Diz a lenda que “um explorador,
ansioso para chegar logo ao seu destino, no coração da África, pagava um
salário extra para que os seus
carregadores índios andassem mais rápido. Durante vários dias, os carregadores,
então, apressaram o passo.
Certa tarde, todos os índios se
sentaram no chão e depositaram seus fardos, recusando-se a continuarem. Por
mais dinheiro que fosse a eles oferecido, os índios não se moviam. Quando,
finalmente, o explorador pediu uma razão para aquele comportamento, obteve a
resposta:
- Andamos tão depressa, e já não
sabemos mais o que estamos fazendo. Agora precisamos esperar até que as nossas
almas nos alcancem.”
Esta pequena história, retirada
do livro Maktub, de Paulo Coelho, nos
provoca uma reflexão incômoda e indigesta. E este incômodo se dá justamente
porque nos identificamos com esta história, com aquilo que nos foi contado.
Resta saber, apenas, se nos
identificamos com o explorador, ansioso para chegar ao destino, ou se com os
índios que, num determinado momento, jogaram seus fardos no chão a espera de
suas almas.
Com qual dos dois nos
identificamos? Talvez nunca saberemos esta resposta porque somos o explorador e
o índio. Os dois vivem em nós.
Somos os exploradores do caminho,
a espera de índios que acatem as nossas ordens. Mas também somos os índios que,
apesar de servirmos os outros porque não sabemos do que gostamos e do que
precisamos, nossos ecos nos cobram jogarmos os nossos fardos no chão, quando
assim eles pesarem muito e não valerem a pena serem carregados.
A pressa produz poeira no nosso
caminho, que nos cega. E cegos, aflitos, corremos mais. E correndo mais, mais
poeira é produzida em nossos trajetos. E com mais poeira no caminho, menos
enxergamos os fardos que ocupam as nossas mãos e mentes. O ciclo vicioso se
acomoda e se fortalece. Muitos, a nossa volta, ficam felizes com o nosso
desencanto. Nem só de pessoas saudáveis vive o mundo. Como estamos cegos,
difícil será enxergar a poeira que alimenta o nosso caminhar, que dirá enxergar
as pessoas que se alimentam do nosso desencanto e do nosso cansaço.
Os fardos jogados no chão
produzem o trabalho de volta pra casa. Uma volta mais serena, amadurecida e com
cicatrizes. Quem não as têm? Representam o sentido
recuperando o sentido para assim,
darmos sentido à vida.
Por que corremos tanto? Correr
faz parte da vida, mas quando há um sentido dentro dele. Exceto isso, a
correria não se justifica. Será apenas para continuar a alimentar os
exploradores do caminho a procura de índios.
Corremos para a Faculdade,
corremos para almoçar, corremos para dormir, corremos para acordar, corremos
para dar um beijo no nosso filho, corremos para trabalhar. Corremos. Sempre
estamos no próximo compromisso. O hoje é um lugar que não existe. Sempre
estamos num lugar que talvez não haja no futuro. Um lugar construído pela
pressa, pela ansiedade, pela angústia.
O sentido da pressa é desviar o
nosso olhar do útil, importante, saudável. Enquanto estamos correndo como o
Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas, a sensação de estarmos atrasados
será frequente em nossas vidas.
Um correr com pressa fará sentido
se soubermos para aonde estamos indo, se fizer sentido para nós. A correria faz
parte do nosso dia a dia. Mas há que ser uma correria construída sobre algo de
valor, relevante e de sentido. E, acima de tudo, com equilíbrio e
discernimento.
Com pressa, mas com sentido, teremos a chance de encontrarmos os índios
do caminho. Com pressa e sem sentido, os índios jamais farão parte de nossas
vidas. Ou se fizerem, escondidos estarão nas poeiras que vão nas nossas
estradas.
Um caminhar mais devagar, porém
firme e com propósito: uma oportunidade para tecer a nossa vida. Construí-la
por meio de linhas fortes e de boa qualidade. Um tecer que fará das nossas
estadas aqui verdadeiros tecidos nobres, com interpretações e representações que
somente nós poderemos vivê-los.
Assim como um texto bem escrito que
representa uma textura leve que expressamos por meio de palavras e de sons,
também a nossa vida: uma construção de um desenho que alinhava contornos e
entornos em torno de nós, firmes e sólidos. Mas isso somente sem pressa. Ou se
ela se apresentar, que seja breve e com fortes argumentos para que haja a
permissão para que ela se instale em nós.
As agendas lotadas apenas mostram
o quão longe estamos de nós mesmos. Quem muito faz, nada faz. A correria
somente nos mostra a nossa completa falta de prioridade e ausência de
planejamento. Não há como fazermos muitas coisas sem sermos superficiais e
rasos. A profundidade somente possui espaço para acontecer num ambiente calmo, quieto
e que ofereça as condições. Assim como as águas profundas do velho mar: somente
nos damos conta da sua profundidade a medida que avançamos e que saímos do
raso.
A correria parece que justifica a
nossa estada aqui. Ter muitos compromissos e não ter tempo parecem ter se tornado
moedas de troca na nossa sociedade. Ou seja, se dissermos que somos ocupados
(mas se somente parecermos ocupados será o suficiente) e que não temos tempo, a
nossa sociedade rirá para nós e nos dará um lugar de destaque nela. Uma relação
de ganha-ganha entre pessoas (nós) que vivem de imagem x uma sociedade que
alimenta e que induz à alienação.
Ser ocupado e fazer o útil não
implica corrermos e termos pressa o tempo todo. Significa, apenas, fazer o uso
correto do tempo, exatamente para que ele não se esgote inutilmente enquanto
alimentamos o nosso ego de falsas ilusões. Termos tempo não significa ausência
de realizações. Significa usá-lo com eficiência.
Correr o tempo todo e sempre
estar ocupado e com pressa significa que o inútil está sendo feito, e com qualidade.
Corremos tanto que até o Coelho
Branco ficou sem referências do que vem a ser correr. Como diz a música: “nem o
santo tem ao certo a medida da maldade...”. Queremos mostrar uma eficiência que
de longe temos, dizemos meia dúzia de palavras para impressionar naquela
reunião desnecessária, damos diversos pitacos em projetos aleatórios, somos
peritos em interromper o outro e o pior: achamos que fazemos várias coisas ao
mesmo tempo e nos orgulhamos disso. O excesso do fazer tornou-se sinônimo de
importância, infelizmente. O que de longe se caracteriza uma verdade. Por que o simples segue tão desacreditado?
Talvez porque ele seja desprovido de máscaras, de disfarces, de senão, de
bastidores.
Ainda se vive, sem perceber, numa
condição de alienação. E este estado de alienação nos tira a condição e a
capacidade de ação e de existência. Por isso, é comum encontrarmos pessoas correndo
o tempo todo sem saber para aonde estão indo. Os nossos índios tentam, a duras
penas, nos mostrar os fardos do caminho que devem ser abandonados. Mas somos
jovens, ainda, e perdidos em inúmeras saídas, não conseguimos enxergar as chaves
que nos dão. Uma pena. Um ser alienado não se conhece. Quer fazer passos
aéreos, no entanto, o convite da vida é por passos térreos e firmes.
Enquanto nossas agendas seguem
repletas de inutilidades, aquilo que é útil fica submerso. Desperdiçamos um
tempo precioso que deveria estar sendo ocupado para o tecer de nossas vidas.
Para o enxergar de fardos. Para o reencontrar de nossas almas. Na correria,
certamente elas caminham em lados opostos.
O convite está colocado sobre a
mesa. O que se busca é seguir. A vida jamais pedirá para pararmos. No máximo,
para diminuirmos o ritmo, exatamente para que a dança nunca seja descontinuada.
Para que os fardos sejam colocados no chão.
A vida não é apostilada. Não
possui um formato. Há muito a ser feito. Mas é preciso começar. E uma boa ideia
de começo é revisitar as nossas pressas e as nossas urgências. Talvez não mais
as reconheçamos e seja a hora de mudar. Nossos aposentos e nossas salas ficarão
vazios porque não mais os preencheremos com as nossas urgências desprezíveis,
com o nosso cercear de ação do outro, com a nossa limitação ética e moral.
Quando o simples voltar a figurar
no nosso dicionário, nossas urgências e pressas continuarão, mas saberão o seu
lugar de fala no mundo. Terão sido construídos pelo espaço, pelo vazio e pelo
silêncio, as verdadeiras bases de uma construção sólida. Somos barulhentos
demais. Por isso, temos dificuldades de ouvirmos as nossas próprias vozes.
Nós somos os índios desta história. Mas a correria e a pressa não nos
permitem reconhecê-los em nós. Nossas almas caminham em direções opostas a nós quando
agimos apressando a vida.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento de Machado de Assis, que diz:
“o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo.”
Que possamos nos orgulhar do
bordado da nossa vida. Que sejamos atenciosos com o tempo, com o passar dele e
com os pedidos que ele nos faz, para
que o tecido de nossa vida seja leve e amigo. Mas que esta atenção não nos
retire da dança da vida e nos coloque num aposento com paredes brancas, sem
vida, e principalmente, sem música. Se formos atenciosos com o tempo e se
ouvirmos o que ele tem a nos dizer, nossos fardos ficarão visíveis a nós, e os
índios do nosso caminho não mais precisarão se sentar no chão a espera de suas
almas. Porque elas jamais terão se perdido deles, ou melhor, de nós mesmos.