domingo, 19 de setembro de 2021

Centavos válidos

Para este texto, parto de uma fala popular que diz: “não custa nada”.

Aquele que não tem compromisso com a cura, favorece a doença. Quem está às voltas com o recorte, é aguardado pelo banal. Quem se submete sem questionar, faz maus acordos.

Dizemos “não custa nada” para alguém. E alguém diz “não custa nada” para nós. Usamos o tempo como sinônimo de custo, e de custo baixo, nesta expressão. Por assim ser, o custar baixo ou o custar nada não nos oferece empecilhos. Portanto, o outro pode dispor do nosso tempo à vontade, e podemos dispor do tempo dos outros à vontade, também. Afinal, “não custa nada”. Por que, então, não fazer o que o outro pede, ou o que eu peço?

A relevância da vida está na forma como construo laços, como faço uso das ferramentas que estão ao alcance de minhas mãos, como avanço com os retrocessos fazendo ecos, em mim. Dizer “não custa nada” ou ouvir “não custa nada” reforça que o caminho ainda é muito longo para nós. Estamos distantes da compreensão do justo e do sentido porque somos insuficientes na disposição do pensar. Não queremos pensar. Não queremos manusear a construção. Imobilismo e precariedade ainda são fortes lugares para estacionarmos.

Não se trata de rigidez diante à vida. Estar em paz com ela é recomendado. Mas de refletir sobre falas prontas que esvaziam o nosso depósito ainda numa construção interminável. Tempo é legítimo, e com existência real. Se você discorda, vá diante um espelho e contemple-se. Você perceberá o tempo impresso na sua face. E se ainda assim você não se convencer, busque um calendário, e reflita sobre o tempo. Ele, portanto, custa. E caro.

Há diversas faces para a reflexão deste tema. Escolho considerar a direção que queremos dar para o caráter de autoria que o tempo tem. Ele constrói. Ele é um autor. Portanto, o que o tempo tem construído, em nós? A não aceitação da vulgarização do tempo do outro ou do nosso dará o tom do nosso viver.

O tempo custa. Tudo custa. O não custar nada talvez valha para aqueles cujos bolsos vão cheios, mas que nada fizeram para tal. Bolsos cheios de um ouro imitável, de um trabalho explorado, de um roubo esquecido, de uma ferrugem que nasce, mas que ninguém vê. Bolsos cheios de um esforço não feito, de um tapete arrancado, de um palco invadido para receber aplausos não merecidos.

Para aqueles cujos bolsos vão na medida ou cheios de uma permanência merecida e trabalhada, o tempo custa e sabe-se o esforço feito para pagá-lo, para investi-lo. Não há desperdícios, desmandos e deslizes. Aquele que sabe o quanto custa, todos os centavos são válidos e valiosos.

“Não custa nada”, disse alguém. Aceitar falas vazias e cansadas como esta é o mesmo que permitir marcações da insuficiência, em mim. É um passar pela vida do fundo de uma pobre arquibancada. Não duvidar do custo do nosso tempo ou do tempo do outro é caminhar ao encontro do nada, do vazio. É insistir em posturas dolorosas e atravessadas pela insensatez.

Não somos sujeitos que podemos tudo. Como assim é, por que dispomos do tempo do outro? Por que permitimos que o outro disponha do nosso? São questões miúdas, até banais, mas que sinalizam uma rejeição acerca do pensar sobre as nossas produções itinerantes que inviabilizam o ir além. Colocar-se, na vida, é crucial.

Rejeitamos um pensar que poderia nos levar além talvez por falta de intimidade para conosco. Quando somos íntimos, sabemos o que se passa. Quando a intimidade é escassa, até pedir licença é constrangedor. Há um abandono evidente da nossa capacidade de pensar, da nossa capacidade de construir um consenso. Resultados do nosso abandono costumam ficar à espreita, aguardando a obra da nossa alienação. É no esquecimento de nós e do que nos cabe fazer e pensar que brechas sinceras vão se acomodando enquanto se formam e se abrem.

Custa. Tudo custa. É preciso, pois, conhecer o nosso bolso para assumir dívidas. Conhecendo o que vai em nosso bolso, saberemos ter a delicadeza de recusar pessoas e demandas que fazem, ou querem fazer, do nosso tempo uma reserva da ociosidade delas. E o contrário como verdadeiro, também. É sempre útil ser gentil com aqueles que nos ocupam aleatoriamente. Talvez nós sejamos a única escola, para eles, parafraseando Francisco de Assis.

Usar o tempo dos outros indistintamente ou permitir que assim seja feito com o nosso é uma das características do nosso tempo. Perdemos algumas dimensões importantes de indicativos de limite, ética, integridade, respeito, espaço, intimidade. Não que antes houvesse tido tempos perfeitos. Mas arrisco dizer que este formato no qual vivemos e construímos, hoje, conectados com tudo e todos, criou uma falsa ideia de que podemos usar o tempo do outro de acordo com as nossas necessidades e conveniências, e vice-versa, assim como criou uma relação de excessos entre nós (o outro sempre está a minha disposição, e nós estamos sempre à disposição do outro). Relações doentes cujos frutos nascem deformados. Ao mesmo tempo que este formato nos permitiu alcançar o outro, nos permitiu reduzir este outro a nossa agenda. Tempos esquisitos, estes. Falhamos na forma, no conteúdo. Quem sabe seja este o motivo que explique o fechamento de livrarias e o esvaziamento das bibliotecas.

Não use o tempo dos outros de acordo com a sua necessidade e conveniência. Se, mesmo assim, você precisar usar o tempo do outro, lembre-se de deixar obras sólidas por lá. Respeite. O mesmo vale para aquele que tem planos de usar o nosso tempo. Não sejamos negociadores do tempo.

Sem saudosismos, mas que nossos passados sejam resgatados não como lugares vivos para se viver, mas como baús precisos de memória, referências vivas que provam a veracidade dos nossos tamanhos, e assim os mesmos erros não serem cometidos. Já usamos o tempo do outro de forma irresponsável, e não deu certo, lembra? Por que continuarmos numa estrada cujos retornos não existem?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Francis Bacon, Filósofo inglês, século XVI, que diz:

“Escolher o seu tempo é ganhar tempo”.

Construa o possível por meio do seu tempo. O caráter autoral dele precisa ser respeitado e atendido. “Escolher o seu tempo é ganhá-lo”.

Que a gente faça do nosso tempo um autor, e não um depósito de lixos alheios e alienantes. Que a gente perceba que o tempo do outro não é descarte de demolição. Urgente caminhar para alcançar as perguntas que o tempo nos tem feito, e construir as respostas que a vida nos cobrar. Para isso, é preciso ter tempo. Um tempo caro, que custa. Um tempo precioso.