Andando pelo bairro, parei para
aguardar o farol. A minha frente, alguns homens retiravam a logomarca de uma
linda loja de sapatos que havia na esquina. Num primeiro momento, fiquei
triste: afinal, o fechamento de portas sempre indica sonhos frustrados de
alguém. Encerrar atividades num local, mesmo que vá para outro, indica, de
qualquer forma, logística intensa, cansaço e desgaste. Enquanto concluía meus
pensamentos, o sinal abriu e atravessei. E enquanto eu atravessava, outra
logomarca era carregada pelos mesmos homens, agora em direção para o interior
da loja: uma nova farmácia seria ali instalada. Imediatamente olhei para trás e
disse para mim mesma: “mas e aquela Droga Raia ali, na esquina? Outra farmácia?
Uma de frente para a outra?”
Pode parecer exagero da minha
parte, mas naquele momento me senti afrontada. Não por comparar sapatos com
remédios. Não por achar sapatos mais importantes do que remédios.
Absolutamente. Mas pela invasão de imposições que sofremos a cada dia por
cedermos espaços de nossas vidas. Ao cedermos estes espaços preciosos, e sem,
muitas vezes, percebermos, convidamos estranhos para entrarem em nossas casas. O que avança sempre busca espaços deixados
pelo que recuou.
A farmácia, em si, nada tem de
culpada. Se ela está ali é porque há demanda. Mas de qual demanda falamos?
Étienne de La Boétie, filósofo francês do século XVI, nos faz uma
provocação: “por que obedecemos? Por que abrimos
mão da nossa capacidade de decidir?” Em sua obra, o discurso da servidão voluntária, as provocações continuam:
O que nos seduz a obedecer? O que nos seduz a abrir mão da liberdade? A
nossa escolha em servir, em usar a máscara. A minha entrega ao tirano. A minha
capacidade de abrir mão da minha autonomia.
No mínimo, contraditório:
buscamos tanto a liberdade, a valorizamos tanto que nossas atitudes dizem justamente
o contrário: servimos e alimentamos alienações com a nossa participação e
anuência. Entregamo-nos ao tirano por escolha e por valorizarmos muito aquele
que nos diz qual é o caminho a ser seguido. Isto facilita muito as coisas. Quando
seguimos o estabelecido, o medido, o pisado e o pensado entregamos, de bandeja,
o que poderia ser. O tirano fica feliz com a nossa limitação do pensar e com a
nossa absoluta descrença na gente e na vida. Quanto mais a limitação nos
enquadrar, mais descrença e fuga geraremos.
Os tiranos caminham soltos,
livres e buscam a nossa obediência. E vendo aquela outra farmácia sendo
inaugurada, em meio a muitas existentes ali, me lembrei de um dos velhos e bons
tiranos que conhecemos: o medo. Não aquele medo salutar, que nos faz prestar
atenção ao atravessarmos a rua ou a nos afastar de algo que julgamos ruim. Mas
do medo que nos faz recuar diante a vida. Do medo diante os excessos que
ajudamos a construir e que por conta justamente deles, adoecemos. E os excessos
são muitos. Por medo de ficarmos sem dinheiro, trabalhamos demais. Por medo da
convivência e do contato com o outro, nos escondemos nas redes sociais por
horas. Por não nos respeitarmos como somos, exageramos nos procedimentos
estéticos. Por não sabermos lidar com os nossos medos e frustrações, descarregamos
nos outros nossas inquietações. Por medo de sofrermos, deixamos de amar. Por
medo de cairmos, deixamos de correr. Por medo da ridicularização alheia,
deixamos de expor a nossa opinião. Resultado? Dores. E nada como uma boa
farmácia e um bom médico para nos dizer o que fazer. Alimentamos, por meio de
nossas dores e medos, uma indústria que cresce.
Somos uma sociedade de medicados.
Somos uma sociedade que delega para a pílula a mágica da resolução de problemas
que ajudamos a construir. E um dos itens principais desta construção é,
certamente, o medo. Sentimo-nos inadequados. E esta inadequação gera dor. Como
são muitas as nossas dores, ficou fácil compreender o motivo de mais uma
farmácia aqui, perto de casa. E certamente perto da sua casa, também. Olhe em
volta.
O medo que sentimos do que está
por vir, do que já veio e do que está nos adoeceu. E estamos sem muitas condições
de debruçarmos sobre nós mesmos para ver onde nos perdemos. Fazer uma reflexão
sobre nossas dores e o que elas têm a nos ensinar nos ajudaria a frequentar
menos farmácias? Não sei, leviano de minha parte seria ter a resposta. Mas
fazer uma reflexão é possível. É o mínimo que a vida nos pede.
O filósofo francês, que faleceu
com apenas 33 anos, tinha toda razão quando disse que nos sentimos seduzidos pelo
obedecer. Claro. O caminho fica menos denso, menos tortuoso. Não precisar pensar sobre nós e sobre nossos
inquilinos, como o medo, é um facilitador de caminhos. Falso. Mas facilitador.
Acreditar que somos insuficientes
e que nunca seremos o bastante alimenta a usina do medo que, certamente,
contribui para o progresso de certas frentes. A insuficiência será sempre o
nosso lugar por excelência. Uma pena acreditarmos nisso.
Esta violência produtora do medo,
seja verbal, intelectual, moral e física. A violência costuma gerar sujeitos
cruéis e sem iniciativa. E muitas vezes, não é o que somos? O medo produzido
gera dinheiro, seguidores e propagadores. Alguém se alimenta do nosso medo. Compensa.
O que está nos movendo? Mal algum
há em acessarmos farmácias. Mas os excessos precisam ser vistos e pensados.
Engordamos os excessos. E esta falta de oportunidade de intercâmbio leva a nossa
subordinação emocional e intelectual.
O medo é uma forma de sofrimento.
E o respeito ao sofrimento é algo relativamente recente. Por isso, as farmácias
ainda andam cheias. Não queremos sofrer. Fugimos do sofrimento. Medicamos o
nosso sofrimento antes de ouvi-lo. Antes de buscar compreendê-lo. Fácil não é.
Mas quem disse que seria?
Os remédios são, literalmente, um
avanço e uma necessidade. Historicamente, quantas pessoas não morreram por
falta de medicamentos? Portanto, agradecê-los seria o básico de nossa parte. Longe
de fazer uma apologia à dor e ao masoquismo, a reflexão passa apenas por “por
que estamos nos excedendo neste consumo? Por que a dor deixou de fazer parte
dos nossos aprendizados?” Não sei a resposta. Leviano, novamente, seria tê-la.
Cheguei a tomar remédio para dor de cabeça sem
estar com dor de cabeça. Simplesmente por estar certa de que a dor me
visitaria naquele dia.
A farmácia inaugurada, portanto,
apenas se vale de nossas pequenezas traduzidas em medo. Ora somos vítimas
destas imposições, ora ajudamos a construir esta realidade. Daqui a pouco, esta
farmácia estará repleta de clientes que não se visitam há tempos. Tomarmos
remédios é, infelizmente, necessário. Mas fizemos todos os passos antes deles?
Que os remédios sejam
contribuidores para uma vida mais feliz e saudável. Mas que eles não sejam
espaçosos e se espalhem por lugares para os quais não foram convidados. “Os tiranos têm cúmplices”, diz Étienne de La Boétie. Portanto, que a
gente repense, se possível, nossa ida
à farmácia. Se ela existe, é porque tem a nossa cumplicidade. Um pouco de nós
colaborando para o caos onde estamos mergulhados.
Nossas grandes demandas são
emocionais. Escutar os nossos erros é imprescindível. Carregamos uma superficialidade
a respeito de quem somos. E isto nos atrasa.
Não deixamos a porta aberta para
as dores dizerem a que vieram. Ficamos perdidos em algumas discussões quase sempre
inúteis. Por isso, não avançamos. Somos hábeis no reforço do que não precisa.
Aristóteles diz que “o hábito
produz uma segunda natureza tão densa que a achamos natural.” Abafar as nossas
dores e sofrimentos se tornou uma segunda pele, em nós, um hábito. Por isso
naturalizamos a medicalização dos nossos pesares. As farmácias e a indústria
geradora do medo agradecem.
É preciso questionar as nossas
certezas, iluminar as dúvidas escondidas pelas nossas máscaras. Verificarmos os
nossos avessos porque eles sempre derrubam conceitos estéreis.
Investigar-nos é um grande
presente para nos dar. Atravessarmos a ponte para sabermos o que vai em nós.
Mas voltarmos. Participarmos dos nossos bordados e de nossas costuras. Um salto
de riscos. Um deixar-se construir pelos resultados dos problemas vividos.
A percepção sobre nós próprios
rompe o padrão e nos traz interpretações a nosso respeito. Viver a realidade
exige esforço.
O excesso nos convida a nos
revisitar. Irmos ao encontro de nós mesmos não é tarefa fácil. Mas necessária.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com dois pensamentos: um de Voltaire,
filósofo francês do século XVII, e outro de Molière,
dramaturgo francês do mesmo século, que dizem:
“Uma coletânea de pensamentos é uma farmácia moral onde se encontram
remédios para todos os males.” Voltaire
“Morreu de quatro médicos e dois farmacêuticos”. Molière
O pensamento de Voltaire, nos convidando a nos
reconhecer como dignos de pertencermos a esta farmácia moral por meio desta
coletânea de pensamentos. Este pensar poderá, se tivermos sorte, nos afastar de
algumas farmácias. Voltaire chamando
a nossa atenção para os muitos passos que precisamos dar antes das farmácias.
E o pensamento de Molière, um escritor que carregava, nas
tintas dos seus textos, um tom de sátira e de ironia, tão necessário para o
amadurecimento do nosso pensar. Molière chama a nossa atenção, de forma
irônica, a repensarmos a subserviência que damos aos nossos próprios algozes.
Ao contrário do que pensamos, provoca Molière,
o que achamos que está nos salvando está, na verdade, nos matando.
A propósito, onde fica a próxima farmácia?