domingo, 24 de fevereiro de 2019

Vai lá que eu fico aqui

“Vai lá que eu fico aqui”, disse um senhor, na fila do mercado, para a senhora que o acompanhava. “Se aqui andar mais depressa você vem pra cá, entendeu?”, disse ele para ela. E ela concordou. Ele numa fila; ela em outra. Simples assim. Não um simples que engrandece; mas um simples que empobrece e que constrange.

Não aprendemos aquilo que nos é ensinado; aprendemos aquilo que nos é possível ser processado. Portanto, educação é resultado do que tivemos acesso versus do que conseguimos compreender, absorver e processar. Talvez, em algum momento da vida, nos tenha sido ensinado que ocupar vários lugares, ao mesmo tempo, é tirar o lugar de um alguém. No entanto, talvez a nossa capacidade de compreensão deste ensinamento e, consequentemente, de atuação e processamento não tenha se desenvolvido o suficiente.

Somos seres em construção, inacabados e inconclusos. E toda obra inacabada e em construção ainda suja bastante as calçadas, espalha terra e cimento, emporcalha os calçados dos que passam, e mostra, sem o mínimo pudor e preocupação, a rede elétrica ainda sendo feita com os fios e conduítes expostos.

Quando recuamos alguns passos em nós, em nossa trajetória, temos acesso ao que foi feito, e desta forma, refazermos o caminho. E de lá de trás, nos revisitarmos e, quem sabe, descobrirmos que, sem querer, ocupamos alguns lugares a mais.

Qual é o lugar que nos cabe? Por que avançamos para lugares cujos espaços não podemos ocupar? De onde vem a crença de que podemos? Impossível encontrar estas respostas sem diálogos constantes conosco. E não havendo diálogos, nos tornamos insuficientes para nós. Uma insuficiência como antônimo de bastante, aquilo que deveria nos nutrir e nos fazer nos orgulhar da nossa construção, daquilo que vai em nós.

Não somos o bastante para nós porque carregamos as marcas da incompletude e da diminuição que insistimos que se tornem a nossa segunda pele, a marca da máscara que há tempos vai em nosso rosto, como disse Fernando Pessoa. Quando o bastante tiver espaço em nós, não sentiremos a necessidade de insistirmos nas nossas impermanências. Cederemos espaço para o esvaziamento da necessidade da vantagem e andaremos de forma mais mansa, pela vida.

Exigimos que a vida faça o que queremos. E se ela não faz, damos o nosso jeito. Independentemente da fila que escolhermos estar na vida, sempre haverá riscos de ela caminhar mais lentamente que a do vizinho. Mudarmos de fila é possível desde que haja espaço no outro lugar e a não interferência, de nossa parte, na dinâmica dos que vão a nossa frente ou, até mesmo, ao nosso lado.

O peso das nossas exigências para com a vida nos desequilibra.

Ocupamos espaços na vida sem, sequer, termos sido convidados. Chegamos, nos ajeitamos, pegamos algo para comer, ligamos a tevê e nos espalhamos. Este nosso olhar espaçado para o espaço que não temos e que, provavelmente, não teremos, nos cega frente ao lugar que realmente temos, o lugar que nos cabe. Lugares que não são nossos, mas que invadimos. Lugares que achamos que podemos ocupar porque os nossos atrasos autorizam, diariamente, esta nossa cegueira num mundo que assiste a tudo, porém nada vê, nada enxerga.

Reconhecer o espaço que nos cabe implica, antes, termos passado em nós mesmos. Somente quando nos visitamos com frequência e nos encontramos com a gente é que a vida vai tendo oportunidade de nos dizer o nosso tamanho, os espaços aos quais temos direito, e, principalmente, os espaços que podemos ocupar. Mas sempre estamos com tanta pressa que a vida, por pena de nós, não interrompe a nossa vulnerabilidade. Ela sabe que os nossos anzóis vão cheios de presas que, mais cedo ou mais tarde, precisarão ser soltas de volta ao mar. E este será um trabalho individual. Nosso. Por isso, ela não tem pressa.

Não é porque ocupamos e estamos num espaço que ele nos pertence ou que temos direito a ele. Espaço, aqui, não significa, apenas, um local físico ocupado por nós, seja ele merecido ou não. Significa, também, palavras que dizemos, gestos e posturas. Portanto, somos um espaço exposto no mundo com tudo o que nos movimenta. Somos um reflexo no mundo: um reflexo que reflete nossas obras inacabadas, nossas imperfeições e nossas inadequações. Refletir e agir sobre isso é essencial se quisermos nos alargar como humanos.

Somos frágeis em nossas singularidades. Somos sensíveis em nossas particularidades. Há tanto por se fazer. Por isso mesmo ainda não fazemos nem o básico.

As filas avançaram e a que a senhora estava caminhou mais rápido. O senhor, com a consciência mais leve que uma singela caneta que endossa e assina a nossa hipocrisia, levou o seu carrinho para a fila ao lado, e lá permaneceu ao lado da senhora. As pessoas que estavam atrás entortaram os narizes e testas, mas nada que resultasse numa ação, como bons ativistas de sofás, que somos.

Indignação sem ação é o reconhecimento da nossa conivência, mesmo que seja passiva. Todos reclamam. Todos se calam. E assim, seguimos nossa rotina amadora e avançamos para trás, para lugares cujos proprietários desconhecemos.

Atitudes sem ética e sem caráter, como esta, são revestidas de normalidade. A normalidade que damos a algumas coisas nos fornece atalhos para o aliviar de consciência. Atalhos sempre foram as ferramentas dos fracos e dos falsos espertos. Os fortes, ocupados pelas pernas, passos e relevâncias que possuem não perdem tempo com o ilusório, restrito e desestruturante.

Outro senhor chega, agora numa agência bancária, e retira duas senhas: a de prioridade para os idosos e a senha comum. Ao encontrar um conhecido na fila, diz: “é preciso ser esperto na vida. Não dá para perder tempo. Quem chamar primeiro eu vou.” Quem disse que o senhor do mercado não possui seguidores? Até mesmo fora do Insta, os seguidores avançam.

O que nos determina são as ausências dos nossos pés fincados no chão. O que nos determina são as nossas fugas frente às renúncias que precisamos abraçar.

Escolher uma fila e permanecer. Obter uma senha e aguardar ser chamado. Uma atitude simples, mas que, de tão desprezada, a simplicidade adoeceu. Mas por que a simplicidade segue tão desacreditada? Talvez porque ela seja desprovida de máscaras, de disfarces, de senão, de bastidores.

Tudo isso faz parte de uma consciência que caminha a passos de formiga e sem vontade, como diz a música do Lulu. Consciência é reconhecer a própria existência e buscar saídas honrosas e éticas para saber o que fazer com ela. Mas ainda não estamos neste capítulo da nossa história porque a fila que anda mais depressa ainda é prioridade para nós.

Conscientizar-se é ter uma certa dose de desobediência. É sair do trajeto pisado que somente nos levará até aonde os outros foram e chegaram. Se queremos avançar e criar a nossa autoria, é bom nos apressarmos. A vida costuma esperar, mas à maneira dela. É preciso clareza sobre isto.

Estamos em conflito permanente porque temos tantas informações, mas simplesmente não sabemos o que fazer com elas. Achamos que sabemos porque a quantidade nos conforta. Julgamo-nos espertos porque passamos na frente de alguém, no Banco? Achamos que ganhamos tempo, na vida, porque conseguimos, por esperteza, descobrir a fila mais rápida? Uma informação pode nos conduzir a algum lugar. Muitas informações nos conduzem à desinformação.

Ainda se vive, sem perceber, numa condição de alienação. E este estado de alienação nos tira a condição e a capacidade de ação e de existência. As saídas para as portas certas existem, mas não possuímos as chaves.

A vulnerabilidade está ganhando cada vez mais espaços em nossas vidas. As coisas vão ganhando complexidade. As vírgulas vão nos exigindo paradas, vão colocando respiros em nossa condição de humanos.

Nossas atitudes indicam nossos supostos desertos e um profundo cansaço provocado pela ausência de nós mesmos. Há muito não nos encontramos para um café, um papo rápido, que fosse. É preciso encontrar aquilo que frutificou de nosso cansaço e de nossas exclusões, e buscarmos saídas para isto.

É muito importante que a gente consiga mudar o patamar da nossa relevância. Caso contrário, continuaremos, ainda por muito tempo, a acreditar que somos bons e espertos porque passamos o outro para trás, porque achamos que ganhamos tempo, porque conseguimos descobrir a fila mais rápida.

Nossas inferioridades criando laços com nós, em nós, produzindo, assim, dificuldades para que a gente mesmo os desate. Ilusão acharmos que isto se delegaria para alguém.

Nossas obscuridades caminham nos nossos luxos, nos nossos ossos e nos nossos palácios de areia. Não aquela areia mais firme, aquela fofa, mesmo.

Temos memória curta, por isso nem nos lembramos mais daquela passadinha na frente, no mercado, inocente. Mas a vida tem memória longa, bem longa. Sabe cobrar os atrasados.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Gandhi, que diz:

“A prisão não são as grades, e a liberdade não é a rua; existem homens presos na rua e livres na prisão. É tudo uma questão de consciência.”

Quando a consciência consciente for o nosso padrão de conduta, esta fala de Gandhi será natural para nós. E assim sendo, os nossos nós cairão em desuso e servirão para ilustrar uma parte importante do museu da cidade, sempre pronto a nos receber. Não para nos ameaçar, mas para nos lembrar do que fomos capazes. Um museu silencioso e manso que se alegrará por, finalmente, termos renunciado à mania que tínhamos de aderir ao sofrimento, como a busca de uma fila mais rápida, ou a esperteza da senha, no Banco.

domingo, 3 de fevereiro de 2019

O silêncio desprezado

Há uma semana do que aconteceu em Brumadinho, mais um caso que nos relembra a nossa pequenez, vejo, pela tevê, candidatos ao Senado e os famigerados apoiadores distribuindo santinhos nos corredores. Mudo de canal porque o meu estômago, às vezes, pede um refresco. A minha capacidade de digestão, e acho que a sua também, têm limites. Por isso, mudo de canal mesmo que isto me custe pagar o preço da alienação. Volto para o computador e ouço, pertinho de mim, o silêncio da rua que me permitiu perceber o som de um pássaro cantando na árvore do jardim, aqui do prédio. Um canto firme e persistente do pássaro que, sem o silêncio que se impunha, não seria percebido.

“Vocês, Ocidentais, são muito barulhentos. Precisam aprender a arte de silenciar”, disse, certa vez, um líder indiano. Infelizmente, abrimos mão de aprendizados valiosos como este. Mas a vida espera pela nossa boa vontade. Só não sei quanto a boa vontade dela.

Lembrei-me deste ensinamento ao ouvir aquele pássaro que tanto me ensinava naquele momento: um recolher de asas aqui, um canto lá, uma passada leve e devagar, um olhar para a natureza, um sacudir de penas logo ali. Fiquei me dando ao luxo de reparar aquele pássaro por alguns segundos, e era isso o que ele fazia: com calma e em silêncio, seguia seu rumo sem se impor para a vida. O contrário: via-se a própria vida se manifestando através dele. Um caminhar leve e silencioso que, de tão distante de nós, desaprendemos como fazê-lo. Mas o pássaro sabia. Aquele silêncio que eu ouvia e que me permitia ouvir o pássaro, me ensinava.

Fiquei refletindo sobre o silêncio e a utopia da presença dele em nossas vidas. É preciso silenciar para ouvir. Ouvir os pássaros e o que a vida, há tempos, insiste em nos dizer. Se em silêncio estivéssemos, talvez a barragem, em Brumadinho, não tivesse se rompido. Não sei. Era uma possibilidade. Mas o barulho construído por nós, por meio da nossa vaidade, ganância e egoísmo, impediu esta esperança. O silêncio desprezado.

Aqueles políticos famintos, distribuindo os santinhos, me enojaram, confesso, frente ao que aconteceu com Brumadinho, com as pessoas, com a Natureza, com os animais. Cito Brumadinho porque é o crime atual de uma lista que não se esgota, infelizmente. O crime atual desta semana vigente, e destas horas que falo. Porque sempre há um crime fresco, novinho em folha saindo de um forno que não desliga os seus botões da ineficiência, do retardo, do descaso com uma Nação que, de longe, é. Uma Nação pressupõe união. União?

Desnecessário discorrer sobre os detalhes deste crime. Os noticiários nos abasteceram o suficiente. Por isso, o estômago se enfurece. Apenas tomo a liberdade de propor uma reflexão sobre o silêncio. É preciso silenciar para saber o que vai em nós. Não um silêncio passivo, inaudível e ativista de sofá, mas um silêncio que revela o mal que vai em nós. Que revela a vergonha que deveríamos sentir ao naturalizarmos as coisas cruéis e inescrupulosas. Um silêncio constrangedor que nos expõe e nos rebaixa à condição do subsolo. Um silêncio de mãos firmes que nos exige, no mínimo, que a gente abra mão de vivermos apartados.

Somos engolidos pela confusão interna e externa e por apelos que nos dispersam, num mundo barulhento. É preciso interromper este automatismo e desativar os dispersadores dos nossos sentidos adoecidos e perdidos. Enquanto uns morrem sem o menor escrúpulo, enquanto animais lutam para conseguirem tirar suas patas da lama, outros distribuem santinhos pelos corredores bem aprumados. Lama lá, há muita. Mas estão submersas nos tapetes azuis do Senado como metáforas de uma construção inacabada, que é o que somos.

O mundo sempre foi um lugar conflituoso. A questão hoje é a exaustão. Falimos. Nossos conflitos não são explicitados. Passamos por cima deles porque somos muito barulhentos, ruidosos. Não nos ouvimos. Daqui a pouco nem falaremos mais sobre Brumadinho. Ou se falarmos, será como uma página triste de nossas histórias.

O tempo é silencioso e sábio. Há tempos que o tempo nos encaminha nossas contas. Mas estão todas nos esperando sobre o capacho de nossas portas.

O silêncio vem da sabedoria do tempo. O ruído e o barulho vêm da gente. O silêncio e o barulho são incompatíveis. É preciso fazer uma escolha.

Não estamos sendo capazes de viver conosco. Por isso o barulho ensurdecedor das buzinas que buzinam a todo o tempo. O barulho tornou-se um hábito para esconder os nossos vazios. “Fala demais por não ter nada a dizer”, diz Renato Russo. Falamos muito, dizemos muito. Enquanto isso, a ação morre e a lama cobre sonhos, vidas e pessoas.

O hiato em nós nos torna barulhentos. Assim não pensamos e não agimos. Seguimos os passos já pisados e trilhados. Isto explica porque as coisas se repetem, infelizmente. O que foi Brumadinho senão a repetição agravada, se é que é possível dizer isto, de Mariana?

No barulho, o silêncio perde espaço. Nada se constrói no barulho. Nossas amizades são fortalecidas não pelas falas constantes, mas pelos silêncios concedidos nos momentos críticos. O silêncio é a construção. O barulho é a destruição e a alienação. No barulho, não temos condições de enxergar o que se passa. Ele favorece o aflorar do nosso oportunismo e do nosso egoísmo. Este sufixo “ismo” que diz que optamos pelo adoecimento.

Quando o silêncio nos preenche, fazemos menos barulho. O que aconteceu com Brumadinho é a representação do barulho e da lama que vão em nós. Não a lama da terra, que abraçou Brumadinho, mas uma lama moral, presente em cada um de nós.

A Natureza chorou nesta semana, em Brumadinho. Um choro triste e ressentido. A Natureza não se vingou, como muitos disseram, mas apenas foi vítima da nossa indignidade. Se eu pudesse, retiraria nosso título de humanos. Acho que não o merecemos. A barbárie talvez fosse um melhor encaixe para nós.

Shakespeare dizia: “Não há arauto mais perfeito da alegria do que o silêncio”. Há muito o que fazer. Se ainda não silenciamos e não o valorizamos como instrumento de construção, a alegria é um degrau distante de nós. Somos, quase todos, rejeitadores do silêncio.

Mais importante que relembrar a importância do silêncio, será reaprendermos a silenciar.

Dizem que Beethoven, durante um ensaio da Filarmônica de Berlim, interrompeu os trabalhos para dizer, a uma violonista: “neste intervalo, não há nota a ser tocada. Isso é o sagrado desta sinfonia.” Se isto é verdade ou lenda, não sei. Mas que Beethoven era um gênio que já valorizava o silêncio e suas pausas, não há dúvidas. Por que a violonista quis preencher um espaço com outra nota? Por que o silêncio deveria soar incômodo, intimidador. Mas Beethoven trouxe que “o sagrado daquela sinfonia era aquele intervalo sem notas”. Ou seja, o silêncio. Este intervalo que a vida precisa para se manifestar. Brilhante. O convite está feito.

Os ruídos alimentam os nossos vazios. Impomos a nossa presença ao outro por meio de barulhos. As pausas fazem toda a diferença. São elas e os silêncios que nos permitem discutir as nossas fragmentações.

Viver o silêncio é resgatar a nossa dignidade perdida. Dignidade é a condição de nos carregar, com nossos temores, horrores e pequenezas. Mas há um descompasso nisto. Por isso, a todo o momento precisamos nos explicar. Sempre estamos devendo.

Explicar-se é um contato medonho que temos na vida. Ainda isto é preciso por estarmos nesta condição de imprecisos, inconclusos e devedores que somos.

Penso que se ficássemos quietos e evitássemos ruídos, nossos resultados seriam melhores. No momento em que escrevo esta frase, uma moto barulhenta passa na minha rua, impondo o seu barulho a mim. Ironia. Um barulho cafona e brega que me obriga a percebê-lo.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação do próprio Beethoven, o gênio compositor alemão, que diz:

“Nunca quebre o silêncio se não for para o melhorar.”

Se fôssemos seguir o conselho de Beethoven, nosso tempo seria vivido mais em silêncio do que em palavras. Porque, de verdade, desconfio se queremos melhorar sem esforço. Somente os corajosos ouvem o silêncio e o encaram como aquele que os tirará da paralisia ética e moral.   Beethoven tinha toda a razão. A genialidade dele foi capaz de ser traduzida em maravilhosas obras porque ele valorizou o silêncio. Certamente porque não ficou em corredores nem distribuindo e nem, muito menos, recebendo santinhos, uma metáfora daquele que constrói ruídos por não ter a competência de ouvir e de perceber o silêncio, o único instrumento que possibilita retomar a nossa autonomia e a nossa obrigação como humanos.