Enxergar o outro como verdadeiramente o outro, e aceitá-lo, talvez seja uma das coisas
mais difíceis. A essência do outro fica camuflada diante os nossos olhos quando
algo nos confronta, nos desafia, nos diz que podemos estar errados. Sabemos que
ele tem uma essência, mas é como se ela atrapalhasse o brilho da nossa.
Sentimo-nos ameaçados e a saída, encontrada por muitos, é enquadrá-la à nossa
maneira e formato de ver e de lidar com o mundo.
Conviver com o diferente não é simples.
Exige muitas habilidades. Mas é preciso reforçar que é ineficiente e
improdutivo rechaçá-lo e colocá-lo de lado. O diferente do outro nos incomoda,
mas o nosso diferente também incomoda os outros.
Respeitar as diferenças não
significa concordar com elas. Significa, apenas, respeitá-las e ceder espaço
para que o outro pense e aja diferentemente. A palavra respeito, do latim respectus, significa, além de outras
coisas, olhar para trás, considerar. Ou seja, aquele que respeita olha para
trás e sabe que há sempre alguém vindo. Não um olhar para trás arrogante, como
se estivesse à frente, mas um olhar ciente de que não vamos sós, que o mundo
caminha compartilhado e partilhado, dividido com outros saberes, sentidos e
passos. Quando pensamos desta forma, mesmo que a nossa discordância do outro
seja inevitável, no mínimo, o respeito estará presente. Mesmo que o nosso
compartilhar de passos seja por meio de caminhos distintos e opostos, mesmo assim,
o respeito estará presente.
Respeito presente. Guerra
ausente. Podemos lutar lutas distintas. Podemos nos distanciar daquele de quem
não compartilhamos nem a vírgula. Podemos nos afastar daquele de quem
discordamos absolutamente, principalmente nas atitudes, valores e virtudes.
Mas, o respeito, se convidado, sempre estará pronto para ser o condutor da paz.
Trabalhei num Banco e ouvi, certa
vez, no momento do feedback:
“Você precisa se expor mais,
falar mais, dizer a sua opinião, nas reuniões da Diretoria. Percebo que nestas
reuniões você não fala muito, é muito calada. É importante você se colocar para
que as pessoas te conheçam mais e saibam quem você é.”
Apesar de discordar, apenas ouvi
aquele comentário descontextualizado. Ao final do feedback, a Gestora me
perguntou: “está claro, ficou alguma dúvida?”, apenas respondi: “claro está,
mas discordo. Se não falo muito neste tipo de reunião é porque não tenho muito,
mesmo, a dizer. São reuniões genéricas e amplas que, em muitas situações, não
cabem comentários, mesmo. As poucas interações que já fiz me parecem mais que o
suficiente. Acredito que a fala deve ser utilizada com utilidade.” Assim
encerramos o nosso feedback: de uma forma traumática, ineficiente e
tendenciosa.
Jamais podemos chamar a atenção
de alguém por falar pouco ou por não dizer a própria opinião. A menos que esta
ausência de fala prejudique algo ou alguém, o que não foi o caso. Muitas
pessoas apenas “falam” neste tipo de situação para marcarem presença. Levantam
o braço apenas para chamarem a atenção para si. Falam apenas para ocuparem
espaços vazios e para gritarem suas vozes sem expressão.
O feedback é e deve ser um momento de realimentar para o bem, e não um
momento de opressão. O alimento eleva; a opressão rebaixa.
Importante dizer que esta Gestora
era extremamente falante e extrovertida. Sempre tinha uma opinião sobre tudo.
Estava sempre envolvida em diversas ações, porém com poucas conclusões. E “não
sei” era algo raro de se ouvir.
“Se tudo o que você tem é um martelo, sua tendência será ver tudo como
um prego.” Este foi o pensamento que veio à minha mente após aquela conversa.
Fui tratada como um prego, naquele momento, uma vez que ela possuía, apenas, um
martelo. Uma pena.
Quem sai perdendo com tudo isto?
Aquele que não considera a diferença e que mede o outro por meio da sua régua
pessoal. Que busca reprodutores de modelos e de pensamentos, seguidores e não
pensadores. Aquele que, tomado pela cegueira, enxerga, apenas, o seu caminhar,
os seus passos e as suas marcas.
Aquela gestora demonstrou toda a
sua limitação ao não considerar que eu era apenas diferente dela. Simples
assim. E isto é um exemplo de muitos outros símbolos.
Direcionar alguém e orientá-lo para
a realização de um bom trabalho é essencial. Contribuir para o desenvolvimento
de alguém, fazendo que as habilidades e talentos desta pessoa brilhem e ajudem
a criar o sucesso do todo é o que um Líder, verdadeiro,
deve buscar. No entanto, reprimi-lo sobre quesitos da personalidade, sobre algo
pessoal e particular, que nada interferem na qualidade, na entrega e no
bem-estar nem do trabalho e nem da pessoa, em questão, é ultrapassar as
fronteiras do razoável e do aceitável. É,
no mínimo, entrar na casa de alguém sem, ao menos, tocar a campainha e pedir
licença para entrar.
O tempo passou, e após quatro
meses, outra Gestora chegou a área. Muitas mudanças boas foram percebidas por
todos. No momento novamente do feedback,
que era semestral, um dos comentários que ouvi, desta nova Gerente, foi:
“um dos seus pontos que destaco é
o discernimento ao falar, ao se expor. Você é bastante discreta, fala apenas
quando tem algo a agregar, não fala apenas por falar, inclusive em reuniões com
Diretores, momentos muitas vezes de realização de marketing pessoal para tantas pessoas. Saber o momento de se calar
é uma arte. São características essenciais para o trabalho que se faz aqui.” E
quando ela me fez a pergunta clássica: “está claro, ficou alguma dúvida?”, me
lembrei imediatamente da situação oposta que tinha vivido.
Ironias da vida ou reflexões? Os
dois. Ironia porque para uns, é defeito; para outros, qualidade. E reflexão
porque uma coisa é nos permitir à reorientação, quando necessário, chamados à
atenção e reconduzidos ao caminho que nos levará ao melhor que pudermos ser.
Isto é o início de um trilhar de humildade, é um reconectar dos nossos pés com
a terra. Às vezes é doloroso, mas necessário. Um alimento amargo, mas que lá na
frente saberemos valorizá-lo. Outra coisa é aceitarmos, indevidamente, nos
colocar numa condição de pregos por alguém que não enxerga as próprias limitações.
Não se trata de valorizar a
segunda atitude apenas porque fui elogiada. Exatamente o contrário. Trata-se de
ressaltar a relevância da valorização da diferença, da individualidade. Esta
segunda Gestora também era extrovertida e falante. Porém, sabia enxergar, no
silêncio e na discrição, relevâncias também. Sabia enxergar ganhos nas diferentes
formas de existência.
Exigir e fazer que o outro ande
na nossa rota, no nosso caminho, e de preferência, com as nossas regras é um
excelente condutor ao fracasso. Enxergá-lo apenas com uma possibilidade, e
ainda assim, porque está baseada na nossa expectativa e crença, é somente o
retrato da nossa pequenez e do quão distante ainda estamos.
A diferença entre as marteladas
que a vida nos dá e as que os outros nos dão está no sentido: as da vida
representam um pedido para acordarmos para as inúmeras possibilidades de
deixarmos de ser pregos. As que os outros nos dão servem para nos confundir de
quem realmente somos, e assim, nos afundarmos em madeiras podres e doentes.
Servem para não pensarmos em quem somos e em quem poderemos ser.
Críticas e elogios: duas faces da
mesma moeda. Importantes para o nosso desenvolvimento. As críticas nos
reconduzem ao caminho que nos fará brilhar, e os elogios nos darão a certeza de
que já estamos brilhando, mas não um brilho que ofusca aquele que vem atrás,
mas o que ilumina o caminho em comum no qual todos possam caminhar.
Uma crítica sincera e efetiva nos
mostra muitas possibilidades além de um prego. Um elogio sincero é um sinal de
respeito ao que se é, à individualidade, ao estar no mundo.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma provocação de Manoel de Barros, um poeta
imprescindível, que diz:
“Guarda, num velho baú, seus
instrumentos de trabalho que são: um abridor de amanhecer, um prego que
farfalha, um encolhedor de rios e um
esticador de horizontes”.
A poesia dá colorido à vida. Ela
explica o verdadeiro sentido que a vida pode e deve ter. Manoel de Barros sabe
disso há tempos.
Aquele prego, cuja comparação me
foi feita está, até hoje, guardado na minha memória e no meu velho baú. Aonde o
respeito predomina, o ego perde a vez.
Nossos pregos guardados em nossos
baús representam o essencial: lembrarmos de manter a atenção em nós e no que,
verdadeiramente, importa. Quando estamos atentos a nós, o mundo ao redor
melhora. E, consequentemente, deixamos de considerar o outro como prego ou,
pior, de martelá-lo como se esta fosse a opção e caminho dele.
Sempre haverá pessoas tentando
diminuir os nossos tamanhos. Os pregos guardados nos farão lembrar disso. Mas
como somos grandes, não permitiremos.
O feedback, uma excelente ferramenta, é uma arma na mão dos
desajustados. Pode prejudicar alguém ou o tiro pode sair pela culatra. Neste
caso, o tiro acabou saindo pela culatra: ao invés de aquela Gestora conseguir me
oprimir por meio de uma fala tendenciosa, ela, sem perceber, me ajudou a descortinar
uma arma poderosa que tenho, que todos nós temos: o meu esticador de
horizontes. Uma arma poderosa que há no baú de todos nós.
Que todos nós possamos fazer uso
do nosso baú. Ele nos diz aonde estamos, porque assim nos colocamos, mas nos
diz, acima de tudo, aonde poderemos chegar se fizermos uso de um abridor de
amanhecer e de um esticador de horizonte, por exemplo. Com estas ferramentas,
os pregos até continuarão existindo, mas não em sua função inicial, apenas.
Eles precisarão se adaptar aos novos moldes de ferramentas mais éticas, claras
e justas.