Alguém, algum dia disse, que
perdoar era fundamental. Parece que continua assim. Mas como nosso perdão é
temperamental, o assim se tornou “não é bem assim.”
O perdão, para ser autêntico,
precisa sair do peito. Não de outro lugar. Neste lugar do idêntico, e não do
parapeito, para nossas lágrimas enxugar. É
preciso coragem para perdoar. Alguém, algum dia disse.
Alguém, algum dia disse, que o
humilhado seria exaltado. Se assim não fosse, outro jeito a vida daria. Mas não
um jeito cansado e de pouco espaço. Um jeito que só a vida saberia.
Um caminhar mais leve, de menos
percalços, porque já vamos descalços. Anteveria a nossa matéria. E com pés
breves, nos compassos, tiraríamos a nossa barriga da miséria. É preciso coragem para perdoar. Alguém, algum
dia disse.
Alguém, algum dia disse, que o
vago deve lugar ao sensato. E que os literatos nem sempre são cultos. Mas o
silêncio do espaço preenche saliências do abstrato. Nossos autorretratos seguem
soltos e preenchidos de insultos. Os nossos pedaços esgotados, a todo momento
são consertados pelo dia. Régua e compasso são as ferramentas preferidas.
Um criar de espaços para o passar
do discernimento que, alheio à noite, evidencia. Na promessa do compasso, um
compromisso com ausências redimidas. É
preciso coragem para perdoar. Alguém, algum dia disse.
Alguém, algum dia disse, que a
nossa memória nos obriga a buscar as nossas vitórias. Assim fica mais fácil
perdoar. Pode ser. Mas que não seja uma memória compulsória, mas com história.
Assim também fica mais fácil para desatordoar o que vai no nosso ser. Acho que
assim pode ser. Com amadurecer.
Realçamos o belo para que
possamos ser a nossa própria paisagem, como disse Fernando Pessoa. Poeta
imprescindível que também disse “não sei sentir-me onde estou.” O belo que
fortalece o elo. A defasagem que nos impede de ver a nossa paisagem. Quem
somos. Pessoas, assim como o Poeta que carrega, no nome, outras tantas pessoas.
Um recado inconfundível que nos contradisse porque se manifestou. É preciso coragem para perdoar. Alguém,
algum dia disse.
Alguém, algum dia disse, que
aquele que perdoa evidencia grandeza interior. Aprende a sorrir de improviso. Se
perdoa, mas não atordoa, mostra que a profundeza, que até então, era inferior,
está voltando, calma, para o nosso mar interior. Um interferir conciso e
preciso.
Nas pancadas que recebemos do
alto de nossas bancadas, engatinhamos as nossas invenções manuseadas, e
chegamos ao nosso destino a todo o momento. E das nossas arquibancadas
desbancadas, inventamos outras colorações custeadas. Sem clandestino e sem
procrastino. Provimentos da vida por ironias do destino. É
preciso coragem para perdoar. Alguém, algum dia disse.
Alguém, algum dia disse, que
perdoar era fundamental. Será que quem disse isso acreditou no que disse? Ou só
foi lorota de um contador de histórias para enganar os desavisados? Como se
despedisse, me disse, antes de seguir, que perdoar era o doar na sua essência.
Genial. Quem assim segue, me disse, desconhece a derrota e não se torna um
enganador de trajetórias para profanar os lesados.
Ensinados, fomos, que para
resolver problemas é preciso se preocupar com eles. Isto só reforça a nossa
angústia e a nossa ansiedade. Coisas que
desconhecemos. Estagnados, somos, que para dissolver estes dilemas,
sofremos por causa deles. Isto só reforça a nossa fúria sem piedade. Coisas que esquecemos. É preciso coragem para perdoar. Alguém, neste
dia disse.
E num intervalo de prosa, esse alguém me disse, ainda, em tom
certeiro:
“eleve a sua assiduidade na vida.
Ela aumentará os intervalos entre os seus pensamentos desgovernados. E será
nestes intervalos, nestas brechas que a sabedoria estará te esperando para
recompor a tua intuição com a tua essência, elementos fundamentais para o perdão.
Condição você tem, mas é preciso coragem.” Depois disto, aquele alguém se
calou.
Neste dia, descobri que este
alguém era eu mesma, você mesmo. Todos nós. Este alguém era apenas um eco tentando fazer voz e ser ouvido dentro de
mim, dentro de cada um de nós.
Reconheci-me na minha própria voz. Mas para ser ouvida, precisou se
camuflar de mim mesma. Buscamos inimigos externos enquanto os internos crescem
e tecem raízes.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pequeno trecho de uma estrofe do poema O guardador de rebanhos, de Fernando
Pessoa, que diz:
“...como um ruído de chocalhos,
para além da curva da estrada...”.
Fernando Pessoa está sempre além
do que vem.
A vida nos convida ao perdão o
tempo todo. Um perdoar para um caminhar mais leve. Quando não ouvimos o
primeiro sinal que ela nos envia, a vida dá conta de nos mandar um ruído de chocalhos. Porque é somente por
meio do perdão que poderemos fazer a curva, que poderemos enxergar o restante
do caminho ainda a ser percorrido. É preciso ouvir o sinal. Mesmo que seja por
meio de ruídos de chocalhos...
A estrada é longa, o caminho é
cheio de pedras e de pedregulhos. O perdão é uma das ferramentas que nos
estende a mão e facilita, e muito, a nossa caminhada e o nosso encantamento pelo
porvir e pelo nosso presente. Ele antecede a curva. Não poderemos acessá-la, e
nem irmos além dela, sem antes abrirmos a porta para o perdão. É uma condição.
A curva nos constrói, nos remonta
e descortina os nossos cursos. A estrada além da curva é árdua, mas com vistas
lindas para aqueles que ousarem percorrê-la. Os caminhos retos e planos nos
enfraquecem e nos tornam seres manipuláveis. Para os caminhos retos, nada será
necessário fazer. Apenas o mais do mesmo e o pisar sobre as flores será o
suficiente. Mas para o avançar na nossa estrutura, para o abrir de olhos, a
curva é o sentido único da estrada. Mas podemos passar por ela com mais
serenidade se aceitarmos os atalhos que a vida nos oferece.
Os atalhos da vida são válidos e verdadeiros. Os que criamos são
tendenciosos e insustentáveis, muitas vezes. Um dos atalhos da vida é o
perdão, que nos espreita logo à entrada da estrada, bem na curva, apenas
esperando ouvir os nossos passos para uma caminhada cuja presença confirmamos. Nesta
hora, os nossos sorrisos não serão mais improvisados. Serão verdadeiros,
destemidos e autênticos. O ruído dos chocalhos nos chamando para além da curva na estrada será
apenas uma lembrança. Teremos vencido a curva e a estrada. Uma depende da
outra. Nesta hora, teremos descoberto que a curva e a estrada fazem parte do
mesmo caminho. São o mesmo caminho. O
poema de Pessoa terá envelhecido
porque teremos conquistado o direito de “saber sentir-nos onde estamos.”
Saberemos, enfim, onde estamos. Mas esta provocação que ele nos faz
jamais envelhecerá.