terça-feira, 23 de outubro de 2018

O tecido da vida

Diz a lenda que “um explorador, ansioso para chegar logo ao seu destino, no coração da África, pagava um salário extra para que os seus carregadores índios andassem mais rápido. Durante vários dias, os carregadores, então, apressaram o passo.

Certa tarde, todos os índios se sentaram no chão e depositaram seus fardos, recusando-se a continuarem. Por mais dinheiro que fosse a eles oferecido, os índios não se moviam. Quando, finalmente, o explorador pediu uma razão para aquele comportamento, obteve a resposta:

- Andamos tão depressa, e já não sabemos mais o que estamos fazendo. Agora precisamos esperar até que as nossas almas nos alcancem.”

Esta pequena história, retirada do livro Maktub, de Paulo Coelho, nos provoca uma reflexão incômoda e indigesta. E este incômodo se dá justamente porque nos identificamos com esta história, com aquilo que nos foi contado. Resta saber, apenas, se nos identificamos com o explorador, ansioso para chegar ao destino, ou se com os índios que, num determinado momento, jogaram seus fardos no chão a espera de suas almas.

Com qual dos dois nos identificamos? Talvez nunca saberemos esta resposta porque somos o explorador e o índio. Os dois vivem em nós.

Somos os exploradores do caminho, a espera de índios que acatem as nossas ordens. Mas também somos os índios que, apesar de servirmos os outros porque não sabemos do que gostamos e do que precisamos, nossos ecos nos cobram jogarmos os nossos fardos no chão, quando assim eles pesarem muito e não valerem a pena serem carregados.

A pressa produz poeira no nosso caminho, que nos cega. E cegos, aflitos, corremos mais. E correndo mais, mais poeira é produzida em nossos trajetos. E com mais poeira no caminho, menos enxergamos os fardos que ocupam as nossas mãos e mentes. O ciclo vicioso se acomoda e se fortalece. Muitos, a nossa volta, ficam felizes com o nosso desencanto. Nem só de pessoas saudáveis vive o mundo. Como estamos cegos, difícil será enxergar a poeira que alimenta o nosso caminhar, que dirá enxergar as pessoas que se alimentam do nosso desencanto e do nosso cansaço.

Os fardos jogados no chão produzem o trabalho de volta pra casa. Uma volta mais serena, amadurecida e com cicatrizes. Quem não as têm? Representam o sentido recuperando o sentido para assim, darmos sentido à vida.

Por que corremos tanto? Correr faz parte da vida, mas quando há um sentido dentro dele. Exceto isso, a correria não se justifica. Será apenas para continuar a alimentar os exploradores do caminho a procura de índios.

Corremos para a Faculdade, corremos para almoçar, corremos para dormir, corremos para acordar, corremos para dar um beijo no nosso filho, corremos para trabalhar. Corremos. Sempre estamos no próximo compromisso. O hoje é um lugar que não existe. Sempre estamos num lugar que talvez não haja no futuro. Um lugar construído pela pressa, pela ansiedade, pela angústia.

O sentido da pressa é desviar o nosso olhar do útil, importante, saudável. Enquanto estamos correndo como o Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas, a sensação de estarmos atrasados será frequente em nossas vidas.

Um correr com pressa fará sentido se soubermos para aonde estamos indo, se fizer sentido para nós. A correria faz parte do nosso dia a dia. Mas há que ser uma correria construída sobre algo de valor, relevante e de sentido. E, acima de tudo, com equilíbrio e discernimento.

Com pressa, mas com sentido, teremos a chance de encontrarmos os índios do caminho. Com pressa e sem sentido, os índios jamais farão parte de nossas vidas. Ou se fizerem, escondidos estarão nas poeiras que vão nas nossas estradas.

Um caminhar mais devagar, porém firme e com propósito: uma oportunidade para tecer a nossa vida. Construí-la por meio de linhas fortes e de boa qualidade. Um tecer que fará das nossas estadas aqui verdadeiros tecidos nobres, com interpretações e representações que somente nós poderemos vivê-los.

Assim como um texto bem escrito que representa uma textura leve que expressamos por meio de palavras e de sons, também a nossa vida: uma construção de um desenho que alinhava contornos e entornos em torno de nós, firmes e sólidos. Mas isso somente sem pressa. Ou se ela se apresentar, que seja breve e com fortes argumentos para que haja a permissão para que ela se instale em nós.

As agendas lotadas apenas mostram o quão longe estamos de nós mesmos. Quem muito faz, nada faz. A correria somente nos mostra a nossa completa falta de prioridade e ausência de planejamento. Não há como fazermos muitas coisas sem sermos superficiais e rasos. A profundidade somente possui espaço para acontecer num ambiente calmo, quieto e que ofereça as condições. Assim como as águas profundas do velho mar: somente nos damos conta da sua profundidade a medida que avançamos e que saímos do raso.

A correria parece que justifica a nossa estada aqui. Ter muitos compromissos e não ter tempo parecem ter se tornado moedas de troca na nossa sociedade. Ou seja, se dissermos que somos ocupados (mas se somente parecermos ocupados será o suficiente) e que não temos tempo, a nossa sociedade rirá para nós e nos dará um lugar de destaque nela. Uma relação de ganha-ganha entre pessoas (nós) que vivem de imagem x uma sociedade que alimenta e que induz à alienação.

Ser ocupado e fazer o útil não implica corrermos e termos pressa o tempo todo. Significa, apenas, fazer o uso correto do tempo, exatamente para que ele não se esgote inutilmente enquanto alimentamos o nosso ego de falsas ilusões. Termos tempo não significa ausência de realizações. Significa usá-lo com eficiência.

Correr o tempo todo e sempre estar ocupado e com pressa significa que o inútil está sendo feito, e com qualidade.

Corremos tanto que até o Coelho Branco ficou sem referências do que vem a ser correr. Como diz a música: “nem o santo tem ao certo a medida da maldade...”. Queremos mostrar uma eficiência que de longe temos, dizemos meia dúzia de palavras para impressionar naquela reunião desnecessária, damos diversos pitacos em projetos aleatórios, somos peritos em interromper o outro e o pior: achamos que fazemos várias coisas ao mesmo tempo e nos orgulhamos disso. O excesso do fazer tornou-se sinônimo de importância, infelizmente. O que de longe se caracteriza uma verdade.  Por que o simples segue tão desacreditado? Talvez porque ele seja desprovido de máscaras, de disfarces, de senão, de bastidores.

Ainda se vive, sem perceber, numa condição de alienação. E este estado de alienação nos tira a condição e a capacidade de ação e de existência. Por isso, é comum encontrarmos pessoas correndo o tempo todo sem saber para aonde estão indo. Os nossos índios tentam, a duras penas, nos mostrar os fardos do caminho que devem ser abandonados. Mas somos jovens, ainda, e perdidos em inúmeras saídas, não conseguimos enxergar as chaves que nos dão. Uma pena. Um ser alienado não se conhece. Quer fazer passos aéreos, no entanto, o convite da vida é por passos térreos e firmes.

Enquanto nossas agendas seguem repletas de inutilidades, aquilo que é útil fica submerso. Desperdiçamos um tempo precioso que deveria estar sendo ocupado para o tecer de nossas vidas. Para o enxergar de fardos. Para o reencontrar de nossas almas. Na correria, certamente elas caminham em lados opostos.

O convite está colocado sobre a mesa. O que se busca é seguir. A vida jamais pedirá para pararmos. No máximo, para diminuirmos o ritmo, exatamente para que a dança nunca seja descontinuada. Para que os fardos sejam colocados no chão.

A vida não é apostilada. Não possui um formato. Há muito a ser feito. Mas é preciso começar. E uma boa ideia de começo é revisitar as nossas pressas e as nossas urgências. Talvez não mais as reconheçamos e seja a hora de mudar. Nossos aposentos e nossas salas ficarão vazios porque não mais os preencheremos com as nossas urgências desprezíveis, com o nosso cercear de ação do outro, com a nossa limitação ética e moral.

Quando o simples voltar a figurar no nosso dicionário, nossas urgências e pressas continuarão, mas saberão o seu lugar de fala no mundo. Terão sido construídos pelo espaço, pelo vazio e pelo silêncio, as verdadeiras bases de uma construção sólida. Somos barulhentos demais. Por isso, temos dificuldades de ouvirmos as nossas próprias vozes.

Nós somos os índios desta história. Mas a correria e a pressa não nos permitem reconhecê-los em nós. Nossas almas caminham em direções opostas a nós quando agimos apressando a vida.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Machado de Assis, que diz:

“o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo.”

Que possamos nos orgulhar do bordado da nossa vida. Que sejamos atenciosos com o tempo, com o passar dele e com os pedidos que ele nos faz, para que o tecido de nossa vida seja leve e amigo. Mas que esta atenção não nos retire da dança da vida e nos coloque num aposento com paredes brancas, sem vida, e principalmente, sem música. Se formos atenciosos com o tempo e se ouvirmos o que ele tem a nos dizer, nossos fardos ficarão visíveis a nós, e os índios do nosso caminho não mais precisarão se sentar no chão a espera de suas almas. Porque elas jamais terão se perdido deles, ou melhor, de nós mesmos.