“Vai lá que eu fico aqui”, disse
um senhor, na fila do mercado, para a senhora que o acompanhava. “Se aqui andar
mais depressa você vem pra cá, entendeu?”, disse ele para ela. E ela concordou.
Ele numa fila; ela em outra. Simples assim. Não um simples que engrandece; mas
um simples que empobrece e que constrange.
Não aprendemos aquilo que nos é
ensinado; aprendemos aquilo que nos é possível ser processado. Portanto,
educação é resultado do que tivemos acesso versus
do que conseguimos compreender, absorver e processar. Talvez, em algum momento
da vida, nos tenha sido ensinado que ocupar vários lugares, ao mesmo tempo, é tirar o lugar de um
alguém. No entanto, talvez a nossa
capacidade de compreensão deste ensinamento e, consequentemente, de atuação e
processamento não tenha se desenvolvido o suficiente.
Somos seres em construção,
inacabados e inconclusos. E toda obra inacabada e em construção ainda suja
bastante as calçadas, espalha terra e cimento, emporcalha os calçados dos que
passam, e mostra, sem o mínimo pudor e preocupação, a rede elétrica ainda sendo
feita com os fios e conduítes expostos.
Quando recuamos alguns passos em
nós, em nossa trajetória, temos acesso ao que foi feito, e desta forma,
refazermos o caminho. E de lá de trás, nos revisitarmos e, quem sabe, descobrirmos
que, sem querer, ocupamos alguns
lugares a mais.
Qual é o lugar que nos cabe? Por
que avançamos para lugares cujos espaços não podemos ocupar? De onde vem a
crença de que podemos? Impossível encontrar estas respostas sem diálogos
constantes conosco. E não havendo diálogos, nos tornamos insuficientes para nós.
Uma insuficiência como antônimo de bastante, aquilo que deveria nos nutrir e
nos fazer nos orgulhar da nossa construção, daquilo que vai em nós.
Não somos o bastante para nós
porque carregamos as marcas da incompletude e da diminuição que insistimos que
se tornem a nossa segunda pele, a marca da máscara que há tempos vai em nosso
rosto, como disse Fernando Pessoa. Quando o bastante tiver espaço em nós, não
sentiremos a necessidade de insistirmos nas nossas impermanências. Cederemos espaço
para o esvaziamento da necessidade da vantagem e andaremos de forma mais mansa,
pela vida.
Exigimos que a vida faça o que
queremos. E se ela não faz, damos o nosso
jeito. Independentemente da fila que escolhermos estar na vida, sempre
haverá riscos de ela caminhar mais lentamente que a do vizinho. Mudarmos de
fila é possível desde que haja espaço no outro lugar e a não interferência, de
nossa parte, na dinâmica dos que vão a nossa frente ou, até mesmo, ao nosso
lado.
O peso das nossas exigências para com a vida nos desequilibra.
Ocupamos espaços na vida sem,
sequer, termos sido convidados. Chegamos, nos ajeitamos, pegamos algo para
comer, ligamos a tevê e nos espalhamos. Este nosso olhar espaçado para o espaço
que não temos e que, provavelmente, não
teremos, nos cega frente ao lugar que realmente temos, o lugar que nos cabe. Lugares que não são nossos, mas que
invadimos. Lugares que achamos que podemos ocupar porque os nossos atrasos autorizam,
diariamente, esta nossa cegueira num mundo que assiste a tudo, porém nada vê,
nada enxerga.
Reconhecer o espaço que nos cabe
implica, antes, termos passado em nós mesmos. Somente quando nos visitamos com frequência e nos encontramos com a
gente é que a vida vai tendo oportunidade de nos dizer o nosso tamanho, os
espaços aos quais temos direito, e, principalmente,
os espaços que podemos ocupar. Mas sempre estamos com tanta pressa que a vida, por pena de nós, não interrompe a nossa
vulnerabilidade. Ela sabe que os nossos anzóis vão cheios de presas que, mais
cedo ou mais tarde, precisarão ser soltas de volta ao mar. E este será um
trabalho individual. Nosso. Por isso, ela não tem pressa.
Não é porque ocupamos e estamos num espaço que ele nos pertence ou que
temos direito a ele. Espaço, aqui, não significa, apenas, um local físico
ocupado por nós, seja ele merecido ou não. Significa, também, palavras que
dizemos, gestos e posturas. Portanto, somos um espaço exposto no mundo com tudo
o que nos movimenta. Somos um reflexo no mundo: um reflexo que reflete nossas
obras inacabadas, nossas imperfeições e nossas inadequações. Refletir e agir
sobre isso é essencial se quisermos nos alargar como humanos.
Somos frágeis em nossas
singularidades. Somos sensíveis em nossas particularidades. Há tanto por se
fazer. Por isso mesmo ainda não fazemos nem o básico.
As filas avançaram e a que a
senhora estava caminhou mais rápido. O senhor, com a consciência mais leve que
uma singela caneta que endossa e assina a nossa hipocrisia, levou o seu
carrinho para a fila ao lado, e lá permaneceu ao lado da senhora. As pessoas que
estavam atrás entortaram os narizes e testas, mas nada que resultasse numa ação,
como bons ativistas de sofás, que somos.
Indignação sem ação é o reconhecimento da nossa conivência, mesmo que
seja passiva. Todos reclamam. Todos se calam. E assim, seguimos nossa
rotina amadora e avançamos para trás, para lugares cujos proprietários
desconhecemos.
Atitudes sem ética e sem caráter,
como esta, são revestidas de normalidade. A normalidade que damos a algumas
coisas nos fornece atalhos para o aliviar de consciência. Atalhos sempre foram
as ferramentas dos fracos e dos falsos espertos. Os fortes, ocupados pelas
pernas, passos e relevâncias que possuem não perdem tempo com o ilusório,
restrito e desestruturante.
Outro senhor chega, agora numa
agência bancária, e retira duas senhas: a de prioridade para os idosos e a
senha comum. Ao encontrar um conhecido na fila, diz: “é preciso ser esperto na
vida. Não dá para perder tempo. Quem chamar primeiro eu vou.” Quem disse que o
senhor do mercado não possui seguidores? Até
mesmo fora do Insta, os seguidores avançam.
O que nos determina são as
ausências dos nossos pés fincados no chão. O que nos determina são as nossas fugas
frente às renúncias que precisamos abraçar.
Escolher uma fila e permanecer.
Obter uma senha e aguardar ser chamado. Uma atitude simples, mas que, de tão
desprezada, a simplicidade adoeceu. Mas por que a simplicidade segue tão
desacreditada? Talvez porque ela seja desprovida de máscaras, de disfarces, de
senão, de bastidores.
Tudo isso faz parte de uma
consciência que caminha a passos de formiga e sem vontade, como diz a música do
Lulu. Consciência é reconhecer a própria existência e buscar saídas honrosas e
éticas para saber o que fazer com ela. Mas ainda não estamos neste capítulo da
nossa história porque a fila que anda mais depressa ainda é prioridade para
nós.
Conscientizar-se é ter uma certa
dose de desobediência. É sair do trajeto pisado que somente nos levará até
aonde os outros foram e chegaram. Se queremos avançar e criar a nossa autoria,
é bom nos apressarmos. A vida costuma esperar, mas à maneira dela. É preciso clareza sobre isto.
Estamos em conflito permanente
porque temos tantas informações, mas simplesmente não sabemos o que fazer com
elas. Achamos que sabemos porque a quantidade nos conforta. Julgamo-nos
espertos porque passamos na frente de alguém, no Banco? Achamos que ganhamos
tempo, na vida, porque conseguimos,
por esperteza, descobrir a fila mais rápida? Uma informação pode nos conduzir a
algum lugar. Muitas informações nos conduzem à desinformação.
Ainda se vive, sem perceber, numa
condição de alienação. E este estado de alienação nos tira a condição e a
capacidade de ação e de existência. As saídas para as portas certas existem,
mas não possuímos as chaves.
A vulnerabilidade está ganhando
cada vez mais espaços em nossas vidas. As coisas vão ganhando complexidade. As
vírgulas vão nos exigindo paradas, vão colocando respiros em nossa condição de
humanos.
Nossas atitudes indicam nossos
supostos desertos e um profundo cansaço provocado pela ausência de nós mesmos.
Há muito não nos encontramos para um café, um papo rápido, que fosse. É preciso
encontrar aquilo que frutificou de nosso cansaço e de nossas exclusões, e
buscarmos saídas para isto.
É muito importante que a gente
consiga mudar o patamar da nossa relevância. Caso contrário, continuaremos,
ainda por muito tempo, a acreditar que somos bons e espertos porque passamos o outro
para trás, porque achamos que ganhamos tempo, porque conseguimos descobrir a
fila mais rápida.
Nossas inferioridades criando
laços com nós, em nós, produzindo, assim, dificuldades para que a gente mesmo os
desate. Ilusão acharmos que isto se delegaria para alguém.
Nossas obscuridades caminham nos
nossos luxos, nos nossos ossos e nos nossos palácios de areia. Não aquela areia
mais firme, aquela fofa, mesmo.
Temos memória curta, por isso nem
nos lembramos mais daquela passadinha na frente, no mercado, inocente. Mas a vida
tem memória longa, bem longa. Sabe cobrar os atrasados.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação de Gandhi,
que diz:
“A prisão não são as grades, e a liberdade não é a rua; existem homens
presos na rua e livres na prisão. É tudo uma questão de consciência.”
Quando a consciência consciente
for o nosso padrão de conduta, esta fala de Gandhi
será natural para nós. E assim sendo, os nossos nós cairão em desuso e servirão
para ilustrar uma parte importante do museu da cidade, sempre pronto a nos receber.
Não para nos ameaçar, mas para nos lembrar do que fomos capazes. Um museu
silencioso e manso que se alegrará por, finalmente, termos renunciado à mania
que tínhamos de aderir ao sofrimento, como a busca de uma fila mais rápida, ou
a esperteza da senha, no Banco.