Para este texto, parto de uma
fala de José Saramago, no livro A viagem do elefante, que diz:
“Houve aplausos do povo
reunido, mas escassos e de pouca convicção.”
Ações passadas continuam a nos
assombrar, a nos cobrar, e a nos fazer companhia numa tarde atarefada de
afazeres. Fúteis, gentis, urgentes, úteis, habituais, combinado, ajustado,
contratado. A quem aplaudimos reunidos? Por que aplaudimos? Perguntas abertas
pelas próprias respostas.
Quando as respostas
convencionais não cabem mais nas convenções, novas perguntas precisam ser
feitas. E o convite da poeira das estradas nos é apresentado. Se vamos, eu não
sei. No entanto, se não formos por esta estrada, temos outra?
Um povo reunido que aplaude, mas
que, ao mesmo tempo, oferece um aplauso escasso e de pouca convicção. Há, no
povo reunido, então, aqueles que não aplaudem? Por isso, o “escasso”, de
Saramago? Há, no povo reunido, aquele que aplaude, mas por menos tempo? Aquele
que aplaude, mas que a vergonha já o reconhece e ele aplaude disfarçado? Quem
ainda dorme, e aplaude sem perceber? Quem acordou e pergunta as horas?
Estamos neste povo reunido? Sim e
não. Sim ou não. A dualidade nos monta, nos mostra e nos escancara de nós
mesmos, exatamente, por não termos a mínima intimidade com quem somos. Entender
talvez não seja a questão, aqui, mas aprendermos a ouvir o som que vem. Quem
somos nós, neste povo reunido?
Viver não é um exercício preciso.
Desconfio, portanto, de que será difícil nos encontrar e nos identificar neste
povo reunido. Mesmo se, de relance, nos acharmos, tantas faces nos
esconderão, nos tamparão a visão! Nossas mãos sangram e doem. Aplaudir cansa. Aplausos
convictos fazem doer menos as nossas mãos do que os aplausos por conveniência,
mas a dor é inerente a todo aquele cuja decisão é um argumento do diálogo. Reconhecer
as nossas mãos requer um esforço ininterrupto no meio de tamanho barulho. No meio
de tamanha hipocrisia, construída à base de verdades, também construídas do
mesmo material. A quem aplaudimos?
Um caminhar reforça o trajeto
escolhido. Um dizer perpetua convicções. Um silenciar diz posições assumidas. O
caminho escolhido rejeita os pés distintos. O dito consentido acusa aqueles
aplausos imerecidos. O silêncio esconde o espaço esgarçado.
Sempre contamos duas histórias
porque não suportamos a transparência que insiste em existir, em nós. Somos
todos parte do esgarçado, do roto, do gasto, do muito usado. Do aplauso
excedido sem medida, do passado a ferro tantas e várias vezes, que o tecido vai
fino, fino. Mas, também, somos todos costureiros de nós. A caixinha de costura
está ali, só há um pouquinho de pó sobre ela. Nada que um espanador não
resolva. A menos que a gente não tenha um espanador em casa. Aí complica um
pouco.
Esgarçado porque esticamos
demais. Insistimos na riqueza pobre, no calçado fino que quebra a estrutura, no
escolher um item do cardápio para o qual não se tem o bolso para pagar. Somos
os “espectadores de menos posse”, referido por Saramago, amontoados todos no
galinheiro. Esgarçamos o tecido feito por um emaranhado dos nossos fios, que
vão tristes perdendo suas partes. Nosso espaço vai esgarçado porque não
dedicamos tempo de navegação e nem de investigação no nosso mar. O esgarçamento
se dá em consonância com o estar-se à deriva. Faz sentido? As nossas
incoerências e os nossos jardins inabitados não nos são apontados. Vamos
avançando como invasores de uma casa com portões.
Por que pedirmos se podemos
invadir? Vamos cheios de simulações, de contas pagas, de filtros, de remakes,
de conteúdos prontos que vendem. A nossa complexidade é anulada diante
circunstâncias compradas e, previamente, discutidas. A nossa organização e a nossa
subserviência aos aplausos em excesso nos garantem um lugar. A alienação como
opção e escolha. Mas há esperança: há indícios do escasseamento dos aplausos.
Quem acorda? Quem é aquele não convicto que escasseia aplausos?
Vejo, agora, o fio e o espaço esgarçados.
E de tão esgarçado, arrebentará. Mas antes disso, será possível enxergar certa
claridade. Uma claridade que vem do esgotamento do tecido, tão fino ele vai. O
nosso grande Sertão esgarçado: as nossas veredas clareando, mostrando a
necessidade do caminho. Obrigada, Guimarães Rosa.
O fio que nos conduz. O fio que
nos forma. Que nos rearranja, que nos tece. Somos um tecido pela vida. E como
todo tecido que corre o risco de desfiar porque machuca, arranha, deteriora ou
porque, nós próprios, tiramos o nosso fio. Aprender a fiar é uma exigência da
vida. Aplaudimos tanto que esgarçamos, o fio desfiou e gastou. Precisamos
recompô-lo, fiar. Não há o momento certo para isso. As contradições e o
imponderável da vida não nos permitem tamanha arrogância. Nossos atos tem
parentescos. Somos todos fazendo. Mas há uma forma de driblarmos e de acharmos
este momento certo: no próprio viver diluído na nossa vida. Pode ser que, desta
forma, a gente aprenda a participar de todos os espaços que há, em nós.
Engraçado como é a vida. O
dicionário nos traz dois sentidos para o fiar, esta exigência da vida: o fiar
como manusear o nosso fio, recompô-lo, tirá-lo, fazê-lo, assim como o fiar de
confiar, dar o crédito a algo ou a alguém. Ou seja, para repensar o esgarçado
que vai em mim, e em você, devido a tantos aplausos escassos, sem convicção e
por conveniência, será preciso confiar, dar crédito. Um crédito para nós
mesmos, uma espécie de moeda que a vida nos dá para o nosso caminhar de volta.
Um caminhar de volta por termos esgarçado o tecido novo de tanto usá-lo no meio
do povo reunido, como um deles.
Foi preciso perdemos o nosso fio,
sangrarmos as nossas mãos aplaudindo, esgarçarmos o nosso espaço que não tinha
a eira, que dirá a beira, para que a necessidade de recompô-lo e de reencontrá-lo
fosse sentida. Vendados. Vendidos. À venda. Fechados para balanço. Amanhã
reabriremos. Há esperança.
Enquanto acordamos, talvez
haja uma significativa diminuição dos aplausos, por isso eles escasseiam e
apresentam baixa convicção. No entanto, na medida que a gente avança para
sairmos do nosso mecânico, as nossas apostas na violência vão perdendo força, e
vamos conseguindo encontrar o aplauso que vale aplausos, sem economias nas
nossas mãos que passarão a não doer mais. Sentirão, sim, o frescor do ardor da
vibração da vida.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento do poeta Mario Quintana, que diz:
“Sempre me senti isolado
nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas.”
Que a gente não perca o sentido
do aplauso, que é a contemplação da criação, o reconhecimento do quadro da vida,
por causa dos excessos dos mesmos aplausos aplaudidos, esgarçados e sem valor.
Que o excesso de gente, como nos traz Mario Quintana, não nos acuse de sermos
um dos falseadores do povo reunido. Quando temos muito, nada temos porque o
muito esconde. Que o excesso não nos force a escassez, lição árdua para aqueles
que brincam de viver. Toda escassez traz certa apatia diante a vida. Todo
excesso também. E apáticos, excedidos, não enxergaremos os motivos para
aplausos verdadeiros e reais, agora, convictos.