O artigo definido “a”, no título,
significa que não desejo falar sobre uma vaidade genérica, aquela inerente ao
humano e que, mesmo que haja um esforço forte de nossa parte, não nos
livraremos dela por ser parte de nós. Esta vaidade é conhecidíssima de todos
nós. Para quê apresentações? Nascemos com ela. Morreremos com ela. Uns com
graus maiores que outros. A realidade é que ela será (e tem sido) a nossa
mestra em muitos passos do solo que construímos. Desejo, no entanto, falar
sobre a vaidade construída por nós, aquela que nos esforçamos,
diariamente, para aprimorá-la. Não sobre a vaidade institucionalizada, mas
sobre a minha e a sua, particularmente. A nossa. A vaidade que tem, portanto,
endereço certo: nós.
Somos todos parecidos na
vaidade. Ela nos reconhece. Ela é minha e de cada um de nós.
A vaidade institucionalizada,
aquela que todos sabem que todos têm, não nos afeta tanto. É algo tão abstrato
em nós que nem nos damos ao trabalho de compreendê-la. Faz parte do humano e
aceitamos isso. É como se uma tinta de normalidade colorisse a vaidade para que
ela passasse por nós como velha conhecida, que realmente é. No entanto, a
vaidade construída por nós é aquela sabida e percebida. Os outros podem
até demorar um pouco para perceberem os efeitos desta vaidade. A gente, não. A
percepção é imediata. Sabemos o que estamos fazendo. Sabemos tanto que até
disfarçamos a nossa vaidade de humildade ou de modéstia. “Imagina”, dizemos,
quando recebemos algum elogio ou consideração sobre algo. No fundo, lá no
fundo, bem no fundo, inchamos. E o nosso inchaço diminui o tamanho que
poderíamos ter, se houvesse espaços, em nós, para crescimentos reais.
Crescimentos reais nos tornam
e nos formam. Inchaços criam edemas e nos deformam. Mário Quintana, o
grande poeta, dizia que a modéstia é a vaidade escondida atrás da porta. Sábio.
O difícil é querermos arrastar as nossas portas e identificarmos o que há por
detrás delas.
O que restaria de nós e em nós, por
exemplo, se não fôssemos vaidosos? Difícil dizer.
Sentimos uma vaidade imensa
quando aquele que não nos conhece diz que somos humildes. O
contraditório em nós. Se realmente fôssemos, não nos envaideceríamos. Apenas
nos envaidecemos porque ainda somos incompletos, inconclusos, rasos e queremos,
forçosamente, que o olhar do outro nos perceba e nos coloque sobre patamares
cujo espaço ainda não merecemos e não nos esforçamos para tal. A vaidade
construída, além da natural que temos, é aquela que força uma posição de
destaque, mas que procura disfarçar para não dar tanto na vista. É aquela que
nos alimenta. É aquela que estabelece uma relação de cumplicidade conosco
porque também a alimentamos por meio das nossas incongruências diárias e
arrogâncias inofensivas. Que são muitas!
A vaidade construída por nós nos
completa, nos preenche e nos traz falas que nos tiram de situações
constrangedoras como o silêncio que nos foi imposto pela vida, por exemplo. A
vida, tão invasiva como ela sabe ser, nos impõe silêncios ao longo da nossa
existência. Cobra-nos respostas, atitudes e construções que há tempos atrasamos
a entrega. Nem mesmo os tijolos compramos. É quando a vaidade nos acessa e nos
salva por meio de respostas prontas e discursos comprados. Ela ajuda a criar
movimentos que confundem a própria vida dando a impressão de que estamos agindo.
Mas não estamos. Estamos, apenas, sendo vaidosos e esperando a vida se esquecer
da gente e nos deixar em paz com as nossas obras inacabadas, solos inférteis e
uma completa ausência de compreensão acerca de nós mesmos.
Do latim vanus, a
vaidade significa “vazio, ocioso”. Ou seja, além de sermos vazios e ociosos por
natureza, uma vez que a vaidade institucionalizada nos pertence, intensificamos
este vazio e esta ociosidade por meio das nossas ausências em nós, por meio das
nossas futilidades que nos dizem, a todo o momento, como somos imprescindíveis.
Ainda não compreendemos o espaço que nos pertence porque invadimos o do outro.
Isto é vaidade. Ainda temos problemas de relacionamento porque o outro está
sempre errado, enquanto eu estou sempre certa. Isto é vaidade. Ainda somente
nós falamos e o outro somente escuta. Isto é vaidade. Ainda temos sérios
problemas com limites porque invadimos o do outro. Isto é vaidade. Ainda
entramos em campo sem objetivos porque somos, somente, um número. Isto é
vaidade. Ainda falamos apenas para ocuparmos espaços que não nos pertencem, e,
consequentemente, retiramos o espaço do outro. Isto é vaidade.
Temos muitas demandas necessárias
que precisariam ser reestruturadas. Acredito que isto reorganizaria as nossas
verdadeiras bases. Contudo, temos tantas demandas desnecessárias, mas atuantes,
que não sobram espaços, em nossas agendas, para este diálogo tão antigo.
A vaidade construída por nós é um
solo cuja plantação tem dado os frutos certos como a violência, a competição, a
falta de senso. Os frutos que crescem fortes porque foram larga e
abundantemente adubados de longas trajetórias coletivas. Há, entretanto, solos
à deriva, a espera de mãos que os lavrem com tempo justo, paciência para a
construção, rigor e completo desprezo às fórmulas prontas cujas receitas
mandamos manipular, baratinho, na farmácia ao lado. Aliás, o que não nos faltam
são farmácias. Muitas. Sua presença em excesso nos traz um certo diagnóstico do
que nos falta. Medicalizamos a dor para não a sentirmos. Isso também é
vaidade. Somos distantes do que poderíamos ser. A teoria distante da prática.
Somos
tão conscientes da nossa vaidade que, como dizia Nietzsche, “a vaidade
alheia só nos é antipática quando vai de encontro a nossa”. Temos um acordo
coletivo: enquanto eu estiver no palco me servindo da minha vaidade, você não
sobe. E vice-versa.
Todos
fazemos parte da mesma problemática. E a vaidade reforça esta nossa condição.
Ela nos afunda e nos torna perdidos em nós mesmos. Não fomos educados para
olharmos para estas nossas pequenezas. Nossas miudezas foram escondidas e
camufladas. Quando crescemos, percebemos que elas estavam escondidas. Mas
estava tudo tão arrumadinho nos porões que não quisemos entrar lá. Somos
alérgicos e, afinal, há tantos outros trabalhos mais importantes a serem
feitos.
Fomos
educados para o destaque, para a briga, para a competição e para buscarmos o
nosso lugar ao sol. Vivemos em guerra porque aprendemos, logo cedo, a
relevância da luta. Não uma luta genuína da gente com a gente, para nos
vencermos. Aprendemos a lutar contra o outro porque ele ocupa lugar demais no
mundo. O avançar dele me interrompe e me ameaça. Por isso, aprendemos técnicas
e ferramentas para interceptá-lo. A estas técnicas e ferramentas chamamos de
protagonismo, proatividade, garra, ironicamente. Tenho dó das palavras que, sem
justos advogados, são usadas ao bel prazer dos desavisados e oportunistas.
Protagonismo
é ter responsabilidade. Bem distante do que divulgamos como sinônimo de vencer
na vida, muitas vezes às custas de interceptar o outro. Proatividade significa
pegar para si o que é preciso ser feito. Bem distante, também, do que fazemos
atropelando o outro e chegando na frente. Chegamos realmente primeiro ou foi
porque o derrubamos lá, atrás? Garra é vencer a si, simples assim. Bem
diferente de sinônimo de guerra.
Estudamos
tantas fórmulas matemáticas e químicas, tivemos de entender o meridiano de Greenwich,
a Trigonometria e memorizar a data na qual chegou, aqui, a família Real, mas
nunca estudamos, pelo menos falo por mim, porque somos vaidosos por excelência
e, pior, porque conseguimos, pela mesma excelência que nos cerca, ampliarmos a
nossa vaidade para a construída, aquela que, conscientemente, fazemos. Ou não?
Tivemos de aprender seno e cosseno, tabela periódica e memorizar a fórmula da
água (que, de longe, é H2O), mas não nos ensinaram a instalar espelhos internos
para enxergarmos, com antecedência, o que a vida nos cobraria. A vida não nos
perguntará quem foi Colombo ou quem foi o primeiro presidente do Brasil, apesar
de sabermos que o conhecimento e a informação são relevantes, mas há coisas que
deveriam ocupar as primeiras cadeiras. Mas ela nos enviará contas a serem pagas
sobre os resultados da nossa vaidade, por exemplo. E como não foi matéria
que cairia na prova, não estudamos. E agora? Como no poema de Drummond,
“E agora, José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou...”
Só
que a vida não imita a poesia de Drummond, e, portanto, vamos precisar
arregaçar as nossas mangas e irmos ao encontro de nós mesmos. Já não é sem
tempo. Quando nos reencontrarmos, nossas vaidades institucionalizada e
construída estarão lá, quietinhas, apenas aguardando serem esquecidas. A
decisão será nossa. “E agora, José?”
É preciso
estarmos inscritos na vida para existirmos. É preciso buscarmos, portanto, as
nossas respostas para o nosso “E agora, José?”
Quero
encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de Balzac,
escritor francês do século XVIII, que diz:
“Deve-se
deixar a vaidade aos que não têm outra coisa para exibir.”
Com
respeito a Balzac, acredito impossível deixarmos a vaidade apenas para os
outros, uma vez que ela é inerente a nós. Além de sermos humanamente egoístas
para não ficarmos com pelo menos um pouquinho da vaidade para nós. No entanto,
se aceitarmos o convite dele para, no mínimo, iniciarmos o trabalho, a vaidade
começará a apagar as luzes, reduzirá o tom árduo do discurso e ocupará lugares
de menos relevância, em nós.
E, finalmente, marcharemos,
como disse, Drummond, na sua poesia José. Um José que sou eu, mas que também é
você. E o outro também. Ou seja, todos nós.