quarta-feira, 21 de março de 2018

Os pregos em nós

Enxergar o outro como verdadeiramente o outro, e aceitá-lo, talvez seja uma das coisas mais difíceis. A essência do outro fica camuflada diante os nossos olhos quando algo nos confronta, nos desafia, nos diz que podemos estar errados. Sabemos que ele tem uma essência, mas é como se ela atrapalhasse o brilho da nossa. Sentimo-nos ameaçados e a saída, encontrada por muitos, é enquadrá-la à nossa maneira e formato de ver e de lidar com o mundo.

Conviver com o diferente não é simples. Exige muitas habilidades. Mas é preciso reforçar que é ineficiente e improdutivo rechaçá-lo e colocá-lo de lado. O diferente do outro nos incomoda, mas o nosso diferente também incomoda os outros.

Respeitar as diferenças não significa concordar com elas. Significa, apenas, respeitá-las e ceder espaço para que o outro pense e aja diferentemente. A palavra respeito, do latim respectus, significa, além de outras coisas, olhar para trás, considerar. Ou seja, aquele que respeita olha para trás e sabe que há sempre alguém vindo. Não um olhar para trás arrogante, como se estivesse à frente, mas um olhar ciente de que não vamos sós, que o mundo caminha compartilhado e partilhado, dividido com outros saberes, sentidos e passos. Quando pensamos desta forma, mesmo que a nossa discordância do outro seja inevitável, no mínimo, o respeito estará presente. Mesmo que o nosso compartilhar de passos seja por meio de caminhos distintos e opostos, mesmo assim, o respeito estará presente.

Respeito presente. Guerra ausente. Podemos lutar lutas distintas. Podemos nos distanciar daquele de quem não compartilhamos nem a vírgula. Podemos nos afastar daquele de quem discordamos absolutamente, principalmente nas atitudes, valores e virtudes. Mas, o respeito, se convidado, sempre estará pronto para ser o condutor da paz.

Trabalhei num Banco e ouvi, certa vez, no momento do feedback:

“Você precisa se expor mais, falar mais, dizer a sua opinião, nas reuniões da Diretoria. Percebo que nestas reuniões você não fala muito, é muito calada. É importante você se colocar para que as pessoas te conheçam mais e saibam quem você é.”

Apesar de discordar, apenas ouvi aquele comentário descontextualizado. Ao final do feedback, a Gestora me perguntou: “está claro, ficou alguma dúvida?”, apenas respondi: “claro está, mas discordo. Se não falo muito neste tipo de reunião é porque não tenho muito, mesmo, a dizer. São reuniões genéricas e amplas que, em muitas situações, não cabem comentários, mesmo. As poucas interações que já fiz me parecem mais que o suficiente. Acredito que a fala deve ser utilizada com utilidade.” Assim encerramos o nosso feedback: de uma forma traumática, ineficiente e tendenciosa.

Jamais podemos chamar a atenção de alguém por falar pouco ou por não dizer a própria opinião. A menos que esta ausência de fala prejudique algo ou alguém, o que não foi o caso. Muitas pessoas apenas “falam” neste tipo de situação para marcarem presença. Levantam o braço apenas para chamarem a atenção para si. Falam apenas para ocuparem espaços vazios e para gritarem suas vozes sem expressão.

O feedback é e deve ser um momento de realimentar para o bem, e não um momento de opressão. O alimento eleva; a opressão rebaixa.

Importante dizer que esta Gestora era extremamente falante e extrovertida. Sempre tinha uma opinião sobre tudo. Estava sempre envolvida em diversas ações, porém com poucas conclusões. E “não sei” era algo raro de se ouvir.

“Se tudo o que você tem é um martelo, sua tendência será ver tudo como um prego.” Este foi o pensamento que veio à minha mente após aquela conversa. Fui tratada como um prego, naquele momento, uma vez que ela possuía, apenas, um martelo. Uma pena.

Quem sai perdendo com tudo isto? Aquele que não considera a diferença e que mede o outro por meio da sua régua pessoal. Que busca reprodutores de modelos e de pensamentos, seguidores e não pensadores. Aquele que, tomado pela cegueira, enxerga, apenas, o seu caminhar, os seus passos e as suas marcas.

Aquela gestora demonstrou toda a sua limitação ao não considerar que eu era apenas diferente dela. Simples assim. E isto é um exemplo de muitos outros símbolos.

Direcionar alguém e orientá-lo para a realização de um bom trabalho é essencial. Contribuir para o desenvolvimento de alguém, fazendo que as habilidades e talentos desta pessoa brilhem e ajudem a criar o sucesso do todo é o que um Líder, verdadeiro, deve buscar. No entanto, reprimi-lo sobre quesitos da personalidade, sobre algo pessoal e particular, que nada interferem na qualidade, na entrega e no bem-estar nem do trabalho e nem da pessoa, em questão, é ultrapassar as fronteiras do razoável e do aceitável. É, no mínimo, entrar na casa de alguém sem, ao menos, tocar a campainha e pedir licença para entrar.

O tempo passou, e após quatro meses, outra Gestora chegou a área. Muitas mudanças boas foram percebidas por todos. No momento novamente do feedback, que era semestral, um dos comentários que ouvi, desta nova Gerente, foi:

“um dos seus pontos que destaco é o discernimento ao falar, ao se expor. Você é bastante discreta, fala apenas quando tem algo a agregar, não fala apenas por falar, inclusive em reuniões com Diretores, momentos muitas vezes de realização de marketing pessoal para tantas pessoas. Saber o momento de se calar é uma arte. São características essenciais para o trabalho que se faz aqui.” E quando ela me fez a pergunta clássica: “está claro, ficou alguma dúvida?”, me lembrei imediatamente da situação oposta que tinha vivido.

Ironias da vida ou reflexões? Os dois. Ironia porque para uns, é defeito; para outros, qualidade. E reflexão porque uma coisa é nos permitir à reorientação, quando necessário, chamados à atenção e reconduzidos ao caminho que nos levará ao melhor que pudermos ser. Isto é o início de um trilhar de humildade, é um reconectar dos nossos pés com a terra. Às vezes é doloroso, mas necessário. Um alimento amargo, mas que lá na frente saberemos valorizá-lo. Outra coisa é aceitarmos, indevidamente, nos colocar numa condição de pregos por alguém que não enxerga as próprias limitações.

Não se trata de valorizar a segunda atitude apenas porque fui elogiada. Exatamente o contrário. Trata-se de ressaltar a relevância da valorização da diferença, da individualidade. Esta segunda Gestora também era extrovertida e falante. Porém, sabia enxergar, no silêncio e na discrição, relevâncias também. Sabia enxergar ganhos nas diferentes formas de existência.

Exigir e fazer que o outro ande na nossa rota, no nosso caminho, e de preferência, com as nossas regras é um excelente condutor ao fracasso. Enxergá-lo apenas com uma possibilidade, e ainda assim, porque está baseada na nossa expectativa e crença, é somente o retrato da nossa pequenez e do quão distante ainda estamos.

A diferença entre as marteladas que a vida nos dá e as que os outros nos dão está no sentido: as da vida representam um pedido para acordarmos para as inúmeras possibilidades de deixarmos de ser pregos. As que os outros nos dão servem para nos confundir de quem realmente somos, e assim, nos afundarmos em madeiras podres e doentes. Servem para não pensarmos em quem somos e em quem poderemos ser.

Críticas e elogios: duas faces da mesma moeda. Importantes para o nosso desenvolvimento. As críticas nos reconduzem ao caminho que nos fará brilhar, e os elogios nos darão a certeza de que já estamos brilhando, mas não um brilho que ofusca aquele que vem atrás, mas o que ilumina o caminho em comum no qual todos possam caminhar.

Uma crítica sincera e efetiva nos mostra muitas possibilidades além de um prego. Um elogio sincero é um sinal de respeito ao que se é, à individualidade, ao estar no mundo.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Manoel de Barros, um poeta imprescindível, que diz:

Guarda, num velho baú, seus instrumentos de trabalho que são: um abridor de amanhecer, um prego que farfalha, um encolhedor de rios e um esticador de horizontes”.

A poesia dá colorido à vida. Ela explica o verdadeiro sentido que a vida pode e deve ter. Manoel de Barros sabe disso há tempos.

Aquele prego, cuja comparação me foi feita está, até hoje, guardado na minha memória e no meu velho baú. Aonde o respeito predomina, o ego perde a vez.

Nossos pregos guardados em nossos baús representam o essencial: lembrarmos de manter a atenção em nós e no que, verdadeiramente, importa. Quando estamos atentos a nós, o mundo ao redor melhora. E, consequentemente, deixamos de considerar o outro como prego ou, pior, de martelá-lo como se esta fosse a opção e caminho dele.

Sempre haverá pessoas tentando diminuir os nossos tamanhos. Os pregos guardados nos farão lembrar disso. Mas como somos grandes, não permitiremos.

O feedback, uma excelente ferramenta, é uma arma na mão dos desajustados. Pode prejudicar alguém ou o tiro pode sair pela culatra. Neste caso, o tiro acabou saindo pela culatra: ao invés de aquela Gestora conseguir me oprimir por meio de uma fala tendenciosa, ela, sem perceber, me ajudou a descortinar uma arma poderosa que tenho, que todos nós temos: o meu esticador de horizontes. Uma arma poderosa que há no baú de todos nós.

Que todos nós possamos fazer uso do nosso baú. Ele nos diz aonde estamos, porque assim nos colocamos, mas nos diz, acima de tudo, aonde poderemos chegar se fizermos uso de um abridor de amanhecer e de um esticador de horizonte, por exemplo. Com estas ferramentas, os pregos até continuarão existindo, mas não em sua função inicial, apenas. Eles precisarão se adaptar aos novos moldes de ferramentas mais éticas, claras e justas.

quinta-feira, 8 de março de 2018

A passagem estreita

Um homem foi ao encontro de Sócrates para levar a ele uma informação. Julgando ser de interesse do filósofo, disse:

- Mestre, quero contar ao Senhor uma coisa a respeito de um amigo seu.

- Espere um momento, disse Sócrates. Antes de me contar, quero saber se você passou esta informação através das três peneiras.

- Três peneiras? O que o Mestre quer dizer com “três peneiras”?

imagem tirada da internet

- Quero dizer que vamos peneirar tudo aquilo que você vai dizer. E para isto, devemos, sempre, utilizar as três peneiras. Se não as conhece, preste bem atenção. A primeira delas, é a peneira da Verdade. Você tem certeza de que isto que vai me dizer é verdadeiro?

- Bem, disse o homem, foi o que eu ouvi os outros contarem. Não sei, exatamente, se é verdade.

Sócrates olhou para o homem de maneira desconcertante.

- A segunda peneira, continuou Sócrates, é a da Bondade. Acredito que você tenha passado esta informação através desta peneira. Ou não?

Envergonhado, o homem respondeu:

-Devo confessar que não.

Sócrates, pensativo, continua:

- E a terceira peneira é a da Utilidade. Você pensou se esta informação é útil?

- Útil? Na verdade, não. O homem respondeu, baixando a cabeça.

- Então, disse o Mestre, se o que você quer me contar não é verdadeiro, nem bom e nem útil, esqueça a informação.

Certamente, se seguíssemos estes conselhos de Sócrates o mundo seria mais feliz, justo, ético e silencioso.

Feliz porque o mundo ficaria mais leve sem tantas falas, sem tantos comentários. Falamos muito e sobre tudo. O fazer, muitas vezes, é obrigado a ceder espaço para o falar sem parar. Quando falamos muito não temos tempo de construir a nossa felicidade que, passa, obrigatoriamente, pela reflexão interna, pelo autoconhecimento, pela contemplação. A felicidade é plena e leve. Digna daqueles que mais observam do que falam. Felicidade é ausência de necessidades. Como ser feliz falando muito e com desequilíbrio?

É preciso dar espaço para as ausências porque elas nos constroem. O caminho da construção interior leva à felicidade.

Justo porque utilizaríamos medidas honestas na nossa convivência, e não tendenciosas. Três pra mim e meio para você. Nosso próximo não seria utilizado, por nós, como escada e vice-versa. Sentar-se na primeira fila deixaria de ser sinônimo de observar, com atenção, o erro do outro. Quando erramos, queremos compreensão, paciência e, de preferência, que esqueçam logo o nosso erro. Quando o outro erra, vestimos a nossa torga e julgamos. Enquanto o prazer em ver o erro do outro existir e a curiosidade e a fofoca ocuparem mais espaços do que a ajuda, como falar em justiça?

É preciso calçar as sandálias do outro, como diz o provérbio, para, de verdade, começarmos a entender o conceito de justiça.

Ético porque as mesmas regras que servem para nós devem servir para o outro. As três peneiras de Sócrates são um exemplo disto. Como ser ético sem ser bom, verdadeiro e útil? Como ser ético se os nossos espelhos estão cobertos? Como ser ético se estes mesmos espelhos, agora descobertos, estão virados para o outro? O espelho mostra quem somos. Por que temos tanta capacidade de falarmos sobre o que não importa? Por que o supérfluo nos representa tanto? Por que nossos espaços não são ocupados pelo sentido?

É preciso revisitar os nossos excessos, facilidades, privilégios e comodidades para, então, iniciarmos a fala sobre ética. Todos eles são indicativos de falta. E falta de algo maior.

Silencioso porque muitas coisas deixariam de ser ditas. Os excessos se retirariam, envergonhados. O silêncio teria sua vez. Os sábios são silenciosos. Falam pouco porque o exemplo deles fala por si. Ouvem muito porque são humildes. Aquele que sabe ouvir e que silencia vai à frente, bem à frente. Somos barulhentos, ansiosos, espaçosos porque, ainda, não aprendemos a valorizar e a perceber o silêncio. Nele podemos, verdadeiramente, nos expressar. Mas perdemos esta oportunidade. “Fala demais por não ter nada a dizer”, diz a música. Um valioso exercício de reflexão. Falar é imprescindível, mas desde que haja o que dizer. Desde que a fala construa algo verdadeiro e digno.

Fabricamos falas improdutivas, mais do mesmo. Falamos sobre as rugas, olheiras e comportamento de todos. Julgamos, criticamos e sempre temos uma solução. Somos assíduos consumidores de fofocas em todos os formatos (reality, revistas, tv). Falamos o tempo todo sobre tudo e sobre todos porque não dedicamos tempo a nós e à construção de nós mesmos. E quando o silêncio se aproxima, tratamos de preenchê-lo e o desprezamos.

Nossos espelhos estão envelhecendo por falta de uso. Nossas imagens distorcidas não chamam mais a nossa atenção. Queremos o palco para termos atenção porque há tempos não sabemos o que é isto, não nos damos atenção. Falamos dos outros indefinidamente e sem pudores porque falar da gente nos fará nos conhecer. A fofoca nos alivia porque, assim, colocamos o outro na cena do julgamento. E assim vamos passando despercebido na vida.

Aquele que ouve os próprios silêncios, silencia. Cala-se. Não tem tempo de falar do outro, de se ocupar, indevidamente, da vida do outro. Aquele que utiliza a verdade, a utilidade e a bondade como forças há muito já entendeu o sentido da vida e o que fazer dela.

Utilizar as peneiras trazidas por Sócrates é sentir o aperto da responsabilidade. É sentir o estreitamento da vida. É uma advertência para a renúncia do que não serve. Uma advertência e um convite, ao mesmo tempo. É um desvencilhar das inutilidades para, finalmente, conhecermos a utilidade. É conhecer o mal para que possamos diferenciá-lo do bem. É conviver com mentirosos para que saibamos valorizar a verdade.

Uma peneira é estreita e apertada. Somente passará o importante e o necessário.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento do próprio Sócrates, que diz:

“O início da sabedoria é a admissão da própria ignorância. Todo o meu saber consiste em saber que nada sei.”

Que nossa bondade não seja seletiva e que nossas falas não tenham mais dificuldades absurdas para reconhecerem o valor do outro, se quisermos que o nosso valor seja igualmente reconhecido. Que o silêncio seja mais vivenciado para que a nossa fala seja cada vez mais eficiente e significativa. Que a admissão da ignorância não seja uma vergonha para nós, mas sim, o princípio da sabedoria, como trouxe Sócrates.

É preciso valorizar os passos dados, que já foram muitos. É preciso valorizar o bem que há em nós, porque há. Mas é preciso, também, abastecer nossas vidas com mais peneiras porque elas nos levarão a um melhor patamar de consciência e, consequentemente, a um melhor patamar de ser. Um ser conciso, estreito, no melhor sentido da palavra, e peneirado.