segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Nossas doentes narrativas

Mesmo sem percebermos, narramos. A narrativa é algo que faz parte da vida humana. Seja por meio de símbolos, palavras, gestos, expressões, o fato é que narramos. O ato de narrar nos compõe como seres numa sociedade cada vez mais distante das próprias narrativas, da própria história. Narramos para nos compreender melhor, para nos questionar e para, com um pouco de esforço e dedicação, entender a nossa história. Portanto, a narrativa somos nós.

A nossa narrativa de vida resulta na nossa história. Somos frutos disto. E para que haja uma história de vida, a nossa por exemplo, é preciso ter o que contar e, principalmente, ter quem contar. Dependendo de quem conta, a história muda completamente.

Uma narrativa bem construída é composta por enredo (sequência dos fatos relacionados entre si), personagens (quem vivenciou os fatos) e o lugar onde tudo acontece. Enredo é o que nos acontece e que compõe o nosso repertório. As personagens representam a gente mesmo ou as pessoas com as quais convivemos e trocamos experiências, mesmo que mínimas. O lugar representa o cenário aonde tudo acontece. E o conflito e o desfecho que não podem faltar numa boa narrativa. Apesar de sabermos disto (afinal, quem nunca teve uma aula sobre redação na qual nos pediram um texto com o famoso “começo, meio e fim”?), nossas narrativas adoeceram.

Vivemos uma fragmentação de sentidos, de pensamentos e de ações. Começamos muitas coisas e nada ou pouco finalizamos. E quando finalizamos, às custas de sacrifícios e procrastinações. Queremos rapidez e urgência. Corremos nas escadas rolantes e o metrô é lento para nós. Se alguém começa a falar, interrompemos e completamos o raciocínio dele. Tiramos deste alguém a oportunidade de expressão. Lemos somente as manchetes e nos achamos atualizados. Intitulamo-nos generalistas sobre temas cujo conhecimento não passa de algumas horas...Nossa fala é ansiosa como reflexo das nossas narrativas interrompidas. Sabemos um pouco sobre o pouco. Deveríamos aprender mais sobre poucas coisas, mas as necessárias.

Desrespeitamos em nome da pressa. Corrompemos pensamentos e sonhos. Orgulhamo-nos de nossos seguidores e amigos que são, na maioria, virtuais. Pouco conhecemos sobre eles. E eles nada sabem sobre nós. A sintonia é grande, então. Para quem você pode ligar às duas horas da madrugada, sem constrangimento e intimidação, pedir ajuda e ter a certeza de recebê-la? Este é o seu amigo de verdade. Desconfio, seriamente, de pessoas que dizem ter mais de dez amigos. No máximo, temos conhecidos, colegas, pessoas próximas etc. Por que nos orgulhamos de termos seguidores no twitter? Para alimentar a inveja alheia com as nossas conquistas ou para nos tornarmos alvo de vendedores que estão à espreita da nossa imagem?

Nada contra. Mas por que esta tem sido a nossa principal opção? Uma das possíveis respostas é a que dá título a este texto: nossas narrativas adoeceram. Nossas histórias estão fragmentadas, espaçadas, curtas. Temos dificuldades de investigarmos as nossas questões. Queremos as respostas prontas. As nossas fragmentações nos limitam, evitam a nossa expansão. Quanto mais fragmentados estamos, menos foco e atenção damos às coisas. E quanto menos foco e atenção, mais manipuláveis somos. E a manipulação precisa de ambientes hostis, frágeis e insalubres para sobreviver. Desta forma, não teremos tempo para contestações.

O amanhã é sempre um lugar mais confortável para nós. Como ele nunca chega, porque o futuro é somente o presente pensado a longo prazo, nossas realizações vão se acomodando também neste espaço criado por nós e que tanto nos conforta e nos aquece. Somos frágeis iniciadores com dificuldades de enxergar a linha de chegada. Ficamos enroscados no meio do caminho e nos confundimos com as saídas. Por isso, demoramos a chegar.

Realizamos muitas coisas, obviamente. Mas poderíamos fazer mais se não fosse esta fragmentação do pensar que nos toma como propriedade e que dificulta, e muito, o nosso caminhar e o nosso agir. Ler um texto grande, hoje, é um martírio para muitos. “Lê e me fala depois sobre o que se trata. Estou sem tempo agora. ” Esta fragmentação dificulta e até impossibilita a construção de nossas narrativas.

Como construir nossas narrativas sem tempo? Como criar o desfecho, se não temos paciência e disposição para tratar dos conflitos da trama? Como narrar o enredo, se não temos o compromisso com os fatos? Como entender a dinâmica dos personagens, se a coragem para nos conhecer e compreender a nossa própria história não participa desta conversa?

A fragmentação do pensar e do agir sempre estiveram presentes em nossas vidas. Porém, a tecnologia deu um empurrãozinho nisto, acentuando este distanciamento que há entre a narrativa solidamente construída versus a narrativa interrompida e fragmentada. A solidamente construída se utiliza do tempo, da paciência, do pensar e do querer. A interrompida e fragmentada se utiliza da urgência, da falta de tempo criada pelo Homem, da pressa e da completa ausência de interesse pela história, seja ela contada ou ouvida.

As redes sociais provocam e acentuam esta fragmentação. Não apenas elas, mas fortemente favorecem o raciocínio curto, pontual, superficial e amador. O que menos nos proporcionam, enquanto navegamos nas redes sociais, é tempo. O que fazemos, e muito, é perdê-lo. Mas não podemos responsabilizá-las pelo poder que, indevidamente, damos a elas.

O twitter, por exemplo, é um local de escrita breve. Cento e quarenta caracteres. Ponto. Nada mais. Como entender qualquer narrativa em 140 caracteres? Não é a utilização do twitter ou de outra ferramenta que nos induz à fragmentação, mas sim sobre a escolha somente por este tipo de comunicação e de ferramentas que só nos levam à marginalidade da vida e às margens da nossa própria história. FIKDIC

A fragmentação de raciocínio provocada pela falta de construção de narrativas nos torna ineficientes e morosos. Somos cobrados pelo resultado, mas não queremos mais construí-lo. Somos cobrados pela performance, mas não valorizamos o tempo que se leva para alcançá-la. A nossa intolerância, impaciência e incompreensão nascem da desvalorização das narrativas. Do empobrecimento do nosso discurso. Não queremos mais saber a natureza do problema. Por isso, muitos deles não são resolvidos. Queremos respostas para perguntas que não aprendemos a fazer. E se aprendemos em algum momento, estamos desaprendendo. Por isto, nossas narrativas adoeceram.

Construir narrativas dá trabalho. Fazer amigos dá trabalho. Aprofundar relacionamentos dá trabalho. Conhecer-se dá trabalho. Aprimorar-se dá trabalho.

Ser é da dimensão da narrativa. Estar é da dimensão do rascunho e do esboço. Se quisermos passar por esta vida numa pintura real será necessário escrever a nossa narrativa. E escrevê-la dá trabalho.

As nossas fragmentações não nos permitem irmos além. E fragmentados, ficamos no raso, nas conversas vazias, na incompletude, na intolerância, nos começos, nos retalhos e nas sobras. As nossas fragmentações interferem no nosso poder de escolha. Elas nos interrompem a todo o momento exatamente para não nos fazerem pensar.

Elas nos encaminham para uma solidão coletiva, aonde todos caminham em direções opostas. E nem sabem para onde vão. Somos seduzidos pelo fácil, pelo rápido, pelo descanso injusto. Somos facilmente levados pelas curtidas de pessoas que mal leram as primeiras linhas dos nossos textos. Ou se leram, fizeram uma leitura dinâmica e foram nos pontos principais. Os que leem e dedicam tempo à construção e reflexão, independentemente da plataforma utilizada, entenderam o valor e a importância de uma narrativa. O tempo é o que fazemos dele e o que nele construímos, dizia o poeta.

O excesso de curtidas pode esvaziar o sentido. A quantidade não é indicador de qualidade. Nem sempre a melhor música será a mais ouvida. Nem sempre o melhor filme será o premiado. Nem sempre o melhor texto será o lido.

A qualidade requer tempo para ser apreciada e construída. E o tempo é um ingrediente básico das narrativas de qualidade. No contraponto, a quantidade não demanda tempo. Ela é imediata e rápida. E o imediatismo e a rapidez estão diretamente associados à comercialização, à fragmentação e ao supérfluo.

Falamos muito em desconstrução: desconstrução de modelos, de ideias, de conceitos. Mas, mais difícil que desconstruir, é construir. E as narrativas passam pela construção. Não há outro caminho. O início, o desenvolvimento e a conclusão são etapas fundamentais e essenciais para o viver. Não caminhar por estas etapas e não viver o que elas podem nos proporcionar é abrir mão da vida. É delegar o indelegável. É estar à margem de uma vida que poderia ser vivida.

Início, desenvolvimento e conclusão representam a nossa história, mas a verdadeira, e não a contada em poucos caracteres. A nossa história contada e criada por meio da nossa narrativa. Uma narrativa criada sem pressa porque os detalhes farão a diferença. Detalhes desprezados por escolhas que nós mesmos fizemos. Ainda há tempo para os detalhes, para reconstruí-los e fazermos de nossas narrativas, narrativas felizes e saudáveis.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Mário Quintana, poeta brasileiro de todos os tempos, que diz:

“Não faças da tua vida um rascunho. Poderás não ter tempo de passá-la a limpo. ”

Que saibamos construir a nossa narrativa em papéis verdadeiros, em telas reais e sem pressa de passarmos por todas as linhas da nossa história. Que saibamos iniciar, desenvolver e concluir nossa narrativa de vida com dignidade e com orgulho e, acima de tudo, com disposição para não pularmos linhas e nem buscarmos atalhos desmedidos. Pois se assim o fizermos, nossa narrativa terá adoecido, e não será mais possível ouvi-la como o som da nossa própria história: a história da nossa vida.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O anonimato nominal

Vivemos de contradições, assim como o título deste texto. Elas nos situam, completam, explicam, condicionam, revelam, escondem. Situam-nos na nossa realidade, completam os nossos vazios e dúvidas, explicam o nosso agir, condicionam o nosso pensar, revelam aquilo que tentamos esconder e escondem aquilo que todos sabem.

Anônimos somos todos. Mas temos um nome, um rosto, uma identidade. Somos nomináveis, mas estamos no anonimato. Somos conhecidos, sabem o nosso nome e a nossa história, mas quem somos para nós mesmos?

Anônimo é o que não possui nome, literalmente, ou aquele cuja existência é inexpressiva e sem significados? Aquele que, por pequenez, se esconde na ausência?

Os covardes se comprazem no anonimato por desconhecerem o escrúpulo. Os fortes não compartilham do anonimato por conhecerem o caráter.  Covardes e fortes: mesma moeda para uma representação de todos nós, sem exceções.

Aquele que passa, qual história possui? Aquele que busca ajuda, o que ele quer contar?

Aquele que caminha, para onde vai? Aquele que chega, teria encontrado o que foi buscar?

Aquele que passa, caminha, leva a história para outro lugar. Quer contar, a quem interessar, que chegou e que encontrou o que foi buscar.

Saber a história, o nome e aonde o outro quer chegar não significam conhecê-lo. Significa, apenas, ter informações sobre. Apenas isto. Conhecê-lo significa participar da história dele, saber o que o nome dele representa para ele e, acima de tudo, ajudar o outro a chegar a este lugar que ele quer chegar. Sem perguntas, sem críticas, sem interferências.

Lá vai o anônimo pela estrada. Passa por todos, mas ninguém o vê. Ele passa. Mas ninguém o vê. O anônimo com nome, rosto, história, mas sem uma pessoa disposta a saber o nome dele, conhecer o rosto dele e, muito menos, saber a história deste anônimo que, no fundo, somos nós. Somos o anônimo que passa com muitas histórias iguais às do outro que também passa, e que é anônimo como a gente.

Quando entendermos que a história do outro ajuda a contar a nossa e que a história dele é sequência da nossa, o anonimato começará a perder voz e espaço. Buscar entender e conhecer todas as histórias e participar de todas seria impossível. O anonimato não se anulará por meio disto, mas sim por procurarmos na história do outro, o reflexo da nossa.

Quando a história do outro refletir as nossas atitudes e nos colocar diante um espelho, o anonimato deixará de ser um vantajoso negócio.

Não existe anonimato no sentido literal, mas no sentido proposital. Qual é o propósito da nossa escolha pelo anonimato? Todo anonimato é nominal. Somos todos nomináveis. Podemos ser desconhecidos, mas nunca anônimos. Mesmo na ausência da nossa assinatura, a atitude de não assinar nos torna nomináveis e reconhecíveis.

A ausência de assinatura é uma assinatura.

A ausência do nome é nominar algo. Esconder-se é mostrar-se. A contradição da vida é esta completa ausência de sentido, de lógica e de linearidade.

Aquele que passa ao nosso lado, quais dores carrega? Aquele que fala ao telefone, com quem fala e sobre o que fala? Aquele que passa e não vê, aonde ele está? Aquele que caminha com pressa, para onde iria se não tivesse tanta pressa?

No anonimato estamos protegidos de nos enfrentar. Não precisamos dar satisfações e nem enfrentarmos a discordância do outro. O anonimato nos defende de irmos além de nós mesmos. Ele mais mostra que esconde e mais revela aquilo que achamos que escondemos.

O anonimato está no se ausentar do outro e de tudo o que ele representa. Significa estar ao lado dele, mas não querer saber o que ele faz ali. O anonimato existe para aquele que acredita na ferramenta da exclusão como forma de cercear a vida. Para aquele que acredita que tem opções, menos o outro. O anonimato existe para aquele que não quer ouvir a história do outro porque não quer gastar tempo para ajudá-lo. Para aquele que quer passar despercebido porque acredita que todos pedirão a sua ajuda, mas ele não está disposto. E assim, não percebe que é ele quem mais precisa de ajuda.

O anonimato não existe. Somos todos nomináveis. Nossos rostos e identidades revelam nossos caminhos percorridos e nossas escolhas. O anonimato cria uma máscara e, desta forma, não reconhece a presença do outro que busca ajuda para que a história dele não morra.

Assumir o nosso nome, o nosso rosto, a nossa identidade e sair do nosso pseudoanonimato é reconhecermos traços do outro em nós, é estendermos a nossa mão sem medidas, sem fita métrica e sem hipocrisias. É permitir que o outro escolha o caminho dele no meio de tantas determinações feitas a ele por nós mesmos e por uma sociedade feita de gente, que no fundo somos nós, crentes do anonimato.

Sairmos desta ilusão não significa sairmos nas ruas e querermos saber tudo e de todos. Apenas significa emprestarmos, de vez em quando, os nossos ouvidos, silenciarmos a nossa voz, amenizarmos o nosso olhar de repúdio frente àquele que cheira mal. É sairmos desta ilusão da objetividade e acharmos que a assertividade resolverá todos os nossos problemas. Isto seria empobrecer demais a nossa capacidade do debate e do nosso repertório cultural.

É preciso reconhecermos nossas ausências, nossas transparências, nossos intervalos e nossos bastidores. Investigarmos as nossas questões é fundamental caso não queiramos avançar em nosso retrocesso progressivo. A construção é lenta, mas em algum momento ela foi iniciada. Não podemos desmerecê-la.

Reconhecermos a presença do outro nos levará à valorização dos valores reais, e não à desvalorização, infelizmente, do que foi arduamente construído por nós e por todos os que já, algum dia, estiveram aqui.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Fernando Pessoa, um dos poetas mais influentes do mundo, que diz:

“Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim, em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive. ”

Para que sejamos inteiros e todos, sem exageros, assumirmos o nosso nome e a nossa postura diante à vida será fundamental. Acreditarmos no anonimato seria como entregarmos um desenho inacabado por pura descrença e preguiça de concluí-lo. E pior: acharmos que o desenho seria este mesmo, sem acreditarmos em outras formas de construção. Deixarmos o anonimato envergonhado é como se acreditássemos em todas as possibilidades que a vida, sabiamente, nos oferece para que o avançar seja a nossa única opção.

Caso o anonimato realmente exista, que ele sirva apenas para esconder, ainda que por breve período, nossas boas ações que estejam contribuindo para que o outro saia do anonimato e da marginalidade.

Fernando Pessoa escreveu este poema nos anos 30. Mas a atualidade dele é inquestionável.

Que sejamos inteiros no mínimo que fazemos. Isto significa assumirmos as nossas assinaturas, sairmos do anonimato e ajudarmos a criar condições para que a nossa história e a do outro estejam no mesmo patamar de importância. Somente desta forma brilharemos de forma a não ofuscarmos aquele que vai no mesmo caminho que cada um de nós.

domingo, 13 de agosto de 2017

A luz que afronta

Jogos Olímpicos de Atenas, 2004: Vanderlei Cordeiro de Lima, liderando a prova de atletismo, foi, covardemente, interrompido e atrapalhado por um homem chamado Neil Horan. Esse suposto padre, famoso por ter realizado atrocidades similares em outras competições, foi condenado a um ano de prisão, posteriormente convertido em pagamento de fiança, além das retaliações sofridas pelas pessoas que assistiam ao espetáculo. Também foi destituído das funções religiosas que exercia na igreja na qual atuava, pelos responsáveis, sob a alegação de ele sofrer de problemas psiquiátricos. Foram estas as punições dele, nada mais. Será?

Para o atleta, que mantinha uma boa vantagem em relação ao segundo colocado, a medalha de ouro seria a trajetória natural e justa. Mas não foi o que ocorreu. A interrupção prejudicou a performance de Vanderlei, que, perdendo posição frente aos seus adversários próximos, não conseguiu manter o ritmo. Além da dor física que ele sentiu ao ser interrompido durante a corrida que fazia. Mesmo tendo sido a vítima desta situação, os Organizadores responsáveis não cancelaram a prova. Vanderlei foi prejudicado injustamente. Perdeu o primeiro lugar e a medalha de ouro. Nada mais. Será?

imagem tirada da internet

Na primeira imagem, a dor física sofrida por Vanderlei ao ser bruscamente interrompido pelo padre irlandês, além da dor emocional por não acreditar no que estava acontecendo.

Na segunda imagem, um homem, anônimo, de bermuda e de camiseta, rompe a faixa azul de segurança, com a única e exclusiva missão de ajudar a recolocar Vanderlei nas pistas, de volta ao lugar de onde ele nunca deveria ter sido tirado. “Vai, vai”, o homem dizia para Vanderlei.

Um homem trazendo uma luz que afronta àquele que vive na escuridão. O primeiro quis e conseguiu atrapalhar. O segundo quis e conseguiu ajudar.

E na terceira imagem, o padre irlandês sendo rechaçado pela multidão e, logo adiante, preso.

Este triste padre, cuja existência deve ser uma ausência de relevâncias, não teve como punição, apenas, uma prisão, um rechaçar da sociedade, uma expulsão da ordem religiosa e gritos de um povo revoltado. Este triste padre teve, como uma das piores punições que um ser humano pode ter na vida, a convivência íntima com a inveja: um sentimento que corrói devagar aquele que sente e que o faz assistir, de um local privilegiado, o sucesso e o avançar do outro. Este triste padre não queria, apenas, chamar a atenção. Muito além disto: ele queria destruir o avançar do outro, o sucesso daquele que ia lá na frente, a certeza do outro e a alegria estampada no rosto daquele que, diferente dele, descobriu a sua missão e caminhava na direção dela. E deste lugar privilegiado, o invejoso, corroído de não poder conviver com a luz do outro que o afronta, o impede de prosseguir. E muitas vezes consegue, como foi o caso. Mas será um conseguir insustentável, porque sempre terá um Polyvios Kossivas para recolocar na pista aquele que for merecedor.

Para Vanderlei, a grandiosidade do gesto dele em seguir na pista, levantar a cabeça e reunir forças que somente ele sabe de onde foram tiradas, nos faz repensar o primeiro lugar na vida e a medalha de ouro. Naquele momento, como ele mesmo disse em entrevista, “era preciso pensar e agir rapidamente para mudar a estratégia: não seria mais possível o primeiro lugar, mas chegar seria o objetivo. Eu queria uma medalha olímpica. Não importava a cor.” E ele chegou. Em terceiro lugar, com sua medalha de bronze no pescoço que, certamente, tinha o mesmo valor e o mesmo peso de uma de ouro. Com esta atitude, o atleta já era medalha de ouro na atitude e na conduta.

Jamais nos esqueceremos desta injustiça. Ao mesmo tempo, nunca nos esqueceremos da atitude do atleta: a de continuar com a luz dele acesa, mesmo que estivesse ofuscando aquele que não podia com ela. A atitude de Vanderlei fez a medalha de ouro e o primeiro lugar ficarem em segundo plano.

O invejoso se incomoda com a luz do outro, mesmo que a luz do outro ajude a iluminar o próprio caminho. Por que aquele padre interrompeu Vanderlei e não outro atleta? Porque era o Vanderlei quem estava na frente. Simples assim. O invejoso se completa quando vê o outro escorregar e cair. Por quê? Porque o chão é um lugar no qual ele vive confortavelmente. Aquele que padece da inveja é doente, triste e vive à sombra da vida. Não se conforma com a felicidade do outro porque a desconhece. Não gosta da luz do outro porque fere a visão dele. Como é doente, prefere investir esforços na queda da luz do que na soberania dela.

É muito comum sermos atacados quando estamos no caminho correto, no caminho da luz. Quando estamos sofrendo muitas perseguições e ataques é porque estamos, na maior parte das vezes, no caminho certo. Por isso incomodamos o outro ou nos incomodamos com o outro. Parece contraditório, mas é real. Caso assim não fosse, o invejoso não seria seletivo em seus ataques. Mas é: ataca apenas aquele que mostrou que sabe e conhece o caminho. Os problemas e, principalmente, as críticas e as inferências são tentativas de os invejosos nos tirarem dele. E quando nos damos conta, desistimos e ficamos pelo caminho.

Nem toda crítica, problema e inferência é fruto do invejoso. Sabemos disto também. Caso assim fosse, colocaríamos tudo na conta dele e ficaria tudo mais fácil. Mas o fato é que sabemos diferenciar. Sabemos quando estamos acertando e quando não estamos. Sabemos a hora de seguir e a hora de parar. E este nosso discernimento fará toda a diferença no momento de reconhecer o invejoso que surge em nosso caminho, que busca desviar a nossa rota, também do invejoso que há em nós, aquele que alimentamos por meio de nossas tentativas de desviar o caminho do próximo, ou simplesmente de compreendermos que estamos no caminho errado, mesmo. Que é preciso reorganizarmos a rota traçada.

Quanto mais alto subimos, menos quantidade de oxigênio temos. Ou seja, a medida que escalamos mais alto, as dificuldades aumentam e os invejosos acentuam as suas garras e as suas estratégias. Mas somente poucos enxergarão a vista lá de cima. E este é o sentido da vida: escalar montanhas para se ter uma visão privilegiada: uma visão privilegiada de nós mesmos. Daquele que teve a coragem de escalar esta mesma montanha que, a todo o momento, os invejosos tentaram colocar pedras e rebaixar o valor desta escalada.

E quantas montanhas também impedimos que o outro escalasse? Ou quantas invadidas de pistas fizemos contra àqueles que corriam a nossa frente? Fica uma lição para pensarmos.

É preciso coragem, foco e determinação para buscar o bronze, caso a vida ou qualquer padre irlandês do caminho tenha, momentaneamente, atrasado a nossa busca pelo ouro e pelo primeiro lugar. Não um primeiro lugar da vaidade, do luxo e do despropósito. Mas um primeiro lugar para vencer a nós mesmos.

Aceitar os bronzes que a vida nos dá nos trará ouros adiante. Podemos acreditar nisto. Aceitar os nossos bronzes é silenciar os invejosos que, invalidados na estratégia de nos desestabilizar, nada poderão nos causar.

Seguir e não parar é o pior que podemos fazer contra os invejosos. A inércia é a principal parceira deles. E os que fazem, interrompem a escolha que eles fizeram pelo retrocesso.

Os invejosos não possuem outra arma que não o ataque à luz. São pobres do caminho, à espreita da nossa queda. À espera da nossa derrota. Mas se o bronze também fizer sentido para nós, a nossa luz continuará ofuscando aquele que sofre ao vê-la.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Oscar Wilde, poeta irlandês, que diz:

“O número dos que nos inveja confirma as nossas capacidades. ”

Vanderlei Cordeiro de Lima foi vítima de um doente mental, mas antes disto: de um invejoso. Que bom que ele não desistiu. A inveja daquele homem somente serviu para confirmar a capacidade do atleta, como disse Oscar Wilde.

Que a desistência não faça parte da nossa trajetória. Apenas se ela servir como traçado para novos caminhos escolhidos por nós. Foi muito trabalhoso chegar até aqui. Não podemos desistir. A nossa desistência é o alimento tão esperado dos invejosos que nos espreitam. A subida é difícil, e exige demais de nossas pernas. E é aí, nesta difícil subida, que o invejoso afia a arma para nos atacar. Reconhecendo-o, continuaremos a nossa subida, como fez Vanderlei. Mas isto é para poucos. Apenas para aqueles que decidiram calar os invejosos e, acima de tudo, valorizar os bronzes do caminho. Que a gente, portanto, faça parte desta minoria.

Que a nossa decisão de continuar seja a nossa grande arma contra aqueles que torcem para que fiquemos no raso, no superficial, no começo da rampa.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Inversões necessárias

Frases soltas que muito dizem. Palavras isoladas, mas não no contexto. Falas longas, vazias e sem sentido, que muito espaço ocupam. O cansaço vem da valorização do vazio. A animação e o dinamismo surgem do valor e do sentido.

A economia inteligente que poupa o falar quando ele não se faz mais necessário. O desgaste se dá no excesso e na ausência. O equilíbrio é luxo.

Não se trata de brigar com quem pensa diferente da gente, mas sim de entender o motivo que o fez começar a lutar. Não se trata de punir os corruptos, mas de chegar antes deles. Por que não estávamos lá para termos fechado a porta?

Deixamos muitas portas indevidas abertas, e depois reclamamos que a visita demora a se retirar. O incômodo que se instalou com a nossa permissividade e com a nossa conivência. As coisas estão invertidas porque não cuidamos, não concedemos tempo para isto.

Os contrários também dizem. E é preciso ouvi-los. As inversões que não queremos perceber. Fomos ensinados a olhar o externo, e não o interno. E as inversões estão no interno, sob os tapetes que pisamos cujo tecido nem percebemos. É preciso dar conta dos nossos inversos, dos nossos avessos, dos nossos contrários. O tapete está bem alto, já. O que eles dizem incomoda, mas acomoda muitas coisas que estavam fora dos lugares.

A ordem doente cria a desordem. A desordem da vida e do viver retomam a ordem.

A parada obrigatória para apreciarmos a nossa estada aqui. Parar é uma condição para reequilibrar o nosso inapropriado agir.

Transformamos o incômodo em transtorno. Somos eficientes em fazer do saudável algo insalubre. Assim fica mais fácil remediar. Somos um dos fãs do Rivotril. Está certo isto? Por que não questionamos? Por que aceitamos este sequestro do nosso pensar? Por que o remédio tem mais espaço do que o alimento? Por que nos achamos sem saída? Por que ser um questionador, um perguntador e ter uma inquietude genuína é estar sujeito a ser diagnosticado com algum transtorno? Por que ser quieto é ser doente? Por que ser introvertido é dúvida para um possível problema? Por que medicamos os nossos sentimentos e as nossas angústias? Por que a tristeza, as angústias e o medo têm sido marginalizados? Por que tê-los nos faz menores?

A grandeza de um Homem está na sua capacidade e coragem de sentir e de expressar os seus sentimentos. Este deveria ser o nosso verdadeiro tamanho.

O remédio é fundamental quando o principal tiver sido proposto. Até lá, há vários passos e todos precisam ser dados. Não há atalhos. E se houver, foram criados por manipuladores.

Não se trata de resolver coisas previsíveis, mas de saber os motivos de não termos chegado antes. Não se trata de ensinar a ler e a escrever o idoso, mas de saber o motivo de ele não ter feito isto há mais tempo.

Vivemos uma era fragmentada de inteirezas sem sentido. Nossas vozes internas querem falar, mas ouvimos apenas as externas que pouco ou nada dizem. Mas ocupam espaços e preenchem vazios que ajudamos a construir. O barulho delas nos dá a sensação de estarmos fazendo muito. Mas o fato é que temos muitas informações e pouco conhecimento.

O problema do outro também deveria ser o nosso. Apreciamos a mão que se estende a nós, mas o nosso braço tem dificuldades de alcançar o próximo. “Estou sem tempo, agora”.

Sem generalizações, é preciso dizer que a nossa solidariedade é seletiva. Ajudamos o outro quando algo de nossos excessos sobra, ou quando temos pena. Mas não porque ele poderia ser a gente, literalmente. Não porque enxergamos potencial naquele marginalizado. Não porque a ajuda, sem interesses, está em nós. O fato de o outro estar numa condição precária alivia o nosso medo de estarmos lá. Como não estamos, a dor dele nos alivia e aí, livre deste medo, o ajudamos. Mas ainda é preciso limpar bem o caminho para avançarmos.

Enxergamos o problema do outro, muitas vezes, apenas quando ele nos serve de escada para atingirmos nossos questionáveis objetivos. E satisfeitos em nossas bases de areia, ainda somos vistos como aquele que faz o bem. Dar satisfações para uma sociedade que, de verdade, nem sabe quem somos, é relevante para muitos.

A irrelevância que sustenta vazios. O que verdadeiramente importa muitas vezes nem é percebido por nós. Aquele que já percebeu e faz de suas inversões um avanço, o problema do outro também é o seu. Este é solidário de verdade. E o mais importante: poucos sabem disto.

O silêncio e o anonimato são as armas preferidas dos que fazem o que precisa, dos que enxergam os próprios avessos, dos que constroem relevâncias por meio das próprias mãos e se recusam a assinar as obras. A assinatura deles não necessita ser vista.

Não se trata de valorizar a quantidade de likes, mas de se ter a certeza de ter feito um bom trabalho. Os likes são importantes, mas não deveriam ser determinantes.

O líder que se nomeia Líder, mas que não é reconhecido pela equipe.

Não se trata de tornar-se Líder de uma equipe, em dois anos, porque participou de um processo de Trainee de uma Empresa. Um Líder, em primeiro lugar, não é formado, mas sim reconhecido. E o desenvolvimento da própria formação se dá durante toda a vida e não num período de dois anos. Dois anos são suficientes, somente, para ratificar a nossa arrogância de achar que sabemos. Acreditar que dois anos seja o suficiente para alguém se tornar líder é, no mínimo, debochar da vida. Enquanto isto, as Empresas fingem que formam e os colaboradores fingem que acreditam.

Acreditar em caminhos fáceis e tendenciosos é ser parceiro da mediocridade.

O pai que chama a atenção do filho, mas que não dá atenção ao filho.

O tempo que nos falta para a leitura, mas que damos às redes sociais. O tempo dedicado a elas seria o suficiente para lermos bons livros que, inclusive, nos fariam entender o motivo de tamanha subserviência e servidão.

Bajulamos as novas gerações porque são arrojadas, destemidas, desbravadoras e dominam a tecnologia como ninguém. Será?! Quem é mais desbravador: aquele que constrói o caminho ou aquele que apenas o percorre? Quem é mais arrojado: aquele que usa, como ninguém, a tecnologia ou aquele que a criou? Quem é mais destemido: aquele que vai para as ruas pedir a prisão dos corruptos ou aquele que, de verdade, enfrentou os militares nas ruas e, literalmente, deu a vida por um País mais justo? Gritar a palavra “bandido”, na Paulista, como muito de nós fizemos é fácil quando se sabe que não se pode ser preso por isso. Mas enfrentar o Exército, de peito aberto, sofrer e dizer o que se pensa, como os verdadeiros arrojados fizeram, será que faríamos?

Se saber usar a tecnologia como ninguém, principalmente pelos mais jovens, tem sido motivo de vaidade para nós, no que nos tornaríamos se tivéssemos criado a tecnologia, então? Se somente saber usá-la (o que, de verdade, não fazemos mais do que a nossa obrigação) tem sido motivo de tanto barulho, o que seríamos se tivéssemos contribuído para a construção desta revolução? Portanto, quem é mesmo o revolucionário: aquele que cria ou aquele que somente usa? E aquele que criou certamente não faz parte das novas gerações...

Ser destemido numa sociedade que te cobra isto é fácil. Hoje somos convidados a expor a nossa opinião o tempo todo. Temos espaços para falar. Podemos protestar e hastear as nossas bandeiras diversas. Mas o verdadeiro desbravador é aquele que hasteia a sua bandeira quando é obrigado a recolhê-la. O verdadeiro destemido é aquele que enfrenta o preconceito sozinho, muitas vezes sem apoio. O verdadeiro arrojado é aquele que cria algo do nada, aquele que arrisca em condições completamente adversas.

Deveríamos nos envergonhar de achar que somos o que não somos. Por isso temos tantas dificuldades de olhar para os nossos avessos e contrários que, muito falam, mas que não são ouvidos. Somos importantes para o mundo, sim. Fazemos e fizemos boas coisas, sim. Mas é preciso nivelar a nossa régua e acomodar as nossas inquietações. Estamos muito arrogantes por conquistas que não conquistamos. Falamos três línguas e temos Pós no exterior, mas não sabemos lidar com as nossas frustrações.

Se o machismo tem sido posto em xeque, o mérito não é só nosso. Estamos dando sequência em assuntos iniciados. Iniciar um trabalho é muito mais crítico que sequenciá-lo. Caminhar por caminhos já pisados facilita mais da metade do caminho. É preciso, portanto, valorizar e reconhecer os verdadeiros. E não os que pegam caronas e que adoram colocar as suas assinaturas em obras cuja participação tem sido mínima, frente ao que foi iniciado e concluído pelos verdadeiros desbravadores.

Reconhecer a nossa participação e valorizar o nosso esforço é importante e merecedor. Mas daí a reivindicarmos os méritos e louros é, no mínimo, atestar a nossa pequenez.

Quem são os Heróis de hoje? Quem são os desbravadores de hoje? Quem são os destemidos de hoje? Importante antes de dizer, darmos uma passadinha na História...

Aquele que cria, que corre o risco, que enfrenta: este é o desbravador. O que usa tem o dever de levar adiante a obra, e não requerer elogios falaciosos.

Não podemos ser dignos de méritos que não merecemos. A dignidade se inicia no reconhecimento de quem sou e se desenvolve no espaço que me cabe, e não no espaço que invado por vaidade e despropósito.

Há um pensamento que diz: “pegue a sua caneta, a sua autonomia e o seu poder e assine coisas para o coletivo, e não apenas para si. ”

Não sei quem disse isto, mas traz reflexões. Acredito que seja isto o que nos falta: assinar coisas para o coletivo, como fizeram muitos dos que estiveram aqui, e não apenas para si. Atualmente há muitos também que assinam coisas para o coletivo, mas poderíamos ser um grupo de mais se não fosse a nossa teimosia num individualismo que não deu certo, num palco que só tem espaço para quem nos interessa e numa ajuda coletiva que ofertamos a quem nos dá algo em troca. Novamente, sem generalizações. Mas que é uma realidade, infelizmente, é.