segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A felicidade desbotada

Desbotar é perder a vivacidade, a vida. Óbvio dizer que algo vivo pode se perder e desbotar. Perder a vida. Morrer. No entanto, exatamente, por ser óbvia, essa sutileza passa como uma leve brisa por nós. Enquanto a brisa está passando, provavelmente estamos verificando a última mensagem urgente que nos chegou. Por isso, não percebemos a brisa. Não há como fazermos duas coisas ao mesmo tempo. Podemos até tentar, mas uma sempre será prejudicada em detrimento da outra. Ou até mesmo as duas serão prejudicadas se tentarmos dividir a nossa atenção. Ou percebemos a brisa ou verificamos a mensagem. Parece claro qual tem sido a nossa escolha.

Não me refiro ao desbotamento da cor de uma peça de roupa, tampouco à cor do nosso tênis. Este é um desbotar natural de algo usado e que teve a utilidade concluída. Não há como algo material permanecer. A característica da matéria é a impermanência. Portanto, usamos e respeitamos o tempo concluído da peça. O desgaste natural faz parte daquele que foi usado.

Refiro-me a um desbotamento moral que cresce, em nós, a cada dia. Digo que cresce porque penso que ele sempre existiu e sempre fez parte de quem somos. A única diferença é que agora possuímos mais ferramentas que nos ajudam a dar visibilidade a este desbotamento moral, que faz questão de tirar, à força, a cor daquilo que quer viver, que quer existir.

imagem tirada da internet

Um destes desbotamentos morais que nos visita (ou nos revisita?) é o marcar de hora para a felicidade. A nossa triste insistência em obrigá-la a bater ponto em nossas vidas.

Um desbotar natural: de uma roupa usada, de um sapato velho, de uma cortina desgastada. Um desbotar certo, equilibrado e que constitui o que é. Um desbotar natural que vem do uso, da vida que se fez e que se faz. Um desbotar indiscutível.

Um desbotar provocado: de uma felicidade que deveria ser compreendida, buscada e conquistada. Um desbotar triste, desequilibrado, desviado e que não constitui porque não vê. Um desbotar que somente existe porque desbotamos, tiramos o viço e a cor ao não observarmos as regras da etiqueta, para a lavagem. Triste desbotar: a cor havia. Era só nos aprofundar naquele colorar da vida, naquele avivar, naquela aquarela a nosso favor.

Algo que perde a vivacidade por obra da natureza não virá na nossa fatura. Algo vivo que perdeu a vida por obra nossa, porque resolvemos alterar as cores da aquarela, será posto, delicadamente, na nossa fatura. Um desbotar provocado porque insistimos em habitar Terras que não temos ajudado a construir. Mas a vida insiste em nos convidar para uma construção de Terras nas quais podemos habitar. Quando aceitarmos este convite, nossas cores serão vivas, nossas aquarelas respeitadas e o desbotar será apenas um reservatório morto.

Forçamos a felicidade a nos preencher. Forçamos a felicidade a ser a nossa narrativa de vida. Ocupamos cada vez mais os espaços externos, e impomos a nossa voz ao outro para forçá-lo a acreditar que somos felizes o tempo todo. E vice-versa. Estamos sempre bem e felizes. Os risos e os sorrisos se proliferam feito bactérias tristes a procura de estatus.

Perseguimos a felicidade como um bem de consumo. Uma commodity. A felicidade não pode ser perseguida, mas conquistada. Ela é um trajeto, e não uma chegada. Nem sabemos, ao certo, o conceito dela, que dirá tê-la. Uma presunção que sempre existiu, penso, mas que hoje se exacerba porque temos um poderoso ferramental que nos permite mentir, fingir, fazer de conta. Enquanto dizemos aos outros que somos felizes o tempo todo, os outros acreditam porque também acham que acreditamos que eles são felizes o tempo todo. Uma retroalimentação doente, cega, que reafirma a desconexão com os nossos ciclos, com as nossas verdades, com a gente.

É genuíno buscarmos a felicidade. É genuína a nossa vontade de desejarmos a felicidade. Obrigá-la a fazer parte de nossas vidas é doentio. Forçá-la a fazer parte de nossos saraus é alienante, e nos distancia do caminho que há tempos nos desviamos. Buscar a felicidade, acreditar nela e saber que temos momentos de felicidade é reavivar as cores da nossa linda palheta, e não permitir o triste desbotar de algo que não nasceu para desbotar. Insistir na felicidade como obrigatória e como lugar no qual não estamos é acreditar que somos felizes o tempo todo, é apagar a nossa cansada palheta, e permitir o desbotamento daquilo que nasceu para o aprimorar das cores.

A felicidade é uma conquista. Não está à venda. Pelo menos ela não tem preço.

Se somos o tempo todo felizes, como insistimos em dizer nos palcos da vida, aonde desaguaremos a nossa fúria, a nossa ansiedade, a nossa frustração, a nossa tristeza, nossas neuroses, incongruências e desvios? E, principalmente, a quem delegar as nossas irrelevâncias? Somos irrelevantes, em certa medida. Por isso, insistimos na falsa existência de uma suposta felicidade. Uma felicidade arredia. Cansada. Desbotada.

Por que a tristeza precisa ser disfarçada? Por que perdemos esta dimensão trágica da vida? Obviamente que a vida possui outras dimensões, mas imprescindível aceitar a tristeza como constituinte de quem somos.  Por que o trágico não pode conjugar mais no nosso espaço?

Somos todos felizes. Somos todos sorrisos e realizações. Somos todos plenos e resilientes. A felicidade é uma constante em nossas vidas. Somos felizes no trabalho. Nossos problemas têm solução. Somos capazes de tudo, basta querermos. Revelar um pequeno traço triste nos torna fracassados, impotentes. Dizer sem ânimo nos caracteriza seres fracos. Falar sobre os nossos problemas nos torna pessoas pessimistas a serem evitadas. A triste literatura de autoajuda é singular em dizer “que devemos nos afastar dos pessimistas” e que “basta um pensamento positivo para sermos quem almejamos ser”. Pensamento positivo? Que escola de mágica é essa que ensina o desserviço de acreditar que na vida são somente flores e mares calmos?

Aonde nos perdemos?

Não se trata de uma ode à infelicidade, à amargura e à desesperança. Pelo contrário: um acolher do que dói em nós, do que evoca ecos no nosso coração, do que camufla nossas vozes, do que força sorrisos quando, na verdade, queremos chorar. Por que o choro perdeu tanto espaço num mundo que se medica tanto? Por que tantas farmácias nascem em esquinas mortas enquanto livrarias fecham? Não seria este um diagnóstico choroso do que é? Sem julgamentos. Apenas um diagnóstico do que se vê antes e depois da janela.

Temos excessos de demandas que criam padrões inatingíveis. Queremos chegar a lugares que, sequer, há rotas. A presunção nossa. A vaidade, uma companheira lúcida.

Desbotamos, por isso embotamos. Embotamos, por isso desbotamos.

A felicidade é algo que não se avalia. Não se compra. Não se mede. Não se insiste. Não se pede. Não se apropria. Mas parece que temos feito o contrário: de tão perseguida, ela tem sido reflexo do menosprezo e do que tem ficado para segundo plano, em nossas vidas. O culto a ela, a competição estimulada por meio de marketing, conduz, muitas vezes, à ampliação deste desbotamento. Nosso embotamento moral tem respingado cores apagadas na nossa felicidade que poderia ser mais. Cultuamos falsos deuses. Competimos com o outro e não conosco. Buscamos somente estradas percorridas. Criamos morros. Insistimos em colocar o outro no final das fileiras enquanto furamos filas. Como não desbotarmos? Como não perdermos nossas cores vivas? Como não cansarmos a vida?

Penso que uma possível saída, se é que queremos uma saída, seja o reaprendizado da nossa convivência com o pesado de nós, a nossa dimensão do trágico, do triste, do inatingível, do inacessível, do escuro, como já disse. Como atingir a felicidade se não quero ouvir o que os tristes, em mim, dizem? Como atingir plenitude sem convidar meus fantasmas para um chá honesto e cordial? Como sorrir sem me interessar pelo motivo dos meus sorrisos forçados? Como sentir a leveza da felicidade sem conhecer o que tem contribuído para o nosso naufrágio?

Estamos imóveis frente a nossa desestruturação. A gente apostou fichas altas e muitas fichas em fantasmas e em vazias esquinas. Agora os fantasmas vivem. As esquinas criam vida. E agora, José? Drummond não está mais aqui para nos ajudar.

Enfim, aquilo que favorece a nossa domesticação não contribui. É preciso fazermos as pazes com as nossas dimensões trágicas. Conquistaremos realidades com mais fontes livres e fortes que ampliarão o nosso repertório de vida, livre de desbotamentos. A dimensão trágica da nossa existência nos reorienta. É importante receber nãos. Eles nos reorientam e nos fazem enxergar a placa de retorno que, há tempos, não percebemos mais.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Dostoiévski, filósofo russo do século XIX, que diz: “é preciso encher as nossas medidas”.

Penso que nossas medidas serão preenchidas se não nos ausentarmos de nós. Temos estado muito ausentes de nós buscando conhecer realidades que não são nossas. É preciso aprender sobre nós, sem imposições, sem customizações, sem compras fáceis de felicidade no mercadinho perto de casa. Impormos limites ao amadorismo e à vaidade sobre uma felicidade estática, pronta, atingível. Felicidade é construção. Obra inacabada. Assim como nós.

A gente tem estado muito ocupado fazendo concessões desnecessárias, atendendo a tudo e a todos. Estamos muito disponíveis, sempre online. Por isso, desbotamos. Vamos dormir um pouco. Desligar um pouco. Rever nossas palhetas. As cores pedem o nosso olhar.  Para isso, será preciso mapear se ainda há terrenos livres e virgens, em nós, e irmos para estes lugares.

Não há fórmulas, não há certezas, não há conclusões. Apenas caminhos. E são muitos.