terça-feira, 13 de julho de 2021

Espaço esgarçado

Para este texto, parto de uma fala de José Saramago, no livro A viagem do elefante, que diz:

“Houve aplausos do povo reunido, mas escassos e de pouca convicção.”

Ações passadas continuam a nos assombrar, a nos cobrar, e a nos fazer companhia numa tarde atarefada de afazeres. Fúteis, gentis, urgentes, úteis, habituais, combinado, ajustado, contratado. A quem aplaudimos reunidos? Por que aplaudimos? Perguntas abertas pelas próprias respostas.

Quando as respostas convencionais não cabem mais nas convenções, novas perguntas precisam ser feitas. E o convite da poeira das estradas nos é apresentado. Se vamos, eu não sei. No entanto, se não formos por esta estrada, temos outra?

Um povo reunido que aplaude, mas que, ao mesmo tempo, oferece um aplauso escasso e de pouca convicção. Há, no povo reunido, então, aqueles que não aplaudem? Por isso, o “escasso”, de Saramago? Há, no povo reunido, aquele que aplaude, mas por menos tempo? Aquele que aplaude, mas que a vergonha já o reconhece e ele aplaude disfarçado? Quem ainda dorme, e aplaude sem perceber? Quem acordou e pergunta as horas?

Estamos neste povo reunido? Sim e não. Sim ou não. A dualidade nos monta, nos mostra e nos escancara de nós mesmos, exatamente, por não termos a mínima intimidade com quem somos. Entender talvez não seja a questão, aqui, mas aprendermos a ouvir o som que vem. Quem somos nós, neste povo reunido?

Viver não é um exercício preciso. Desconfio, portanto, de que será difícil nos encontrar e nos identificar neste povo reunido. Mesmo se, de relance, nos acharmos, tantas faces nos esconderão, nos tamparão a visão! Nossas mãos sangram e doem. Aplaudir cansa. Aplausos convictos fazem doer menos as nossas mãos do que os aplausos por conveniência, mas a dor é inerente a todo aquele cuja decisão é um argumento do diálogo. Reconhecer as nossas mãos requer um esforço ininterrupto no meio de tamanho barulho. No meio de tamanha hipocrisia, construída à base de verdades, também construídas do mesmo material. A quem aplaudimos?

Um caminhar reforça o trajeto escolhido. Um dizer perpetua convicções. Um silenciar diz posições assumidas. O caminho escolhido rejeita os pés distintos. O dito consentido acusa aqueles aplausos imerecidos. O silêncio esconde o espaço esgarçado.

Sempre contamos duas histórias porque não suportamos a transparência que insiste em existir, em nós. Somos todos parte do esgarçado, do roto, do gasto, do muito usado. Do aplauso excedido sem medida, do passado a ferro tantas e várias vezes, que o tecido vai fino, fino. Mas, também, somos todos costureiros de nós. A caixinha de costura está ali, só há um pouquinho de pó sobre ela. Nada que um espanador não resolva. A menos que a gente não tenha um espanador em casa. Aí complica um pouco.

Esgarçado porque esticamos demais. Insistimos na riqueza pobre, no calçado fino que quebra a estrutura, no escolher um item do cardápio para o qual não se tem o bolso para pagar. Somos os “espectadores de menos posse”, referido por Saramago, amontoados todos no galinheiro. Esgarçamos o tecido feito por um emaranhado dos nossos fios, que vão tristes perdendo suas partes. Nosso espaço vai esgarçado porque não dedicamos tempo de navegação e nem de investigação no nosso mar. O esgarçamento se dá em consonância com o estar-se à deriva. Faz sentido? As nossas incoerências e os nossos jardins inabitados não nos são apontados. Vamos avançando como invasores de uma casa com portões.

Por que pedirmos se podemos invadir? Vamos cheios de simulações, de contas pagas, de filtros, de remakes, de conteúdos prontos que vendem. A nossa complexidade é anulada diante circunstâncias compradas e, previamente, discutidas. A nossa organização e a nossa subserviência aos aplausos em excesso nos garantem um lugar. A alienação como opção e escolha. Mas há esperança: há indícios do escasseamento dos aplausos. Quem acorda? Quem é aquele não convicto que escasseia aplausos?

Vejo, agora, o fio e o espaço esgarçados. E de tão esgarçado, arrebentará. Mas antes disso, será possível enxergar certa claridade. Uma claridade que vem do esgotamento do tecido, tão fino ele vai. O nosso grande Sertão esgarçado: as nossas veredas clareando, mostrando a necessidade do caminho. Obrigada, Guimarães Rosa.

O fio que nos conduz. O fio que nos forma. Que nos rearranja, que nos tece. Somos um tecido pela vida. E como todo tecido que corre o risco de desfiar porque machuca, arranha, deteriora ou porque, nós próprios, tiramos o nosso fio. Aprender a fiar é uma exigência da vida. Aplaudimos tanto que esgarçamos, o fio desfiou e gastou. Precisamos recompô-lo, fiar. Não há o momento certo para isso. As contradições e o imponderável da vida não nos permitem tamanha arrogância. Nossos atos tem parentescos. Somos todos fazendo. Mas há uma forma de driblarmos e de acharmos este momento certo: no próprio viver diluído na nossa vida. Pode ser que, desta forma, a gente aprenda a participar de todos os espaços que há, em nós.

Engraçado como é a vida. O dicionário nos traz dois sentidos para o fiar, esta exigência da vida: o fiar como manusear o nosso fio, recompô-lo, tirá-lo, fazê-lo, assim como o fiar de confiar, dar o crédito a algo ou a alguém. Ou seja, para repensar o esgarçado que vai em mim, e em você, devido a tantos aplausos escassos, sem convicção e por conveniência, será preciso confiar, dar crédito. Um crédito para nós mesmos, uma espécie de moeda que a vida nos dá para o nosso caminhar de volta. Um caminhar de volta por termos esgarçado o tecido novo de tanto usá-lo no meio do povo reunido, como um deles.

Foi preciso perdemos o nosso fio, sangrarmos as nossas mãos aplaudindo, esgarçarmos o nosso espaço que não tinha a eira, que dirá a beira, para que a necessidade de recompô-lo e de reencontrá-lo fosse sentida. Vendados. Vendidos. À venda. Fechados para balanço. Amanhã reabriremos. Há esperança.

Enquanto acordamos, talvez haja uma significativa diminuição dos aplausos, por isso eles escasseiam e apresentam baixa convicção. No entanto, na medida que a gente avança para sairmos do nosso mecânico, as nossas apostas na violência vão perdendo força, e vamos conseguindo encontrar o aplauso que vale aplausos, sem economias nas nossas mãos que passarão a não doer mais. Sentirão, sim, o frescor do ardor da vibração da vida.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento do poeta Mario Quintana, que diz:

“Sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas.”

Que a gente não perca o sentido do aplauso, que é a contemplação da criação, o reconhecimento do quadro da vida, por causa dos excessos dos mesmos aplausos aplaudidos, esgarçados e sem valor. Que o excesso de gente, como nos traz Mario Quintana, não nos acuse de sermos um dos falseadores do povo reunido. Quando temos muito, nada temos porque o muito esconde. Que o excesso não nos force a escassez, lição árdua para aqueles que brincam de viver. Toda escassez traz certa apatia diante a vida. Todo excesso também. E apáticos, excedidos, não enxergaremos os motivos para aplausos verdadeiros e reais, agora, convictos.

Aplausos!