Hoje, para quem é católico,
comemora-se o dia da Padroeira do Brasil: Nossa Senhora de Aparecida. Um dia de
procissões, de missas, de encontros, de pagamentos de promessas, de romarias,
de cantos. Um dia. Mas, e os outros dias? E nos outros dias?
Uma senhora, pela televisão,
chora ao dar um depoimento sobre a cura recebida por intermédio de Nossa Senhora.
Lindo e emocionante. Um depoimento de fé. Não de uma religião. Fiquei
observando a matéria que a televisão transmitia e inúmeros eram os depoimentos,
de diversas naturezas. Pessoas caminhando quilômetros a pé, longas distâncias,
em direção ao interior de São Paulo, onde está o Santuário de Nossa Senhora.
Pessoas a caminho do Santuário ou
não. Pessoas andando, ajoelhadas ou não. O ritual não importa. Não é sobre o
andar, literal, que falavam aquelas pessoas, mas sobre fé, muito além de
religião. Um andar moral, um caminhar dentro de si próprio.
Independentemente da religião de
cada um de nós, se é que a temos, todos os cultos, rituais, abordagens,
mensagens, práticas de todas as religiões devem ser respeitados. Frequentamos
lugares e participamos de grupos cujos caminhos nos chamam. E é preciso
respeito nisto. Somos de uma determinada religião porque assim nos sentimos
bem. Encontramos, de certa forma, as respostas que buscamos para as nossas
aflições. Um conforto. E isso não pode ser posto em discussão. Cada religião
demonstra uma rota. Algumas delas se esbarram umas nas outras, outras se
complementam, algumas se contradizem, outras se confrontam, incluem, excluem. E
cabe a cada um de nós, caso assim faça sentido, nos integrarmos a elas, ou não.
Mas não é sobre religião que
quero falar, porque falar sobre religião é como se eu inferisse sobre a crença
do outro. E isto seria desrespeitoso. Mas sobre fé, que é algo bem diferente.
Religiões nos religam, nos
conectam. Fé nos movimenta. Religiões são estáticas. Fé é dinâmica. Religiões
possuem lindos e emocionantes rituais. Fé os traduz. Religiões nos pedem para
ajoelharmos durante a fala do padre. Fé nos ensina que ajoelharmos será eterno
exercício de humildade. Religiões dizem. Fé faz. Religiões leem textos
sagrados. Fé nos convida a vivê-los. Religião é conforto e resposta. Fé é a mão
estendida dizendo: “pode vir, estou com você”.
Religião é algo externo, cuja
escolha, feita por nós, vai ao encontro do que buscamos, seja no culto, na
missa, na vigília, ou em outra prática. Fé nos move para além do horário da
missa e da palestra do orador, no culto. Fé nos move além do ajoelhar-se, porque
assim o padre mandou. Fé nos conduz além do sinal da cruz metódico e
automático, enquanto comentamos a roupa da pessoa sentada a nossa frente,
durante a vigília. Leva-nos além da fila que pegamos para comungarmos,
enquanto nos incomodamos com aquele senhor que furou a mesma fila. Religião
sugere rituais para possíveis domesticações. Fé sugere reflexão sobre estes
rituais e, se assim fizerem sentido para nós, os praticarmos. Belos e
importantes rituais somente serão dignos se assim fizerem sentido para nós, se
assim trouxerem valor para as nossas vidas. E isto exige reflexão, crescimento
de nossa parte para que tenhamos tamanho para alcançarmos o real significado
das coisas.
Presenciei, uma vez, uma pessoa
fazendo o sinal da cruz com uma mão e com a outra olhava mensagens, no celular.
O sinal da cruz, um lindo ritual, qual valor teve naquele momento? Esta é a
reflexão. Se fazer o sinal da cruz é valoroso para nós, que a gente faça o
sinal da cruz, mas verdadeiramente e ciente sobre o que aquele símbolo
representa. Isto é fé. Em outro momento, sentada num banco de uma igreja, uma
senhora chorava. Muito. Como não percebeu a minha presença, começou a conversar
com Deus, em voz alta. E pude ouvir a oração: “Senhor, que eu veja por meio dos
seus olhos, e não por meio dos meus.” Sem se ajoelhar, sem fazer o sinal da
cruz, sem beijar todos os santos, a mulher se levantou e saiu. Aquilo é fé.
Mas, se mesmo assim, ela tivesse feito todos os rituais, ainda assim seria um
ato de fé. Uma pessoa que estava ali, sabia o que fazia e com quem falava.
Religião e Fé: é possível ter fé sem
religião? É possível ter religião sem fé? Duas faces da mesma moeda. Enquanto a
religião teoriza a beleza e o encantamento do ritual, a fé nos ajuda a praticá-lo.
Se assim conseguimos, penso ser isso o que chamamos equilíbrio e paz. Cada um
trilha a busca pela própria paz, e este é um dos possíveis caminhos, acredito.
As religiões falam sobre a fé,
mas somente nós poderemos exercê-la. Falam sobre possíveis caminhos para
aliviar a nossa dor, mas somente nós poderemos arregaçar as mangas para
encontrá-los. Elas comentam a palavra, mas somente nós podemos compreendê-la. Falam
sobre o exercício da cidadania e do amor ao próximo. Mas somente a nós cabe
saber o que, de verdade, isto significa. Falar sobre caridade, dentro de
paredes de pedras, é simplificar demais a vida. Uma simplicidade que
envergonha. Exercê-la após o término da missa é o aceno que a vida nos
faz. Sermos cidadãos enquanto lemos o folheto, durante a missa, é
humilhante. A cidadania começa quando conseguimos, de verdade,
compreender o real sentido da hóstia e da comunhão, que, a propósito, acabamos
de realizar, na missa.
Fomos à missa. Nossa missão está
cumprida. Somos religiosos. Seguimos a roupagem que nos mandam vestir. Mas e as
perguntas que a Fé nos fez? Fé nos
oferece um incômodo permanente de nos incomodar.
Aquela senhora da reportagem trouxe
uma linda reflexão. Antes de ser uma religiosa, era uma pessoa de fé, que
independe de religião. Aquela mulher possui uma relação com a fé, com Nossa
Senhora. Fé, do latim fides, significa fidelidade a um modelo, um
trabalhar, acima de tudo. Aquela mulher construiu uma fé, e isto requer
trabalho. Muito trabalho. Ser uma pessoa de fé significa ir além dos rituais,
que passam a ter significado real para as próprias vidas destas pessoas. Pessoas
de fé constroem caminhos, trabalham, acreditam, agem. Como na linda letra e
música de Gilberto Gil...
Andar com fé eu
vou
Que a fé não costuma faiá
Andar com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Que a fé não costuma faiá
Andar com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá
Andar com fé, ou seja, para
que haja fé, é preciso andar, caminhar. Não há milagres com braços parados por
trabalhar. A fé precisa ser construída, não basta ajoelhar mecanicamente. É
preciso ajoelhar verdadeiramente.
O sino soou. São dezesseis horas.
A missa vai começar. Vamos? O que faremos depois? Que os rituais saiam do papel
e ganhem vidas em nossas vidas. Eles nos pedem isto há tempos.
A letra da música de Gilberto
Gil, Andar com Fé, composta em 1982, é atemporal e provocativa. A fé,
realmente, não costuma faiá. Mas por que ele nos disse isso? Alguém está
falhando, então? Sutilezas que somente a arte explica.
Quando criança, nas aulas de catecismo, fui reprovada em uma
prova oral por não saber de cor, a oração da Salve-Rainha. O que faz
alguém achar que uma criança de menos de 09 anos de idade devesse sabê-la? E de
cor? Nem hoje, pessoa madura, sei esta oração de cor. Mas será
preciso isto para se ter fé? “Volte para o seu lugar e estude direito”, foi o
que eu ouvi. Voltei e estudei direito. Decorei a oração. Voltei a
recitá-la. Agora completa. Fui aprovada. E no dia seguinte, já não me lembrava
mais da oração. Tudo certo. O ritual foi seguido. Mas o que diz a Salve-Rainha,
mesmo? O que esta oração significa? Hoje, adulta, sei. Sei porque fui buscar o
sentido para aplicá-lo à minha vida. Não porque aprendi o sentido nas aulas
de catecismo. A oração é linda, ainda bem que não guardei rancor da
professora. Pobre coitada! Ainda se dizia cristã! Como somos inocentes no nosso
mar de ignorância.
Ainda no catecismo, depois de decorar
a Salve-Rainha, o padre entrou na nossa sala e nos disse que aprenderíamos
a comungar. Mas antes, deveríamos nos confessar. “Confessar o quê?”, disse uma
criança ao padre. (E depois dizem que as crianças de hoje é que são espertas).
“Os seus pecados. Todos somos pecadores”, disse o padre. Pobre cristão aquele
padre, também. Um homem comum, além do comum. Mas ele não sabia disto. Achava
que podia falar em nome de um suposto Deus. Tão dentro de uma religião e, ao
mesmo tempo, tão ausente do verdadeiro sentido.
Como aos nove anos de idade não
se sabe muito a respeito de pecados, menti ao padre, na hora da minha
confissão. Disse que havia brigado com a minha irmã. Menti apenas para cumprir
uma ordem, um ritual. O padre, sem saber, me ensinou a dissimular,
infelizmente. Ele acreditou em mim e me disse que nunca se briga com irmãos. Ao
invés de me dizer o motivo de nunca se brigar com irmãos, desperdiçou a chance
e me pediu para ir para o banco da igreja rezar 10 pais-nossos e 10 ave-marias.
Foi o que eu fiz, de forma mecânica e culpada. Lembro-me de pensar: “o que
significa Ave de Ave-Maria?”. Somente bem mais tarde fui saber que Ave
significa “Salve”! Salve, aquele pobre padre. Quem precisaria se confessar,
ali?
Sem ressentimentos. Fiz as pazes
logo em seguida. Compreender certas coisas, na vida, e não criar embates traz
imensos avanços. A religião e a igreja são representações das crenças do homem.
É preciso, portanto, que a gente faça bom uso de toda esta beleza de
conhecimento que nos é oferecida, sem ostentações, sem obrigações, sem
vaidades, sem ditaduras.
Aprofundarmo-nos nas questões
íntimas que vão em nós: se a religião, qualquer que seja ela, conseguir nos
ajudar nisto, terá feito o principal papel que cabe a ela. Com ou sem rituais. A
questão não é a religião, necessária, e nem os rituais, que são lindos e
extremamente significativos, mas como os executamos, para quê e o porquê. De
posse destas respostas, tudo volta ao equilíbrio. Nada há demais em se
confessar, em comungar, em seguir rituais, desde que haja sentido e valor para
quem os faz. Simples assim. Mais que simples rituais, é preciso que eles sejam,
acima de tudo, propostas e respostas para a nossa vida.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma frase de Carlos Drummond de Andrade, que diz: “ser
feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.”
Isto é ter fé. Fé é ausência de
motivos. Ela simplesmente é. Não importa se caminhamos tantos quilômetros a pé.
Não importa, tanto, ver o caminho por meio dos nossos pés, mas sim os
quilômetros caminhados por dentro de cada um de nós, mesmo sem os pés. Quando valorizarmos
os quilômetros internos andados, sem atos mecânicos e externos, nossos
pés reais, agora inchados, agora cansados e agora sujos das estradas passarão a
fazer sentido e nos completar. E isto somente a fé poderá nos oferecer. Porque
ela não costuma faiá. E não faia, mesmo!