Desbotar é
perder a vivacidade, a vida. Óbvio dizer que algo vivo pode se perder e
desbotar. Perder a vida. Morrer. No entanto, exatamente, por ser óbvia, essa
sutileza passa como uma leve brisa por nós. Enquanto a brisa está passando,
provavelmente estamos verificando a última mensagem urgente que nos chegou.
Por isso, não percebemos a brisa. Não há como fazermos duas coisas ao mesmo
tempo. Podemos até tentar, mas uma sempre será prejudicada em detrimento da
outra. Ou até mesmo as duas serão prejudicadas se tentarmos dividir a nossa
atenção. Ou percebemos a brisa ou verificamos a mensagem. Parece claro qual
tem sido a nossa escolha.
Não me refiro ao
desbotamento da cor de uma peça de roupa, tampouco à cor do nosso tênis. Este é
um desbotar natural de algo usado e que teve a utilidade concluída. Não há como
algo material permanecer. A característica da matéria é a impermanência.
Portanto, usamos e respeitamos o tempo concluído da peça. O desgaste natural
faz parte daquele que foi usado.
Refiro-me a um
desbotamento moral que cresce, em nós, a cada dia. Digo que cresce porque penso
que ele sempre existiu e sempre fez parte de quem somos. A única diferença é
que agora possuímos mais ferramentas que nos ajudam a dar visibilidade a este
desbotamento moral, que faz questão de tirar, à força, a cor daquilo que quer
viver, que quer existir.
imagem tirada da internet
Um destes
desbotamentos morais que nos visita (ou nos revisita?) é o marcar de hora para
a felicidade. A nossa triste insistência em obrigá-la a bater ponto em
nossas vidas.
Um desbotar
natural: de uma roupa usada, de um sapato velho, de uma cortina desgastada. Um
desbotar certo, equilibrado e que constitui o que é. Um desbotar natural que
vem do uso, da vida que se fez e que se faz. Um desbotar indiscutível.
Um desbotar
provocado: de uma felicidade que deveria ser compreendida, buscada e
conquistada. Um desbotar triste, desequilibrado, desviado e que não constitui porque
não vê. Um desbotar que somente existe porque desbotamos, tiramos o viço e a
cor ao não observarmos as regras da etiqueta, para a lavagem. Triste desbotar:
a cor havia. Era só nos aprofundar naquele colorar da vida, naquele avivar,
naquela aquarela a nosso favor.
Algo que perde a
vivacidade por obra da natureza não virá na nossa fatura. Algo vivo que perdeu
a vida por obra nossa, porque resolvemos alterar as cores da aquarela,
será posto, delicadamente, na nossa fatura. Um desbotar provocado porque insistimos
em habitar Terras que não temos ajudado a construir. Mas a vida insiste em nos
convidar para uma construção de Terras nas quais podemos habitar. Quando
aceitarmos este convite, nossas cores serão vivas, nossas aquarelas respeitadas
e o desbotar será apenas um reservatório morto.
Forçamos a
felicidade a nos preencher. Forçamos a felicidade a ser a nossa narrativa de
vida. Ocupamos cada vez mais os espaços externos, e impomos a nossa voz ao
outro para forçá-lo a acreditar que somos felizes o tempo todo. E vice-versa. Estamos
sempre bem e felizes. Os risos e os sorrisos se proliferam feito bactérias
tristes a procura de estatus.
Perseguimos a
felicidade como um bem de consumo. Uma commodity. A felicidade não pode
ser perseguida, mas conquistada. Ela é um trajeto, e não uma chegada. Nem
sabemos, ao certo, o conceito dela, que dirá tê-la. Uma presunção que sempre
existiu, penso, mas que hoje se exacerba porque temos um poderoso ferramental
que nos permite mentir, fingir, fazer de conta. Enquanto dizemos aos outros que
somos felizes o tempo todo, os outros acreditam porque também acham que
acreditamos que eles são felizes o tempo todo. Uma retroalimentação doente, cega,
que reafirma a desconexão com os nossos ciclos, com as nossas verdades, com a
gente.
É genuíno
buscarmos a felicidade. É genuína a nossa vontade de desejarmos a felicidade.
Obrigá-la a fazer parte de nossas vidas é doentio. Forçá-la a fazer parte de
nossos saraus é alienante, e nos distancia do caminho que há tempos nos
desviamos. Buscar a felicidade, acreditar nela e saber que temos momentos de
felicidade é reavivar as cores da nossa linda palheta, e não permitir o
triste desbotar de algo que não nasceu para desbotar. Insistir na felicidade
como obrigatória e como lugar no qual não estamos é acreditar que
somos felizes o tempo todo, é apagar a nossa cansada palheta, e permitir o
desbotamento daquilo que nasceu para o aprimorar das cores.
A felicidade é
uma conquista. Não está à venda. Pelo menos ela não tem preço.
Se somos o tempo
todo felizes, como insistimos em dizer nos palcos da vida, aonde desaguaremos a
nossa fúria, a nossa ansiedade, a nossa frustração, a nossa tristeza, nossas
neuroses, incongruências e desvios? E, principalmente, a quem delegar as nossas
irrelevâncias? Somos irrelevantes, em certa medida. Por isso, insistimos na
falsa existência de uma suposta felicidade. Uma felicidade arredia. Cansada.
Desbotada.
Por que a
tristeza precisa ser disfarçada? Por que perdemos esta dimensão trágica da
vida? Obviamente que a vida possui outras dimensões, mas imprescindível aceitar
a tristeza como constituinte de quem somos. Por que o trágico não pode conjugar mais no
nosso espaço?
Somos todos
felizes. Somos todos sorrisos e realizações. Somos todos plenos e resilientes.
A felicidade é uma constante em nossas vidas. Somos felizes no trabalho. Nossos
problemas têm solução. Somos capazes de tudo, basta querermos. Revelar
um pequeno traço triste nos torna fracassados, impotentes. Dizer sem ânimo nos
caracteriza seres fracos. Falar sobre os nossos problemas nos torna pessoas
pessimistas a serem evitadas. A triste literatura de autoajuda é singular em
dizer “que devemos nos afastar dos pessimistas” e que “basta um pensamento
positivo para sermos quem almejamos ser”. Pensamento positivo? Que escola de
mágica é essa que ensina o desserviço de acreditar que na vida são somente
flores e mares calmos?
Aonde nos
perdemos?
Não se trata de
uma ode à infelicidade, à amargura e à desesperança. Pelo contrário: um acolher
do que dói em nós, do que evoca ecos no nosso coração, do que camufla nossas
vozes, do que força sorrisos quando, na verdade, queremos chorar. Por que o
choro perdeu tanto espaço num mundo que se medica tanto? Por que tantas
farmácias nascem em esquinas mortas enquanto livrarias fecham? Não seria este
um diagnóstico choroso do que é? Sem julgamentos. Apenas um diagnóstico do que
se vê antes e depois da janela.
Temos excessos
de demandas que criam padrões inatingíveis. Queremos chegar a lugares que,
sequer, há rotas. A presunção nossa. A vaidade, uma companheira lúcida.
Desbotamos, por
isso embotamos. Embotamos, por isso desbotamos.
A felicidade é
algo que não se avalia. Não se compra. Não se mede. Não se insiste. Não se
pede. Não se apropria. Mas parece que temos feito o contrário: de tão
perseguida, ela tem sido reflexo do menosprezo e do que tem ficado para segundo
plano, em nossas vidas. O culto a ela, a competição estimulada por meio de marketing,
conduz, muitas vezes, à ampliação deste desbotamento. Nosso embotamento moral tem
respingado cores apagadas na nossa felicidade que poderia ser mais. Cultuamos
falsos deuses. Competimos com o outro e não conosco. Buscamos somente estradas
percorridas. Criamos morros. Insistimos em colocar o outro no final das
fileiras enquanto furamos filas. Como não desbotarmos? Como não perdermos nossas
cores vivas? Como não cansarmos a vida?
Penso que uma
possível saída, se é que queremos uma saída, seja o reaprendizado da
nossa convivência com o pesado de nós, a nossa dimensão do trágico, do triste,
do inatingível, do inacessível, do escuro, como já disse. Como atingir a
felicidade se não quero ouvir o que os tristes, em mim, dizem? Como atingir
plenitude sem convidar meus fantasmas para um chá honesto e cordial? Como
sorrir sem me interessar pelo motivo dos meus sorrisos forçados? Como sentir a
leveza da felicidade sem conhecer o que tem contribuído para o nosso naufrágio?
Estamos imóveis
frente a nossa desestruturação. A gente apostou fichas altas e muitas fichas em
fantasmas e em vazias esquinas. Agora os fantasmas vivem. As esquinas criam
vida. E agora, José? Drummond não está mais aqui para nos ajudar.
Enfim, aquilo
que favorece a nossa domesticação não contribui. É preciso fazermos as pazes
com as nossas dimensões trágicas. Conquistaremos realidades com mais fontes
livres e fortes que ampliarão o nosso repertório de vida, livre de
desbotamentos. A dimensão trágica da nossa existência nos reorienta. É
importante receber nãos. Eles nos reorientam e nos fazem enxergar a placa de
retorno que, há tempos, não percebemos mais.
Quero encerrar
este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Dostoiévski,
filósofo russo do século XIX, que diz: “é preciso encher as nossas medidas”.
Penso que nossas
medidas serão preenchidas se não nos ausentarmos de nós. Temos estado muito
ausentes de nós buscando conhecer realidades que não são nossas. É preciso
aprender sobre nós, sem imposições, sem customizações, sem compras fáceis de
felicidade no mercadinho perto de casa. Impormos limites ao amadorismo e à
vaidade sobre uma felicidade estática, pronta, atingível. Felicidade é
construção. Obra inacabada. Assim como nós.
A gente tem
estado muito ocupado fazendo concessões desnecessárias, atendendo a tudo e a
todos. Estamos muito disponíveis, sempre online. Por isso, desbotamos. Vamos
dormir um pouco. Desligar um pouco. Rever nossas palhetas. As cores pedem o
nosso olhar. Para isso, será preciso
mapear se ainda há terrenos livres e virgens, em nós, e irmos para estes
lugares.
Não há fórmulas,
não há certezas, não há conclusões. Apenas caminhos. E são muitos.