. Todos nós sofremos. Não somente as mulheres. Todos, sem
exceções. Acredito que enquanto não nos apropriarmos deste assunto,
independentemente do nosso sexo, ele não será resolvido.
Há machismo em todo o mundo, não
somente aqui. É que como vivemos aqui, presenciamos muitos exemplos machistas e
isto se torna mais forte para nós. Mas ele é presente em todo o mundo.
Importante ressaltar que a História do mundo foi, essencialmente, escrita por
homens, e não por mulheres. E o Brasil não foi exceção. Isto já explica muitas
coisas. Mas as mulheres sempre existiram e sempre construíram. Onde elas
estavam, então, quando a história foi escrita e construída? Simplesmente elas
não foram convidadas para esta conversa. Por isto elas não estão nos livros e
nem nas grades curriculares das escolas. Mas elas sempre existiram. Poucas são
as lutadoras e guerreiras que são lembradas. Pouquíssimas. Se quisermos
conhecê-las, somente por meio de documentários e livros específicos. Será
necessário querer saber sobre elas e buscar este saber, porque isto
dificilmente será ensinado.
As mulheres, ao longo de toda a
história, sempre foram excluídas e desvalorizadas. Sempre precisaram lutar e
provar sua existência o tempo todo.
Passados anos, décadas e até
séculos, muitas coisas mudaram. Algumas para melhor, outras para pior. Mas a
luta contra o machismo atravessa os tempos e continua. Muitas conquistas foram
alcançadas às custas de vidas e tempo de outras mulheres. Avanços foram
atingidos graças à coragem de muitas delas, graças aos movimentos feministas
que tiveram sua força, sua expressão e sua necessidade muito bem representados.
Porém mesmo com estes avanços,
que não foram poucos, por que ainda retrocedemos em muitas circunstâncias? Por
que ainda nos demoramos com este assunto? Por que ainda valorizamos e
fortalecemos o machismo para que ele continue existindo?
O assunto é complexo e delicado
para acharmos que sabemos as respostas. Para acharmos que vamos resolver isto
de forma rápida. O machismo é, antes de tudo, um valor de uma sociedade (no
caso, a nossa) que está traduzido em atitudes e em comportamentos. E isto vem
de longe. Não é tão simples mudarmos um valor, um paradigma. Se machismo é um
valor, porque se assim não fosse não o praticaríamos, como mudá-lo? Como se
altera um valor? Ninguém tem esta fórmula. Mas uma direção, mesmo que remota,
para que um valor seja alterado é mudarmos as referências deste valor. E qual é
a referência do machismo? Em que ele se apoia? Qual é a sua base de referência?
imagem tirada da internet
A base de referência no qual o machismo
se apoia é a nossa sociedade. Somos machistas. Ponto. Precisamos quebrar este
modelo para outro ser escrito e reinventado. Só que mudar é muito difícil.
Implica conscientizar-nos a respeito e, acima de tudo, querermos esta mudança.
Criar outros modelos dá muito trabalho. Alguém precisa começar. E há tempos que
muitas mulheres começaram este belo trabalho. Muitas foram valorizadas, outras
preteridas e outras esquecidas. Mas todas iniciaram e é preciso continuar este
trabalho, que é de todos.
É preciso enfrentar o modelo que
não funciona e lutar pelo que funciona. Mas dá trabalho.
Nise da Silveira, a primeira
médica brasileira, nascida no século passado, foi uma mulher brilhante. Lutou
contra a forma agressiva como os pacientes eram tratados pela Psiquiatria e
revolucionou o tratamento dos doentes mentais, no Brasil. Em um documentário
sobre a vida dela, ainda estudante de medicina, ela conta que não havia
banheiro feminino na faculdade porque “ali” não era lugar para mulheres. Então,
para que banheiros? Os professores, todos homens, obviamente, não a deixavam
participar da aula de anatomia com os demais alunos porque diziam que aquela
não era profissão para mulheres. Ela precisou lutar por uma autorização e
assim, prosseguir seus estudos. E conseguiu.
Mulher firme e, acima de tudo,
com propósito e destemida. E isto tudo
na década de vinte! Este foi só um dos exemplos do que, com eficiência,
dedicação e propósito, aonde se pode chegar. E ela chegou muito longe. E muito
devemos a ela.
Um dos caminhos para que esta
reinvenção de modelo possa começar é pela educação. É redundante falarmos sobre
a relevância da educação. E não falo, apenas, da educação curricular, mas
daquela recebida em casa. Por que bola ainda é coisa de menino? Por que, ainda,
é a menina quem vai para a cozinha ajudar a mãe lavar louças? Por que é o pai
quem leva o menino para o futebol? Por que todos não lavam a louça e depois vão
ao futebol juntos?
Este é somente um exemplo para
incentivarmos o aprofundamento do tema. Mas há diversos exemplos e tantos outros
bem mais tensos e complexos. É só prestarmos atenção.
A pergunta é: quais cidadãos
queremos? Quais cidadãos estamos formando?
Ajudamos a resolver. Ajudamos a
destruir.
Ajudamos a cobrar. Ajudamos a
esconder.
Ajudamos a avançar. Ajudamos a
estagnar. Ora uma coisa. Ora outra coisa. Ora as duas coisas juntas. Queremos
mudanças, porém não queremos mudar. Que paradoxo, não? A mudança é sempre
necessária para o outro, mas não para mim. Eu não preciso mudar. O outro sim.
Aos homens foi dada uma autonomia
e um direito que explica, muito, as desigualdades e os caminhos tortos existentes
até hoje.
O machismo é somente uma
consequência da falta de educação, e não a causa em si. Somos mal-educados.
Nossa educação não é priorizada. Nunca foi. E o machismo tem as suas raízes aí,
fortemente construídas, mesmo que às escondidas. E quando chegamos à fase
adulta, quando somos colocados à prova, a nossa educação ou a falta dela vem à
tona. E o machismo é somente um dos reflexos da má educação que demos, que
recebemos ou que não tivemos acesso. Que tipo de educação estou dando? Qual
recebi? Quais são os meus valores?
Precisamos de políticas públicas
que ajudem a melhorar este caminho construído indevidamente, este caminho
torto, ineficiente e insustentável. Mas antes disto, precisamos de uma educação
que agregue, que englobe, que envolva e não uma educação que desagregue, que
exclua e que não envolva a todos. Mas a educação que não agrega ainda é a
vigente, ainda é a que se observa. Não na totalidade, mas ainda é fortemente
presente.
Enfim, o tema é vasto. Há muito o
que dizer. Muitos são os caminhos possíveis para mudarmos de patamar. Mas penso
que a educação seja o caminho mais lúcido para tal caminhada.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um maravilhoso ensinamento de Nise da Silveira, esta mulher
que fez da ousadia sua ferramenta de luta.
"É necessário se espantar,
se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade".
Que a história desta Mulher nos
sirva como novas bases de referências para que possamos criar uma sociedade
mais justa, mais sólida, mais ética. E, assim, sustentável.