Para este texto, parto de uma fala popular que diz: “não veja aonde você caiu, mas sim aonde você escorregou.”
Viver é um contínuo exercício. E fazer
exercício é algo cansativo, demorado, requer tempo e disposição e, muitas
vezes, não é prazeroso. Posto isto, o que fazer? Simples. Continuar a fazer.
Exercitar-se é uma necessidade, uma imposição. Sem o exercitar-se, nossas
reformas inerentes e prementes ficarão acumuladas. E quem quer viver sob
acúmulos e sob tapetes?
Saber aonde escorregamos é um destes
árduos exercícios a serem feitos. Dá muito trabalho prestar atenção a estes
pequenos tropeços. É cansativo debruçar-se sobre as pequenas cascas de bananas
que surgem no nosso caminho, ora colocadas, ora surgidas, ora, delicadamente,
colocadas por nós. Banalizamos o escorregão porque a primeira coisa que o
caracteriza é a ausência de importância. Escorregões são como anúncios soltos
numa tela de computador: minimizamos ou fechamos a janela.
Escorregões não possuem uma fisionomia
nítida. São eventos pequenos na nossa dinâmica agenda. São trechos soltos de um
texto sem sentido. São falas soltas de um louco sozinho. Estilhaços de vidros
quebrados em uma casa inabitada, há anos. São aqueles velhos
sentados à mesa, cujas histórias de vida ninguém tem interesse. São berros
ditos na feira, quem os ouve? São como retalhos de uma colcha cheirando a mofo.
Partes de uma foto cujos personagens quem são? São parte do nosso todo. Mas só
o todo, me parece, que tem um tempo de TV.
Mesmo que os escorregões sejam
percebidos, eles serão uns pobres coitados deixados, por nós, à deriva de nós
mesmos, porque outras demandas nos chamam, porque a nossa atenção é limitada, e
será preciso priorizar o que resolveremos. Por qual motivo, então, o exercício
de compreendê-lo, de ouvi-lo e o de anotar as reivindicações que ele nos traz?
Por que investirmos o nosso tempo na compreensão da natureza do escorregão? Pra
quê visitarmos o local aonde escorregamos e conhecermos, melhor, as
características daquele lugar como a vegetação, piso, luminosidade, construção
e arquitetura?
O tempo. “O tempo voa”, alguns dizem.
Por isso, os escorregões esperam. Não há tempo para eles. O tempo voa ou somos
nós, de forma arbitrária, os construtores das asas, no tempo? Desconfio de que
o tempo tem o justo tempo de todo o tempo. Mas como nos fazer entender o básico,
se ainda discutimos as nossas misérias, os nossos privilégios e as nossas promessas
desprezíveis? Os escorregões, portanto, migalhas no nosso caminho, mesmo de
posse de senhas, não são atendidos. “Desculpe-me, o senhor pode voltar
amanhã?”
Triste realidade. Triste construção.
Triste fruto. Ignoramos aquilo que não poderíamos. Quando ouvimos as migalhas,
a probabilidade de compreensão do todo se amplia. Quando ouvimos a criança, a
chance de termos adultos menos adulterados aumenta. Quando paramos e nos
agachamos para recolher a casca de banana que nos fez escorregar, a feira passa
a ter outro significado para nós. O pequeno que nos fez escorregar nos pede
três minutos de diálogo. Como desprezamos os minutos solicitados, cederemos horas,
mais tarde. E sem escolhas.
Educados, fomos, para darmos atenção
aos grandes eventos, aos grandes acontecimentos. Aos elefantes lentos do
caminho. Educados, não fomos, para silenciarmos diante de uma carreata de
formigas, e estudarmos o trajeto e construção. O silêncio incomoda porque
questiona. A fala ocupa espaços ociosos e nos exime de perguntas.
Escorregões são silenciosos. Quedas
são barulhentas. Escorregamos, levantamos, disfarçamos e fingimos que o céu
continua a nosso favor. O parar não nos pertence. Caímos, não levantamos. E se
levantamos, todos percebem, não há como disfarçar uma queda. O céu testemunhará
a nossa queda. O parar será obrigatório. Acumulamos tantos cansaços, que
deixamos, há tempos, de observar o nosso terreno movediço, pouco firme,
instável. E como não o percebemos, ele mesmo tratará de nos transportar do
escorregão para a queda. Triste realidade. Triste construção. Triste fruto.
As cascas de banana que nos fazem
escorregar não são irrelevantes. Mas as tratamos como tais. Elas significam o
diagnóstico de algo aprofundado que, se humilde fôssemos, ouviríamos. Tratamos
as cascas como frutos de uma distração boba de domingo à tarde, mas são a brecha
por onde se anuncia a nossa obra ainda não iniciada, mas já atrasada.
Nossas escolhas nos têm feito perder
de vista a clareza da obrigatoriedade de darmos a seta para mudarmos de faixa,
na estrada. Elementos nos ocupam indevidamente. Nossas agendas lotadas, por
nós, pelo outro, pelo presente e pelo ausente, não permitem lacunas para
estudarmos os nossos escorregões. As quedas, portanto, serão inevitáveis. Não
se trata de determinismo, mas de observarmos os movimentos naturais da vida.
Achamos que podemos com a vida. É uma luta indigna. Sempre perderemos.
Enquanto isso, enquanto a briga
acontece lá dentro e aqui fora, vamos nos perdendo em gestos escassos e
perdidos que se mecanizam sob a nossa autorização insistente. Os incômodos que
deveriam nascer desta insistência, desta autorização insistente, não
apareceram. Portanto, vamos nos ajeitando no chão, porque a estada será longa,
com requisitos bem claros de continuidade, de abismos e de sucessivas quedas e
de desmoronamentos. Tem sido nossa escolha e prática, ou não? De uma coisa
podemos estar certos: a de que a nossa construção tem identidade.
Nossas sucessivas quedas e
desmoronamentos são resultado do esvaziamento dos sentidos. Sentidos ocos: eis
a crônica da vida inexata. Queremos andar firmes, sem quedas, sem escorregões,
escondendo as nossas manchetes descascadas, mas não queremos exercitar as
pernas, as flexões são terríveis. Há todo um discurso e uma narrativa para o
não fazer.
Não há experiência sem escorregão. Não
há vivência sem queda. Somente os adeptos da autoajuda acreditam na pureza e na
linearidade dos caminhos, que não existem. Mas há discursos prontos, cujo
rompimento com eles é imprescindível. Acreditar nisso, inclusive, ajuda a tapar
as nossas vistas para os escorregões, e a termos sérias dificuldades para
dobrarmos as nossas esquinas e a enxergarmos o solo sobre o qual pisamos. É
preciso, portanto, atenção e ação aos temas que exigem a nossa proximidade. A
responsabilidade é nossa.
Quero encerrar este texto, mas não a
reflexão, com dois pensamentos de LUDWIG MIES VAN DER ROHE, renomado
arquiteto alemão do século XIX, que diz:
“Deus está nos detalhes” e
“A arquitetura começa quando você
junta dois tijolos com cuidado. Aí ela começa”.
Nos dois lindos pensamentos, há a
presença daquilo que é pequeno, daquilo que te prepara para a vida. “Deus está
nos detalhes” como sinônimo de prestar e dedicar atenção ao mínimo, ao pequeno,
à voz baixa, ao sinal breve, ao que te revelará o relevante. E em “a
arquitetura começa quando você junta dois tijolos com cuidado” porque dois
tijolos, assim como um escorregão, não fazem a construção toda, mas são o que
te prepara, o que te chama, o que anuncia, o que diagnostica. Se juntarmos dois
tijolos com cuidado, a chance de a obra sair bem feita será grande. A obra é
resultado da disposição dos tijolos. Somos obras dos diálogos propostos pelos
escorregões. As conquistas, de quaisquer naturezas, apenas nascem em solos
trabalhados, áridos, duros, ásperos, não tenhamos ilusões de maciez na
construção.
Tijolos são o início, o detalhe cujo
espaço está Deus, o diálogo de três minutos, a ponte, um traço firme no papel
roto e gasto. Tijolos somem após a pintura, mas não podemos ignorá-los.
Escorregões são facilmente disfarçados por nós, mas eles existem porque
antecederam as nossas quedas inevitáveis. Também não podemos ignorá-los.
Esta é a crônica da vida. Da nossa
vida. Da minha e da sua.