sábado, 12 de outubro de 2019

Andar com fé

Hoje, para quem é católico, comemora-se o dia da Padroeira do Brasil: Nossa Senhora de Aparecida. Um dia de procissões, de missas, de encontros, de pagamentos de promessas, de romarias, de cantos. Um dia. Mas, e os outros dias? E nos outros dias?

Uma senhora, pela televisão, chora ao dar um depoimento sobre a cura recebida por intermédio de Nossa Senhora. Lindo e emocionante. Um depoimento de fé. Não de uma religião. Fiquei observando a matéria que a televisão transmitia e inúmeros eram os depoimentos, de diversas naturezas. Pessoas caminhando quilômetros a pé, longas distâncias, em direção ao interior de São Paulo, onde está o Santuário de Nossa Senhora.

Pessoas a caminho do Santuário ou não. Pessoas andando, ajoelhadas ou não. O ritual não importa. Não é sobre o andar, literal, que falavam aquelas pessoas, mas sobre fé, muito além de religião. Um andar moral, um caminhar dentro de si próprio.

Independentemente da religião de cada um de nós, se é que a temos, todos os cultos, rituais, abordagens, mensagens, práticas de todas as religiões devem ser respeitados. Frequentamos lugares e participamos de grupos cujos caminhos nos chamam. E é preciso respeito nisto. Somos de uma determinada religião porque assim nos sentimos bem. Encontramos, de certa forma, as respostas que buscamos para as nossas aflições. Um conforto. E isso não pode ser posto em discussão. Cada religião demonstra uma rota. Algumas delas se esbarram umas nas outras, outras se complementam, algumas se contradizem, outras se confrontam, incluem, excluem. E cabe a cada um de nós, caso assim faça sentido, nos integrarmos a elas, ou não.

Mas não é sobre religião que quero falar, porque falar sobre religião é como se eu inferisse sobre a crença do outro. E isto seria desrespeitoso. Mas sobre fé, que é algo bem diferente.

Religiões nos religam, nos conectam. Fé nos movimenta. Religiões são estáticas. Fé é dinâmica. Religiões possuem lindos e emocionantes rituais. Fé os traduz. Religiões nos pedem para ajoelharmos durante a fala do padre. Fé nos ensina que ajoelharmos será eterno exercício de humildade. Religiões dizem. Fé faz. Religiões leem textos sagrados. Fé nos convida a vivê-los. Religião é conforto e resposta. Fé é a mão estendida dizendo: “pode vir, estou com você”.

Religião é algo externo, cuja escolha, feita por nós, vai ao encontro do que buscamos, seja no culto, na missa, na vigília, ou em outra prática. Fé nos move para além do horário da missa e da palestra do orador, no culto. Fé nos move além do ajoelhar-se, porque assim o padre mandou. Fé nos conduz além do sinal da cruz metódico e automático, enquanto comentamos a roupa da pessoa sentada a nossa frente, durante a vigília. Leva-nos além da fila que pegamos para comungarmos, enquanto nos incomodamos com aquele senhor que furou a mesma fila. Religião sugere rituais para possíveis domesticações. Fé sugere reflexão sobre estes rituais e, se assim fizerem sentido para nós, os praticarmos. Belos e importantes rituais somente serão dignos se assim fizerem sentido para nós, se assim trouxerem valor para as nossas vidas. E isto exige reflexão, crescimento de nossa parte para que tenhamos tamanho para alcançarmos o real significado das coisas.

Presenciei, uma vez, uma pessoa fazendo o sinal da cruz com uma mão e com a outra olhava mensagens, no celular. O sinal da cruz, um lindo ritual, qual valor teve naquele momento? Esta é a reflexão. Se fazer o sinal da cruz é valoroso para nós, que a gente faça o sinal da cruz, mas verdadeiramente e ciente sobre o que aquele símbolo representa. Isto é fé. Em outro momento, sentada num banco de uma igreja, uma senhora chorava. Muito. Como não percebeu a minha presença, começou a conversar com Deus, em voz alta. E pude ouvir a oração: “Senhor, que eu veja por meio dos seus olhos, e não por meio dos meus.” Sem se ajoelhar, sem fazer o sinal da cruz, sem beijar todos os santos, a mulher se levantou e saiu. Aquilo é fé. Mas, se mesmo assim, ela tivesse feito todos os rituais, ainda assim seria um ato de fé. Uma pessoa que estava ali, sabia o que fazia e com quem falava.

Religião e Fé: é possível ter fé sem religião? É possível ter religião sem fé? Duas faces da mesma moeda. Enquanto a religião teoriza a beleza e o encantamento do ritual, a fé nos ajuda a praticá-lo. Se assim conseguimos, penso ser isso o que chamamos equilíbrio e paz. Cada um trilha a busca pela própria paz, e este é um dos possíveis caminhos, acredito.

As religiões falam sobre a fé, mas somente nós poderemos exercê-la. Falam sobre possíveis caminhos para aliviar a nossa dor, mas somente nós poderemos arregaçar as mangas para encontrá-los. Elas comentam a palavra, mas somente nós podemos compreendê-la. Falam sobre o exercício da cidadania e do amor ao próximo. Mas somente a nós cabe saber o que, de verdade, isto significa. Falar sobre caridade, dentro de paredes de pedras, é simplificar demais a vida. Uma simplicidade que envergonha. Exercê-la após o término da missa é o aceno que a vida nos faz. Sermos cidadãos enquanto lemos o folheto, durante a missa, é humilhante. A cidadania começa quando conseguimos, de verdade, compreender o real sentido da hóstia e da comunhão, que, a propósito, acabamos de realizar, na missa.

Fomos à missa. Nossa missão está cumprida. Somos religiosos. Seguimos a roupagem que nos mandam vestir. Mas e as perguntas que a Fé nos fez?  Fé nos oferece um incômodo permanente de nos incomodar.

Aquela senhora da reportagem trouxe uma linda reflexão. Antes de ser uma religiosa, era uma pessoa de fé, que independe de religião. Aquela mulher possui uma relação com a fé, com Nossa Senhora. Fé, do latim fides, significa fidelidade a um modelo, um trabalhar, acima de tudo. Aquela mulher construiu uma fé, e isto requer trabalho. Muito trabalho. Ser uma pessoa de fé significa ir além dos rituais, que passam a ter significado real para as próprias vidas destas pessoas. Pessoas de fé constroem caminhos, trabalham, acreditam, agem. Como na linda letra e música de Gilberto Gil...

Andar com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andar com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá

Andar com fé, ou seja, para que haja fé, é preciso andar, caminhar. Não há milagres com braços parados por trabalhar. A fé precisa ser construída, não basta ajoelhar mecanicamente. É preciso ajoelhar verdadeiramente.

O sino soou. São dezesseis horas. A missa vai começar. Vamos? O que faremos depois? Que os rituais saiam do papel e ganhem vidas em nossas vidas. Eles nos pedem isto há tempos.

A letra da música de Gilberto Gil, Andar com Fé, composta em 1982, é atemporal e provocativa. A fé, realmente, não costuma faiá. Mas por que ele nos disse isso? Alguém está falhando, então? Sutilezas que somente a arte explica.

Quando criança, nas aulas de catecismo, fui reprovada em uma prova oral por não saber de cor, a oração da Salve-Rainha. O que faz alguém achar que uma criança de menos de 09 anos de idade devesse sabê-la? E de cor? Nem hoje, pessoa madura, sei esta oração de cor. Mas será preciso isto para se ter fé? “Volte para o seu lugar e estude direito”, foi o que eu ouvi. Voltei e estudei direito. Decorei a oração. Voltei a recitá-la. Agora completa. Fui aprovada. E no dia seguinte, já não me lembrava mais da oração. Tudo certo. O ritual foi seguido. Mas o que diz a Salve-Rainha, mesmo? O que esta oração significa? Hoje, adulta, sei. Sei porque fui buscar o sentido para aplicá-lo à minha vida. Não porque aprendi o sentido nas aulas de catecismo. A oração é linda, ainda bem que não guardei rancor da professora. Pobre coitada! Ainda se dizia cristã! Como somos inocentes no nosso mar de ignorância.

Ainda no catecismo, depois de decorar a Salve-Rainha, o padre entrou na nossa sala e nos disse que aprenderíamos a comungar. Mas antes, deveríamos nos confessar. “Confessar o quê?”, disse uma criança ao padre. (E depois dizem que as crianças de hoje é que são espertas). “Os seus pecados. Todos somos pecadores”, disse o padre. Pobre cristão aquele padre, também. Um homem comum, além do comum. Mas ele não sabia disto. Achava que podia falar em nome de um suposto Deus. Tão dentro de uma religião e, ao mesmo tempo, tão ausente do verdadeiro sentido.

Como aos nove anos de idade não se sabe muito a respeito de pecados, menti ao padre, na hora da minha confissão. Disse que havia brigado com a minha irmã. Menti apenas para cumprir uma ordem, um ritual. O padre, sem saber, me ensinou a dissimular, infelizmente. Ele acreditou em mim e me disse que nunca se briga com irmãos. Ao invés de me dizer o motivo de nunca se brigar com irmãos, desperdiçou a chance e me pediu para ir para o banco da igreja rezar 10 pais-nossos e 10 ave-marias. Foi o que eu fiz, de forma mecânica e culpada. Lembro-me de pensar: “o que significa Ave de Ave-Maria?”. Somente bem mais tarde fui saber que Ave significa “Salve”! Salve, aquele pobre padre. Quem precisaria se confessar, ali?

Sem ressentimentos. Fiz as pazes logo em seguida. Compreender certas coisas, na vida, e não criar embates traz imensos avanços. A religião e a igreja são representações das crenças do homem. É preciso, portanto, que a gente faça bom uso de toda esta beleza de conhecimento que nos é oferecida, sem ostentações, sem obrigações, sem vaidades, sem ditaduras.

Aprofundarmo-nos nas questões íntimas que vão em nós: se a religião, qualquer que seja ela, conseguir nos ajudar nisto, terá feito o principal papel que cabe a ela. Com ou sem rituais. A questão não é a religião, necessária, e nem os rituais, que são lindos e extremamente significativos, mas como os executamos, para quê e o porquê. De posse destas respostas, tudo volta ao equilíbrio. Nada há demais em se confessar, em comungar, em seguir rituais, desde que haja sentido e valor para quem os faz. Simples assim. Mais que simples rituais, é preciso que eles sejam, acima de tudo, propostas e respostas para a nossa vida.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma frase de Carlos Drummond de Andrade, que diz: “ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.”

Isto é ter fé. Fé é ausência de motivos. Ela simplesmente é. Não importa se caminhamos tantos quilômetros a pé. Não importa, tanto, ver o caminho por meio dos nossos pés, mas sim os quilômetros caminhados por dentro de cada um de nós, mesmo sem os pés. Quando valorizarmos os quilômetros internos andados, sem atos mecânicos e externos, nossos pés reais, agora inchados, agora cansados e agora sujos das estradas passarão a fazer sentido e nos completar. E isto somente a fé poderá nos oferecer. Porque ela não costuma faiá. E não faia, mesmo!

terça-feira, 8 de outubro de 2019

A maçaneta da porta

Quem dera a porta se abrisse ao tocarmos a campainha, ao soprarmos a sineta. Mas a porta tem seus caprichos. Outros compromissos. É preciso esperar. Aguardar. Silenciar. A porta permanece fechada não porque nos ignora, mas porque não nos olha.

Não nos olha. Ou não queremos ser vistos?

Não sermos vistos é uma forma de viver. Não sermos vistos nos isenta de possíveis convocações de prestações de conta. Mais fácil viver apenas admirando os trens que passam na estação. Mas também aqueles que apenas os admiram, não vivem. E como não vivem, longe estão de desfrutarem o balanço dos trens sobre os trilhos, o cheiro do mato passando ao lado, o tilintar dos bancos, o ouvir do som das vozes dos outros e a experiência de ser um dos motivos de andar daqueles trens. Alguém pode dizer, “prefiro ficar na estação”, mas este será sempre alguém defronte de si próprio a procura de um lugar para ser seu. Um ambulante sem estrada, que migra tentando transportar a si. Um possível itinerante, um “talvez existido ou aquele que sempre vai ser o que não nasceu para isso”, como disse o genial Fernando Pessoa.

A porta continua fechada. Mas agora observamos que há uma maçaneta lá. E se a virássemos discretamente e abríssemos a porta? Talvez a distração de quem está dentro impediu o ouvir da campainha quando a tocamos. Então, para disfarçar, tocamos a campainha mais uma vez somente por educação, caso alguém esteja nos observando, da vizinhança. Indelicado já ir se apossando da maçaneta. Como sempre somos aquele quem deve esperar, a porta, absoluta, se nega outra vez para nós, e nos afronta com o limite imposto. Disfarçadamente, viramos a maçaneta para abri-la forçosamente, porque assim queremos, porque assim fazemos. Queremos e fazemos. Mas e o querer e o fazer da porta?

Que pena dá da gente algumas vezes. A porta nos humilha e dança na nossa frente nos dizendo: “você ainda não é bem-vindo aqui”. Eu te ouvi, mas parece que você não ouviu o que eu dizia: “volte depois, talvez amanhã, quiçá depois de amanhã.”

Acostumar-se às ordens de uma porta é trabalhar arduamente a nossa vaidade. Viramos a maçaneta porque não admitimos não sermos ouvidos pela campainha e nem atendidos pela porta. Queremos entrar, e de preferência, passar rapidamente pela cozinha e avançar para os cômodos mais nobres. A resposta nítida da porta não nos convence. Precisamos forçar a entrada. Forçamos. E aí somos despejados. Um despejo sem traquejo. Estamos vestidos e prontos e vivos. E despejados. A autossuficiência que pensamos possuir sempre conversa com abismos que nos rondam. É preciso atenção no caminhar.

Tudo o que nos consola também nos viola. Fomos vistos. A porta nos viu. Mas não abriu.

Ela nos viu. Por que não fomos convidados a entrar? Ela nos ouviu. Onde já se viu tamanho desencontrar? “Você sabe com quem está falando?”, dizemos à porta. Ela nos diz: “sim, sei sim, mais alguma informação?”. Humilhados, recuamos. De vez em quando, é importante conhecer o lugar ao qual temos direito. Costumamos pedir sempre um extra, mas a vida não pode ser sempre tão generosa.

Do lado de fora, gentilmente colocados, somos convidados a encontrar caminhos do nosso presente que nos conduzam para dentro da casa. É preciso entrar. Mas é preciso, também, pararmos de emitir comandos e exigências do topo, aonde sempre nos colocamos. Quando descemos do topo, a nossa visão recupera verdades e conquistamos o nosso direito de nos levantar para abrirmos as janelas que fechamos, cuidadosamente, porque alguém disse que viria uma chuva forte.

Ainda do lado de fora, nos damos conta da importância de cultivarmos a modéstia, tão ultrapassada e fora de moda. Disfarçamos modéstia e prosseguimos. Mas os fatos mostram o nosso disfarce. Por isso, agora, do lado de fora da porta, percebemos. Do lado de fora, percebemos nossa ansiedade porque forçamos a maçaneta. E a ansiedade nos coloca em lugares que ainda não chegaram. Ela te faz querer horas que o dia não tem, te faz chamar de lentos o sol e a lua, que juntos, fazem um imenso trabalho de acolher a todos, que somos nós. Ansiosos, sempre estamos lá e nunca no aqui.

O aqui nos levará ao lá. Por que não percebemos? Ansiosos, consertamos coisas que não precisariam ser consertadas. E outras, empoeiram e alimentam traças. Ansiosos, tiramos conclusões incríveis que envergonhariam aqueles que já abandonaram o caminho da ignorância. Ansiosos, discordamos do tempo. Pobres que somos!

Quando batemos, é preciso esperar. A maçaneta continua ali, parada. Mas agora, somos estranhos a ela. Não queremos mais forçá-la. A solidão nos fez bem. Solitários que somos, mas não nulos. O texto é sempre menos que o contexto. Mas sem texto, não há contexto. Sem o contexto, o texto é só, manco, viajante e solto pelo mundo. Sem o texto, o contexto perde o sentido. Texto somos nós, pequenas peças que se encaixam no todo; contexto, uma porta chamada vida. A solidão e a humilhação nos fizeram bem. Fomos despejados para lotes distantes das estradas, mas experimentar isso foi o que nos fez chegar a estas respostas.

Sem experiências não há respostas. Sem texto não há contexto. Seria desonesto varrer tudo isto para debaixo do tapete.

Esticamos as nossas pernas e nos levantamos. Passou-se muito tempo. É preciso nos acostumar a fazer longos percursos. Um caminho verdadeiro e de valor requer tempo. E tempo foi tudo o que mais tivemos. Tocamos a campainha mais uma vez. O som agora saiu um pouco mais fraco, talvez porque tenhamos colocado menos força. O tempo também nos ensina que a força raramente será a melhor saída. A melhor saída sempre será possuir a ferramenta certa para cada luta necessária. Nada mais humilhante do que saber que algo precisa ser feito e não termos a ferramenta adequada. Por isso fomos despejados e postos, delicadamente, para fora. Quisemos acelerar a nossa escalada, mas fomos obrigados a recuar.

Fomos ouvidos. A porta se abriu. Por completo. Ficamos felizes. Receosos se podemos entrar ou não, ouvimos: “entre, você é bem-vindo aqui. Se quiser, pode tirar os seus sapatos para ficar mais à vontade.” Como estranhos que somos, como estrangeiros que somos, como disse Clarice Lispector, aceitamos o convite e entramos. Esquecemos a sala e o escritório. Queremos, primeiro, conhecer os banheiros e a cozinha. Parece que agora percebemos que muito se aprende nestes lugares. Pedimos licença para entrar e para avançar. Aprendemos. Ouvimos um som forte. Olhamos para trás e observamos que a porta se fechou, mas agora, conosco dentro. Conquistamos o direito de ficar e ainda ganhamos cópia das chaves.

Encerramos o expediente. Descalços. Vestidos. Acordados. Na cozinha. Somos bem-vindos aos outros cômodos, também. Mas para ter acesso ao escritório, antes é preciso estagiar na cozinha e no banheiro. Apreender o que de lá vier. Pedir licença. Aguardar. Esperar. O tempo somente valoriza aquilo que foi construído com a ajuda dele, disse um grande Mestre. E caminhar pela casa leva tempo, muito tempo. Há um lugar de partida e é daí que se deve começar, sob pena de sermos, novamente, despejados.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma passagem de um poema de Fernando Pessoa, poeta atemporal e necessário, que diz:

“...como um ruído de chocalhos, para além da curva da estrada, os meus pensamentos são contentes...”

Penso que nossos chocalhos chiam porque nos chamam. Querem o nosso avanço. Querem nos mostrar o que há além da curva da estrada. Mas para tal, é preciso respeitar a casa, os cômodos, o atender de porta. E, acima de tudo, respeitar o silêncio da porta em não se abrir para nós. Somente de posse deste respeito, seremos convidados a entrar, novamente.

Saídos que fomos, despejados fomos também. Recompusemo-nos. De posse da chave, agora estamos dentro de casa, novamente. Se um dia fomos saídos e despejados foi porque gastamos por conta sem levarmos em conta que não podíamos fazer num faz de conta.

À espera que estávamos de a porta se abrir, ela se abriu. Entramos. E começamos a nos reconhecer na nossa casa, novamente. E começamos a reconhecer a nossa casa, novamente.

Estranhos que somos. Estrangeiros que somos todos e que sempre seremos. Mas agora estrangeiros reconhecidos na própria casa. Na nossa casa.