Quem vê aquele senhor, parado
próximo à guia, verificando o celular, não diz que há poucos minutos ele descia
de um carro que estava em fila dupla. A fila dupla que duplica o que não
precisa: os entraves do caminho escolhido por aquele que faz errado e por
aquele que acata o que o outro faz de errado.
Os pés descalços daquele que não
tem o que entrar pela boca, muito menos o que vestir nos pés. Os pés descalços
daquele que sente a terra para acordar os seus sentidos. O descalçar para
estabelecer uma conexão sem intermediários: os sapatos que escondem as marcas
daquele que anda, que busca, com ou sem calçado.
A mãe que veste um agasalho no
filho mais novo porque começou a esfriar. O mais velho puxa a planta do jardim
de um prédio e ainda pisa na grama. Mas o filho mais novo está agasalhado,
mesmo que às custas de gramas e plantas machucadas.
O homem que passa, e que buzina,
e que xinga, e que gesticula, e que fala alto. Mas ele acabou de sair da missa
e de comungar. É possível, ainda, verificar o pequeno terço que vai no espelho
do retrovisor do carro dele.
O menino que passa verificando
uma mensagem no celular. Tropeça na pessoa que vem na direção contrária. Mas que
não levanta a cabeça porque está verificando a mensagem.
A moça passa gravando um áudio,
também, no celular. Caminha contornando os obstáculos, no caso, pessoas, e se
apressa para chegar a um lugar que talvez nem saiba onde fica. Mas a pressa a
fará chegar mais depressa ao lugar desconhecido.
A mãe que passa de mãos dadas com
a criança. Mas a velocidade do caminhar não é a da criança, mas sim a da mãe,
que, no caso, é a que menos precisa.
O caminho que escolhemos nos revela.
As especializações que dificultam
o aprendizado. A simplicidade que constrói, porém não é valorizada por ser
simples demais.
O mau gestor que rouba a energia
de quem está perto. A incompetência disfarçada é pior que a incompetência
declarada. Habilidades e competências não fazem parte de seu atuar. Querem ser
servidos. Mas fingem que servem. As necessidades reais sendo sobrepostas por
necessidades criadas sob o comando da arrogância e da vaidade. Doentes morais.
Ele não deveria estar lá. Mas quem o colocou lá? Aquele que compartilha disto.
O bom líder que não tem muitas
chances por não compartilhar da ausência de ética de muitos.
O bêbado que está sóbrio. O
lúcido que vê coisas.
A criança que grita para chamar a
atenção. E que consegue. Se ela gritar com a vida, será que ela para, também?
Pode ser que sim, se ela estiver de bom humor...
Os acordes desafinados tocados
pelo mestre. A afinação é coisa do passado. Quem perceberá o desafinar, no
espetáculo, se as luzes do palco concorrem com as luzes dos celulares e dos computadores?
O analfabetismo necessário para a
manipulação que se deseja. Manipular aquele que não sabe é covardia. Mas
manipulação me parece que tem sido sinônimo de uma espécie de “cidadania”. O
manipular cria uma situação de necessidade, para o mais fraco. Assim, aquele
que manipula terá espaço para despejar suas sombras no outro.
Os trechos ditos pelo padre,
durante a missa. Minutos depois, este mesmo padre dormiu enquanto os demais
rituais eram seguidos e presenciados por pessoas que não estavam lá. Mas que
estavam comodamente sentadas nos bancos.
A fala repetida não porque faz
sentido, mas pela simples rotina da repetição.
Mais uma pessoa passa verificando
seus e-mails. Conectados cada vez mais com algo que nos desconecta de nós
mesmos. A conexão com a máquina facilita o distanciamento nosso de cada dia, e
estamos longe de encontrarmos o pão, como diz a oração. Ele está próximo de
nós, talvez por isto não o encontramos.
Para encontrarmos o pão, será
necessário dividi-lo. E para dividi-lo, será necessário sentar-se ao lado do
outro, para ficarmos do mesmo tamanho dele. Ainda não encontramos este pão. Nem
em aplicativos, porque foram criados por quem evita massas e glúten.
O cachorro puxa firme a coleira.
Quer andar mais rápido para poder aproveitar bem o passeio. Não sabe quando
sairá de novo.
O correr é um sinalizador de ausência.
O sofrer é um sinalizador do conhecer.
Aquele que passa falando muito,
porque as vozes da sua mente são insuportáveis. Aquele que é calado porque já
fez as pazes com a sua consciência.
O choro misturado ao riso. Uma mistura chamada vida.
O grito misturado ao silêncio. Um exercício de inclusão em nós mesmos.
Reconhecemo-nos inclusivos, desde
que a gente não precise fazer parte disto. A inclusão está no discurso e a
exclusão na nossa prática. Somente incluímos aquilo que traz inclusões para
nós. Do contrário, a exclusão é a regra. Se assim não fosse, por que ainda
discutimos as velhas e mesmas coisas?
Discurso e prática: a melhor forma de conhecer alguém. O caminho escolhido
nos revela.
Somos reconhecidos pelas nossas
escolhas, discursos, ações e reações.
Aquele mesmo senhor que vai,
novamente, à missa, reza a oração junto ao padre. Todos se levantam como sinal
de respeito. Logo adiante, o sinal do semáforo não é respeitado pelos mesmos
integrantes da missa. Seriam situações distintas?
A comunhão é a simbologia da
divisão, do partilhar. Mas ainda temos dificuldades de partilharmos o que vai
em nossos excessos.
A mesma fila dupla. Agora outra
pessoa. Vários carros passam e buzinam. Pedem licença para passarem. O homem
assiste a tudo passivamente. Como se não fosse com ele. Mas é. E ironicamente, um adesivo no carro deste mesmo homem que
faz da fila dupla uma extensão da sua existência, diz: “que Deus te acompanhe”.
A ironia que nos sustenta, mas
que não somos capazes de compreendê-la. As contradições que nos formam, mas que
juramos que não somos assim, tão contraditórios. Os paradoxos que escondem
nossos valores e que, ao serem revelados, nos dão espelhos de presente.
Criamos espetáculos porque
acreditamos na ilusão. Mas o que, muitas vezes, não percebemos, é que a plateia
que nos assiste está sedenta por nossa queda. E imediatamente a nossa queda,
aquele que nos ajuda é o que não está na plateia, e sim, nos bastidores nos
aguardando. Porque lá é o lugar aonde tudo é construído e sustentado.
O palco é um lugar de ilusões e
de representações. A vida, de verdade, se faz antes dele.
O dia em que ampliarmos a nossa
compreensão sobre quem, verdadeiramente, somos, e não sobre quem queremos
aparentar ser, as ironias, os paradoxos e as contradições serão remotas
lembranças. Os recados já terão sido todos dados.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com a imagem abaixo:
imagem tirada da internet
Que nós sejamos o pássaro da imagem que, com o seu
atrevimento de pousar em um lugar proibido, pelo menos para ele, ousa
questionar as regras e mais, transgredi-las com argumento sólido. Que sejamos
nós, este pássaro, fazendo reflexões sobre nossas contradições e limitações
para que possamos ser mais, muito mais.
Nossos
caminhos escolhidos nos revelam quem somos.
Que estejamos em paz com os nossos caminhos escolhidos
e com a revelação que eles fizerem. Mas se não estivermos, que saibamos que
ainda há tempo de tirarmos o nosso carro da fila dupla e de irmos à missa de verdade e por vontade. E mais: que o
terço em nosso retrovisor seja, de
verdade, um reflexo da nossa crença e escolha de vida. E não um objeto que
decora um espelho no qual não reconhecemos a imagem nele refletida.