sábado, 26 de janeiro de 2019

A próxima farmácia

Andando pelo bairro, parei para aguardar o farol. A minha frente, alguns homens retiravam a logomarca de uma linda loja de sapatos que havia na esquina. Num primeiro momento, fiquei triste: afinal, o fechamento de portas sempre indica sonhos frustrados de alguém. Encerrar atividades num local, mesmo que vá para outro, indica, de qualquer forma, logística intensa, cansaço e desgaste. Enquanto concluía meus pensamentos, o sinal abriu e atravessei. E enquanto eu atravessava, outra logomarca era carregada pelos mesmos homens, agora em direção para o interior da loja: uma nova farmácia seria ali instalada. Imediatamente olhei para trás e disse para mim mesma: “mas e aquela Droga Raia ali, na esquina? Outra farmácia? Uma de frente para a outra?”

Pode parecer exagero da minha parte, mas naquele momento me senti afrontada. Não por comparar sapatos com remédios. Não por achar sapatos mais importantes do que remédios. Absolutamente. Mas pela invasão de imposições que sofremos a cada dia por cedermos espaços de nossas vidas. Ao cedermos estes espaços preciosos, e sem, muitas vezes, percebermos, convidamos estranhos para entrarem em nossas casas. O que avança sempre busca espaços deixados pelo que recuou.

A farmácia, em si, nada tem de culpada. Se ela está ali é porque há demanda. Mas de qual demanda falamos?

Étienne de La Boétie, filósofo francês do século XVI, nos faz uma provocação:por que obedecemos? Por que abrimos mão da nossa capacidade de decidir?” Em sua obra, o discurso da servidão voluntária, as provocações continuam:

O que nos seduz a obedecer? O que nos seduz a abrir mão da liberdade? A nossa escolha em servir, em usar a máscara. A minha entrega ao tirano. A minha capacidade de abrir mão da minha autonomia.

No mínimo, contraditório: buscamos tanto a liberdade, a valorizamos tanto que nossas atitudes dizem justamente o contrário: servimos e alimentamos alienações com a nossa participação e anuência. Entregamo-nos ao tirano por escolha e por valorizarmos muito aquele que nos diz qual é o caminho a ser seguido. Isto facilita muito as coisas. Quando seguimos o estabelecido, o medido, o pisado e o pensado entregamos, de bandeja, o que poderia ser. O tirano fica feliz com a nossa limitação do pensar e com a nossa absoluta descrença na gente e na vida. Quanto mais a limitação nos enquadrar, mais descrença e fuga geraremos.

Os tiranos caminham soltos, livres e buscam a nossa obediência. E vendo aquela outra farmácia sendo inaugurada, em meio a muitas existentes ali, me lembrei de um dos velhos e bons tiranos que conhecemos: o medo. Não aquele medo salutar, que nos faz prestar atenção ao atravessarmos a rua ou a nos afastar de algo que julgamos ruim. Mas do medo que nos faz recuar diante a vida. Do medo diante os excessos que ajudamos a construir e que por conta justamente deles, adoecemos. E os excessos são muitos. Por medo de ficarmos sem dinheiro, trabalhamos demais. Por medo da convivência e do contato com o outro, nos escondemos nas redes sociais por horas. Por não nos respeitarmos como somos, exageramos nos procedimentos estéticos. Por não sabermos lidar com os nossos medos e frustrações, descarregamos nos outros nossas inquietações. Por medo de sofrermos, deixamos de amar. Por medo de cairmos, deixamos de correr. Por medo da ridicularização alheia, deixamos de expor a nossa opinião. Resultado? Dores. E nada como uma boa farmácia e um bom médico para nos dizer o que fazer. Alimentamos, por meio de nossas dores e medos, uma indústria que cresce.

Somos uma sociedade de medicados. Somos uma sociedade que delega para a pílula a mágica da resolução de problemas que ajudamos a construir. E um dos itens principais desta construção é, certamente, o medo. Sentimo-nos inadequados. E esta inadequação gera dor. Como são muitas as nossas dores, ficou fácil compreender o motivo de mais uma farmácia aqui, perto de casa. E certamente perto da sua casa, também. Olhe em volta.

O medo que sentimos do que está por vir, do que já veio e do que está nos adoeceu. E estamos sem muitas condições de debruçarmos sobre nós mesmos para ver onde nos perdemos. Fazer uma reflexão sobre nossas dores e o que elas têm a nos ensinar nos ajudaria a frequentar menos farmácias? Não sei, leviano de minha parte seria ter a resposta. Mas fazer uma reflexão é possível. É o mínimo que a vida nos pede.

O filósofo francês, que faleceu com apenas 33 anos, tinha toda razão quando disse que nos sentimos seduzidos pelo obedecer. Claro. O caminho fica menos denso, menos tortuoso. Não precisar pensar sobre nós e sobre nossos inquilinos, como o medo, é um facilitador de caminhos. Falso. Mas facilitador.

Acreditar que somos insuficientes e que nunca seremos o bastante alimenta a usina do medo que, certamente, contribui para o progresso de certas frentes. A insuficiência será sempre o nosso lugar por excelência. Uma pena acreditarmos nisso.

Esta violência produtora do medo, seja verbal, intelectual, moral e física. A violência costuma gerar sujeitos cruéis e sem iniciativa. E muitas vezes, não é o que somos? O medo produzido gera dinheiro, seguidores e propagadores. Alguém se alimenta do nosso medo. Compensa.

O que está nos movendo? Mal algum há em acessarmos farmácias. Mas os excessos precisam ser vistos e pensados. Engordamos os excessos. E esta falta de oportunidade de intercâmbio leva a nossa subordinação emocional e intelectual.

O medo é uma forma de sofrimento. E o respeito ao sofrimento é algo relativamente recente. Por isso, as farmácias ainda andam cheias. Não queremos sofrer. Fugimos do sofrimento. Medicamos o nosso sofrimento antes de ouvi-lo. Antes de buscar compreendê-lo. Fácil não é. Mas quem disse que seria?

Os remédios são, literalmente, um avanço e uma necessidade. Historicamente, quantas pessoas não morreram por falta de medicamentos? Portanto, agradecê-los seria o básico de nossa parte. Longe de fazer uma apologia à dor e ao masoquismo, a reflexão passa apenas por “por que estamos nos excedendo neste consumo? Por que a dor deixou de fazer parte dos nossos aprendizados?” Não sei a resposta. Leviano, novamente, seria tê-la. Cheguei a tomar remédio para dor de cabeça sem estar com dor de cabeça. Simplesmente por estar certa de que a dor me visitaria naquele dia.

A farmácia inaugurada, portanto, apenas se vale de nossas pequenezas traduzidas em medo. Ora somos vítimas destas imposições, ora ajudamos a construir esta realidade. Daqui a pouco, esta farmácia estará repleta de clientes que não se visitam há tempos. Tomarmos remédios é, infelizmente, necessário. Mas fizemos todos os passos antes deles?

Que os remédios sejam contribuidores para uma vida mais feliz e saudável. Mas que eles não sejam espaçosos e se espalhem por lugares para os quais não foram convidados.  “Os tiranos têm cúmplices”, diz Étienne de La Boétie. Portanto, que a gente repense, se possível, nossa ida à farmácia. Se ela existe, é porque tem a nossa cumplicidade. Um pouco de nós colaborando para o caos onde estamos mergulhados.

Nossas grandes demandas são emocionais. Escutar os nossos erros é imprescindível. Carregamos uma superficialidade a respeito de quem somos. E isto nos atrasa.

Não deixamos a porta aberta para as dores dizerem a que vieram. Ficamos perdidos em algumas discussões quase sempre inúteis. Por isso, não avançamos. Somos hábeis no reforço do que não precisa.

Aristóteles diz que “o hábito produz uma segunda natureza tão densa que a achamos natural.” Abafar as nossas dores e sofrimentos se tornou uma segunda pele, em nós, um hábito. Por isso naturalizamos a medicalização dos nossos pesares. As farmácias e a indústria geradora do medo agradecem.

É preciso questionar as nossas certezas, iluminar as dúvidas escondidas pelas nossas máscaras. Verificarmos os nossos avessos porque eles sempre derrubam conceitos estéreis.

Investigar-nos é um grande presente para nos dar. Atravessarmos a ponte para sabermos o que vai em nós. Mas voltarmos. Participarmos dos nossos bordados e de nossas costuras. Um salto de riscos. Um deixar-se construir pelos resultados dos problemas vividos.

A percepção sobre nós próprios rompe o padrão e nos traz interpretações a nosso respeito. Viver a realidade exige esforço.

O excesso nos convida a nos revisitar. Irmos ao encontro de nós mesmos não é tarefa fácil. Mas necessária.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com dois pensamentos: um de Voltaire, filósofo francês do século XVII, e outro de Molière, dramaturgo francês do mesmo século, que dizem:

“Uma coletânea de pensamentos é uma farmácia moral onde se encontram remédios para todos os males.” Voltaire

“Morreu de quatro médicos e dois farmacêuticos”. Molière

O pensamento de Voltaire, nos convidando a nos reconhecer como dignos de pertencermos a esta farmácia moral por meio desta coletânea de pensamentos. Este pensar poderá, se tivermos sorte, nos afastar de algumas farmácias. Voltaire chamando a nossa atenção para os muitos passos que precisamos dar antes das farmácias.

E o pensamento de Molière, um escritor que carregava, nas tintas dos seus textos, um tom de sátira e de ironia, tão necessário para o amadurecimento do nosso pensar. Molière chama a nossa atenção, de forma irônica, a repensarmos a subserviência que damos aos nossos próprios algozes. Ao contrário do que pensamos, provoca Molière, o que achamos que está nos salvando está, na verdade, nos matando.

A propósito, onde fica a próxima farmácia?

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Dentes desnecessários

Geralmente, o final do ano e o começo dele são épocas nas quais fazemos balanços: não apenas um, mas vários. Dividimo-nos entre as conclusões que queremos dar a alguns assuntos, influenciados pela energia do final do ano, e iniciações que mais uma vez prometemos fazer, influenciados, agora, pela energia do início do ano. São tantas providências a tomar, negócios a resolver, pendências a absorver e promessas a fazer que nos esquecemos de algo muito importante: o fato de estarmos aqui, vivos. Existir já é algo e tanto. Simples assim.

O avançar do calendário, que bate à porta nos chamando para o próximo ano, não nos cobra promessas não cumpridas. Tampouco traça uma régua dos nossos débitos e créditos baseado no que entregamos ou deixamos de concluir, para, desta forma, nos punir ou nos premiar. O avançar do tempo não faz isso, definitivamente. Apenas colabora para que um novo e outro sol nasça, e assim, nos diga carinhosamente: “levante-se, ainda há muito o que fazer. Por isso, te dou um novo ano.” Sem cobranças. Só uma pitada de assertividade. Nada além disto.

Sentimo-nos muito cobrados pelo tempo porque deixamos coisas para a última hora, literalmente, sejam elas conclusões ou iniciações. Quando conseguimos escapar do janeiro e do dezembro, sempre reencontramos o nosso bom e velho álibi: o mês seguinte, a semana seguinte. Mas janeiro e dezembro são as pontas extremadas e implacáveis. Estão ali, alimentadas pelo calendário que avança e nos diz: “mais um ano se passou e você ainda não fez isto?” Chegamos a ouvi-lo com seus ácidos termos que nos rebaixa à condição de devedores e perdedores.

Como injustiça sempre foi, e me parece que ainda por longo tempo será, o nosso forte, somos injustos com o calendário. Ele apenas faz o seu papel que é o de avançar e o de seguir. Apenas isso. Talvez sua grande culpa seja a de nos convidar a acompanhá-lo. Ofendemo-nos com isso e, como consequência, nos sentimos culpados e cobrados.

Esta pressão que sentimos e que verbalizamos por meio das nossas ações como correrias, afazeres, iniciações, pendências e conclusões indicam a nossa ausência em nós, a falta de tempo que dedicamos para nós mesmos. Somos a visita faltante em nós. Devemos isto a nós. E por que não a fazemos? Talvez porque o tempo que deveria ser dedicado para nos visitar (ou para nos revisitar?) está sendo alocado para outros pormenores, como corre-corres inúteis.

Estamos sempre no tempo futuro, ansiosos. Angustiados pelo avançar das horas e por ainda tanto a ser feito. Estamos sempre, ou quase, num lugar que nos colocaram, muitas vezes. Porque muitos acham que sabem qual é o melhor lugar para nós. Mesmo que eles não saibam o melhor lugar para eles. Mas isto é só um detalhe. São muitos os afazeres desnecessários que acabam escondendo ou menosprezando os afazeres necessários, infelizmente.

Corremos porque o final do ano chegou. Mas se o planejamento, organização e visitas constantes a nós forem recorrentes durante o ano todo, por que a correria? Será que precisamos estar presentes em tudo? O que resultaria se fizéssemos um pente fino em nossos compromissos? Um funil firme no que chamamos “urgente”? Acho que descobriríamos tempos e horas perdidos, isolados ao fundo, apenas aguardando serem úteis.

As visitas que devemos a nós teriam servido para descobrirmos recursos de tempo e de condição para fazermos muito, mas muito mesmo. Mas como estamos sempre correndo para darmos conta de nossas iniciações e conclusões, não nos sobra tempo para visitas, muito menos para mais explicações.

Cobramos o tempo por ele passar rápido. Sentimo-nos cobrados por ele. Mas não estamos sendo justos. O que nos cobra não é o tempo, mas sim a nossa postura de crença neste modelo de atuação. A nossa atitude de perpetuar modelos que não se justificam.

Nesta reflexão, duas palavras se sobressaem: sensibilidade e gratidão. Sensibilidade para observarmos que não há cobranças e nem débitos. Não podemos ser injustos com o tempo. O avançar do calendário não nos cobra. Apenas nos pede sensibilidade para percebermos que ele passa. Portanto, é preciso vivê-lo melhor, com referências e responsabilidades. Ele nos lembra do que ficamos de responder, de fazer, de concluir e de, pelo menos iniciar. Não como cobrança, mas como um convite para o caminhar. Se aceitássemos o convite, perceberíamos a trajetória do tempo e, consequentemente, a nossa. E nesse novo patamar de pensar, as correrias e os tantos afazeres dariam espaços para o sentido e para o real.

A sensibilidade, se presente em nossas vidas, nos ajuda a reequilibrar ações e a direcionar melhor as nossas posições e escolhas diante a vida. O sensível apura os ouvidos para saber o que a vida quer que seja. As conclusões e as iniciações verdadeiras começam a reivindicar seus espaços antes ocupados pelos desavisados, os desatentos de plantão.

Gratidão para não perdermos a noção e o senso do caminho e da valorização do que, verdadeiramente importa. É preciso gratidão e sensibilidade para não nos deixarmos influenciar e, acima de tudo, não nos deixarmos perder a nós mesmos de vista.

A gratidão e a sensibilidade, se juntas estiverem em nós, ainda assim as correrias e os tantos afazeres continuarão a existir. Mas o sentido destas tantas coisas, a forma como as realizaremos, o aproveitamento e a razão de tantas ocupações se tornarão aliados nossos, e não inimigos. Tendo a gratidão e a sensibilidade como guias, nosso tempo será melhor aproveitado. Conseguiremos ouvir mais os sons dos pássaros que ecoam em meio às buzinas estridentes. Saborearemos mais os pores do sol porque teremos tempo de levantarmos as nossas cabeças para encontrá-los. A gratidão e a sensibilidade nos farão utilizar os nossos filtros e funis com objetividade e, desconfio, que sobrarão horas em nosso vasto calendário que avança, sim, mas que não nos ofende e afronta mais, como achávamos que ele fazia.

De posse de mais tempo, porque retomamos contato com a sensibilidade e a gratidão perdidas em algum canto da gente, os meses ficarão mais longos, os dias passarão normalmente, e as horas poderão até tirar um esquecido cochilo. Nada disso comprometerá as nossas entregas se elas forem úteis, necessárias, com sentido e verdadeiras.

Sensibilidade e gratidão nos levam para outro patamar de viver. Mesmo com tantos afazeres. E foi o que comprovei ao ver aquela senhora, de pouquíssimos dentes, sorrir ao receber uma pequena doação: um pacote de maçãs, um pacote de pão, peras frescas, bisnaguinhas e alguns doces para as crianças que convivem com ela e outros adultos, sob um viaduto, na zona sul de São Paulo. Pensei que aquele sorriso vazio de dentes e repleto de sensibilidade e de gratidão fosse a minha grande lição do dia. Engano meu. Já de costas, ela nos chama e diz:

“Muito obrigada. Deus abençoe.” “Por nada, respondemos.”

“Ah, por favor...” “Sim, respondemos.”

“Vocês têm horas?” nos perguntou num tom baixo e educado.

“Claro, são dez para as dez”, respondemos. “Muito obrigada”. E um outro largo sorriso, vazio de dentes, se escancarou para nós. Estava uma linda manhã.

A voz limpa e baixa daquela mulher se misturou ao som dos carros que passavam apressados. A curiosa pergunta daquela mulher “vocês têm horas?” me fez recobrar uns dos grandes ensinamentos que recebi, na vida, do professor de Filosofia, na Faculdade, que dizia: “a vida sempre escolherá ensinar o imprescindível pelos caminhos simples dela. Mas será preciso limpar a vista e os ouvidos para aprendê-lo.”

Nunca mais me esqueci do ensinamento daquele professor. Sob um viaduto, barulhento e sujo, aquela mulher trazia o imprescindível pelos caminhos simples da vida: a gratidão e sensibilidade. Gratidão por ter tido a grandeza de nos doar um largo sorriso que sobrepunha a ausência dos dentes, e por ter recebido algumas maçãs, tão pouco frente àquilo que ela necessitava, e ainda assim nos doar um sorriso que iluminou a escuridão do viaduto. E sensibilidade por ter, mesmo com dores na alma, valorizado mais o tempo do que o lugar sujo aonde ela se encontrava.

A sensibilidade em nos perguntar as horas talvez por acreditar neste tempo que avança para construir algo melhor, e não no avanço aleatório. A correria pela correria porque chegou o final do ano. As promessas porque chegou o início do ano. Não. Um perguntar de horas porque as valoriza e porque é sensível ao avançar delas. É preciso respeitar o tempo. E para tal, é preciso se enxergar inserido nele, grato e atuante. Respeitar o tempo é vivê-lo em consonância com ele e não à parte dele. Aquela mulher nos perguntou as horas não porque tivesse muitas coisas a fazer e, por isso, estava apressada. O contrário. Justamente por estar ciente de onde estava, de onde vivia, e da completa ausência de perspectiva, expectativa e até de afazeres, ela crê no tempo e o percebe. O avançar dele é uma esperança para aqueles que sofrem.

Aquela mulher era totalmente desprovida de excessos. Por isso percebia o tempo e nos perguntou as horas, mesmo sabendo que não havia tantas coisas assim a serem feitas. O querer saber das horas e do tempo deveria estar além do ato material de preenchê-lo com coisas e afazeres, induzidos por nossa vaidade e pelo pseudo saber dos outros.

O saber das horas é fundamental para sermos mais, e não para fazermos mais. E isto aquela mulher já sabia esbanjando aquele largo sorriso vazio de dentes. Dentes? Desnecessários quando se tem o mais importante: grandeza de atitude. Nossas conclusões (conclusas ou inconclusas) e nossas iniciações (sem finalizações) darão as medidas e as respostas que buscamos na vida.

O nosso estar no mundo é o produto que resulta no espelho: vivo, incontestável e imperfeito. Os dentes, portanto, se tornam desnecessários quando nos tornamos grandes.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma frase de Cora Coralina, uma das mais importantes poetisas e escritoras brasileiras, que diz:

“estamos todos matriculados na escola da vida, onde o mestre é o tempo.”

É preciso nos debruçar sobre nós mesmos. O tempo para isso existe. Mas a vida precisa que nossas mãos ajam e façam. Este papel é nosso. O papel dela, e do próprio tempo, que aqui são a mesma coisa, é o de apenas nos lembrar de que o calendário caminha, mas se vamos acompanhá-lo, será outra conversa.

O deslocamento de nossas visões deturpadas nos impede de criar vínculos com quem poderíamos ser. Se quiséssemos.