No livro Discurso da Servidão
Voluntária, do escritor francês do século XVI, Étienne de La Boétie,
há uma passagem indigesta que diz:
“o teatro, os jogos, as
farsas, os espetáculos, os gladiadores, os animais ferozes, as medalhas, os
quadros e outras drogas semelhantes eram para os povos antigos a isca de
servidão, o preço de sua liberdade, os instrumentos da tirania. Os tiranos
antigos empregavam esses meios, essas práticas, esses atrativos para entorpecer
seus súditos sob o jugo. Assim os povos, embrutecidos, achando belos esses
passatempos, entretidos por um prazer vão que passava rapidamente diante de
seus olhos, acostumavam-se a servir tão ingenuamente, e até pior, quanto as
criancinhas que aprendem a ler vendo as imagens brilhantes dos livros
coloridos.”
Ainda mais a frente, no livro, Étienne
de La Boétie, continua:
“os tiranos distribuíam em
profusão um quarto de trigo, uma medida de vinho e uma moeda de menor valor, e
então dava dó ouvir gritar: ‘Viva o Rei!’ Os imbecis não percebiam que
recuperavam apenas parte do que era seu, e que mesmo a parte que recuperavam, o
tirano não poderia dar-lhes se, antes, não a tivesse tirado deles mesmos. Não
penseis que um pássaro caia mais facilmente no laço ou um peixe, por gulodice,
morda mais cedo o anzol, que todos esses povos que se deixam atrair prontamente
pela servidão, pela menor doçura que os façam provar. É realmente assombroso
ver como nos deixamos ir tão rapidamente ao menor afago que nos é dispensado.”
Destaquei esses dois trechos
porque são atemporais. Apesar de eles terem sido escritos há tanto tempo, ainda
fazem eco, em nós.
Quem é o tirano que tiraniza o
povo, conforme o autor? Quem é o povo tiranizado? Somos nós. Somos o tirano que
tiraniza. Somos o povo tiranizado.
Por mais duro que possa parecer,
é preciso compreender que nada, absolutamente nada, nos é dado sem que
algo nos seja tirado. Não se trata de uma posição pessimista sobre a vida, mas
o contrário: por desconsiderarmos o caráter trágico da existência humana
(problemas, angústias, medos, traumas, tristezas, vaidades, orgulho, dores,
dificuldade de relacionamento), por nos alienarmos acerca de quem somos, nos
distanciamos de nós mesmos. E nos distanciando, permitimos a nossa
marginalização e nossa submissão desmedida. E é aí, exatamente aí, que os
tiranos atuam. Eles já perceberam o nosso medo, a nossa vaidade, as nossas
necessidades. E de posse destes preciosos conhecimentos, nos dão aquilo que vão
nos entorpecer, nos adormecer, nos calar, nos tirar de cena, nos alienar. E nos
alienando, não percebemos o quão usados e marginalizados estamos sendo. Ora
somos nós, esses tiranos. Ora são os outros, a quem nos submetemos.
Quando consideramos o caráter
trágico da nossa existência como parte inerente a nós, de forma madura e
consciente, sem que isto nos faça nos tornar descrentes da vida, essa tirania
até existirá, mas teremos mais domínio sobre ela, e, portanto, seremos menos
suscetíveis aos estragos que ela provoca porque teremos um pouco mais de
domínio sobre esta subjugação.
Obviamente, não podemos fazer
apenas aquilo de que gostamos, ter a companhia apenas de pessoas agradáveis e
trabalhar, apenas, com quem queremos. Nossa insubordinação não chegaria a
tanto. Mas a reflexão que proponho, por meio deste texto, é a de que, por nos
desconhecermos, por nos afastarmos de nós, por termos comprado a ideia de que a
vida tem a obrigação de ser uma sucessão de felicidades para nós, isto tudo
causou e tem causado, em nossas vidas, uma alienação. E esta alienação agrava a
fragilidade que há, em nós. E o que faz uma pessoa alienada e subjugada?
Torna-se manipulável, adestrável. E o pior: adestrada, não vê mais necessidade
na pergunta, no pensar, na construção. Aceita o que vem. O que dão a ela. E
ainda fica feliz com isso. “Viva o Rei!”
A questão não é saber as
respostas. Mas o que perguntar. E só faz perguntas quem não grita “Viva o Rei!”
Perguntar custa, dá trabalho e recusa moedas, medalhas e um quarto de trigo.
Dando “Viva ao Rei!”, nos
tornamos contornados e contornáveis pelos riscos dos outros. Formamo-nos em
fôrmas alheias. Ficamos em filas erradas. Percorremos os sonhos dos outros.
Aceitamos o jugo. Passamos a buscar respostas prontas, receitas, fórmulas e nos
tornamos fãs de pensamentos vazios, de frases feitas e de velhas metodologias
que, apesar de nunca terem funcionado, agora surgem com outros nomes e, de
preferência, em inglês, o que nos faz acreditar ainda mais. Como não pensamos
tanto, porque isso é cansativo e dá trabalho, acreditamos naquele que se diz
pensar por nós, e que sempre quer nos vender algo que nos projetará para o
primeiro da fila. Realmente corremos ao menor afago.
Empresas espalham mesas de sinuca
pelos corredores. Outras possuem salas com paredes rabiscáveis, poltronas
confortáveis e coloridas e pufes espalhados pelo chão. Em outros lugares de
trabalho, massagens são oferecidas na hora do almoço. Ainda em outras,
academias modernas prometem resultados quase imediatos, em quinze
minutos, na hora do almoço (do seu e do meu). Ambientes sendo redesenhados e
vendidos como modernos, ágeis, descontraídos, informais. Alguns entendidos
sobre o assunto dizem que isto traz mais agilidade, criatividade e resultado. O
famoso conceito Work&Play! (trabalhe e divirta-se!)
Os Deuses vendem quando dão.
A lógica grega, tão antiga e trazida por Étienne, novamente ganha espaço,
visibilidade e aceitação, entre nós. O nosso quarto de trigo.
Uma academia eficiente para que
eu não adoeça e, assim, entregue mais. Uma mesa de sinuca para que eu grite
“Viva o Rei!” e ainda diga, “como trabalhar aqui é divertido”! Salas lindas com
paredes e pufes coloridos para que as grades reais passem ilesas.
Massagens durante o almoço para que eu não perceba o peso do meu jugo. Assédios
morais disfarçados de assertividade. Competição desmedida camuflada de
incentivo. Métodos de avaliação subjetivos que medem o número de hoje, e não a minha
trajetória. Aliás, o que importa a trajetória na sociedade que endeusa o
discurso de elevador? A mesma uniformização criticada por Étienne, há
tanto tempo, evidenciada na mesma alienação de hoje.
Os deuses vendem quando dão.
Enquanto achamos que estamos ganhando, estamos vendendo. Esta é a lógica que
há. Enquanto acho que estou ganhando por ter academia no trabalho, vendo minha
saúde para eles. E eles compram. Compram nos dando mais do trigo, mais dos
jogos, mais das medalhas, mais das farsas, mais dos espetáculos. “Viva o
Rei!”
Há sempre um jeito novo, com
verniz diferente, para não percebermos o que nos estão tirando. E
vice-versa.
Não há almoço de graça, já
disse alguém. O que há é a nossa não percepção do que estamos vendendo em prol
de um suposto ganho. Vendemos e não ganhamos. Numa empresa recordista de likes,
há videogames, pebolim e mesas de sinuca disponíveis aos colaboradores. E tudo
isto sendo visto como atrativos. Atrativos de quê, exatamente? Da compra
do nosso intelecto, da compra do nosso silêncio, da compra da nossa ausência de
perguntas. Em uma outra empresa, as paredes são grafitadas e isto é vendido
como “um lugar superlegal e estimulante de se trabalhar”. Em uma outra
empresa (multinacional e de expressiva representatividade no mundo), há um
tobogã no meio do escritório. E quem quiser se aventurar, cairá sobre uma mesa
de sinuca (!). Em outras, os ambientes foram inspirados no Vale do Silício.
Quando vamos entender que aqui não é o Vale do Silício? Vamos aprender com os
outros, mas sem querermos ser os outros. Pode ser? São muitos os exemplos. Em outra
Empresa, redes dividem o espaço, bonecos para treinos de artes marciais e mural
dos sonhos.
Como nos aquece um quarto de
trigo, uma medida de vinho e uma moeda de menor valor. Quem será que sente dó
da gente ao nos ouvir dizer: “Viva o Rei?”
Vendemos por tão pouco o nosso
intelecto. Acreditamos que nos dão, no entanto vendemos e nem percebemos. Iscas
que nos dão e, ingenuamente, caímos. Nem os peixes são tão omissos e ingênuos,
assim. Não mordem as iscas facilmente. Morrem, mas não antes sem lutarem. E
nós?
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento ácido de Shakespeare, que diz: “O
diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém.”
Portanto, desconfie. Questione. Pense.
Ninguém é bonzinho e fraterno ao ponto de fazer tudo pelo nosso bem-estar! Como
somos bons. Os deuses realmente vendem quando dão.
Não digo que nos libertaremos
dos tiranos que há, em nós, e também não digo que nos libertaremos deles, da
ação deles sobre nós. Ainda é uma relação conflituosa. Não podemos ainda nos
libertar. A autonomia e liberdade ainda são valores incompletos, cuja vivência
ainda não podemos desfrutar. Mas, insisto e peço desculpas pela redundância: se
considerarmos a dimensão trágica que há em nós, esta dimensão que é capaz de nos
elucidar, de nos clarear, de nos acordar, de nos fazer abrir as portas para,
finalmente, ouvirmos o que a tristeza, a angústia e o medo querem nos dizer
antes de entrarmos na primeira farmácia que encontrarmos, teremos mais controle
sobre o jugo imposto a nós, teremos mais domínio sobre o porquê do pouco trigo
que nos for oferecido. Se buscarmos conhecer e viver a nossa dimensão trágica,
em companhia de nossas outras dimensões, os tiranos perderão acesso as nossas
linhas, perderão o acesso ao inabitado, em nós. Perceberemos as reais intenções
e o verniz disfarçado que colocam sobre as festas e farsas que fazem para nós.
Conseguiremos construir um certo distanciamento deles, necessário para vivermos
até ser possível nos desvencilharmos deles. Mesmo que ainda seja necessário
conviver e nos submeter a eles, que seja de olhos abertos, lúcidos, precavidos,
prevenidos e cientes da linha que nos divide.
Com esta linha bem dividida,
certamente, as mesas de sinuca e as redes ficarão às moscas. Não as
frequentaremos mais. Os massagistas perderão seus postos. Os pufes ficarão
vazios. O tobogã enferrujará e as paredes coloridas da moda, ah...as paredes,
nelas escreveremos:
“Aqui jaz, um dia, o que foi
“Viva o Rei!”