Há alguns dias, a atitude do
jogador do time São Paulo, Rodrigo Caio, ocupou muito espaço nos noticiários
esportivos. Espaço demais. Num determinado momento, quando o juiz penalizava o
jogador do time adversário por meio do cartão amarelo, Rodrigo Caio tomou à
frente e assumiu a responsabilidade do ato. “Fui eu, fui eu”...ele disse. E aí,
o juiz cancelou o cartão amarelo e o jogo seguiu.
Para aqueles que adoram diminuir
as boas atitudes alheias, poderiam dizer: “não sei se ele faria isto se fosse
um jogo decisivo, um clássico, se fosse prejudicar o time”. Pois é, era um jogo
decisivo (não no sentido literal, mas baseado no contexto), era um clássico e o
time do Rodrigo Caio se complicou, e muito, com o resultado desse jogo. Portanto,
para os que adoram desvalorizar a atitude alheia, será preciso buscar outros
argumentos.
Além destas pessoas, pudemos
conhecer e nos identificar com outros grupos de pessoas que surgiram e se
manifestaram sobre este assunto:
- o grupo que entendeu
que o jogador que assumiu a responsabilidade foi um tolo. Afinal, jogo é jogo e
vale tudo para ganhar o campeonato. “Estes erros fazem parte do jogo. Não dá
para você ficar tendo este tipo de atitude como a do Rodrigo Caio. Isto prejudicou
o time. ”
- o grupo que
aplaudiu a atitude do jogador. Este grupo entendeu que o comportamento dentro
de um campo de futebol reflete a educação, o externo, o social. Atitudes como
esta é que contribuem para a formação de um mundo digno e ético.
- o grupo que
não se posicionou, aliás, se posicionou: ficou sobre o muro. Ora acreditou que
esta atitude torna o mundo um melhor lugar para se viver, ora acreditou que a
conversa é mais complexa do que, simplesmente, levantar a mão e dizer: “fui
eu”. Que há outras questões envolvidas como: hipocrisia, infantilidade,
demagogia, querer aparecer e outras coisas.
De qual lado estamos? A qual
grupo pertencemos? Num primeiro momento, isto se trata de uma reflexão pessoal.
Cada um de nós sabe, perfeitamente, a
qual grupo pertence. Mas num segundo momento, a reflexão pessoal fica para trás
e o resultado de nossas escolhas influencia todo o demais, todo o contexto.
Saber a qual grupo pertencemos e,
principalmente, assumirmos as consequências e os resultados do grupo a qual
pertencemos será imprescindível se quisermos, de verdade, entendermos a nós mesmos
e ao mundo no qual vivemos.
O terceiro grupo que citei, os que
ficaram sobre o muro, disseram que “no futebol”, é diferente. Não dá para dizer
que “só porque eu não falei que o erro foi meu, não quer dizer que sou um mau
caráter, um mau cidadão lá fora. ”
Como assim “no futebol”? Por que
lá é diferente? Como assim “só porque eu não falei”?
Diminuímos a importância do erro quando ele é cometido por nós. Assim a
dor da culpa perderá a intensidade, e o peso da consciência será facilmente
carregado naqueles carrinhos que são levados à feira, num dia chuvoso. Mas
quando a culpa é do outro...
Padrão de conduta justo e sistema
vigente sustentável deveriam ser a base da nossa construção. Mas infelizmente o
nosso padrão e o nosso sistema vigente conversam e se confundem, diretamente, com
a corrupção, com a leviandade e com a falta de ética.
Por isso, quando alguém faz a
coisa certa e, pior, assume o erro,
desconfiamos e estranhamos. Chama a nossa atenção exatamente porque este não é
o nosso padrão e a base de nossas atitudes. Mas deveria ser. Acostumamo-nos ao
jeitinho, ao benefício sem sacrifício, à manipulação, ao levar vantagem, ao se
dar bem. Muitas coisas e ações foram e têm sido construídas sobre bases tortas.
Portanto, quando qualquer coisa escapa ao esquema, chama a atenção e é motivo
de monopólio nos noticiários, como foi este o caso.
A base da nossa educação é a
competição e não a colaboração. Triste constatação. Fomos educados para entregarmos
números e resultados, e não para entregarmos descobertas de processos e de
caminhos para, aí sim, chegarmos aos números e aos resultados. Os números e os
resultados precisam ser entregues, mas não a todo custo.
É preciso disposição para percorrermos os caminhos descobertos e
reinventá-los.
É preciso atenção ao caminho
sustentável, ao caminho mais longo. Mas valorizamos o caminho mais curto, o
resultado imediato. Afinal, o jogo tem somente noventa minutos.
Triste pensar que este acerto foi
um incômodo, um atrapalho. Um bem que causou males. Um acerto inconveniente
como aquela visita que chega sem avisar, entra na nossa casa com os sapatos
sujos da rua, não lava as mãos e ainda fica para o jantar sem ter sido convidada.
É como se o acerto nos
incomodasse. É uma inconveniência. Um desajuste. O bem nos traz certos
transtornos, em nossa sociedade. Não sabemos lidar com ele. Ele nos coloca num
lugar desconfortável. O justo, o correto nos colocam em cadeiras lisas e retas
cuja máxima, “mas eu não sabia”, está em desuso há tempos. Mas esta máxima nos
cabe tão bem! É, de verdade, uma pena não podermos usá-la mais com tanta
frequência a que estávamos acostumados.
A atitude deste jogador causou
polêmica porque não temos uma visão de quem somos. Muitas coisas ainda não
estão claras para nós. Somos seres imperfeitos, incompletos. A nossa essência é
a incompletude. E não sabemos lidar com isto. Ainda temos dúvidas sobre o que é
o bem e o mal. Estamos tão arraigados no mal, que quando alguém faz o bem, o
chamamos hipócrita e demagogo. Pode até ser demagogia e hipocrisia. Mas por que
esta tem sido sempre a nossa primeira opção?
É preciso entendermos o problema para podermos buscar a solução.
Fazer o bem com tantos olhares ainda
no mal nos causa a impressão de que aquele bem era falso, mentiroso. É como se
ele não merecesse o nosso crédito. Estar no bem e fazer o bem é, de certa
forma, olhar para o futuro acreditando que ele existe. E olhar para o futuro
com uma crença positiva é pretensioso para nós.
Mais que uma atitude dentro do
Futebol, o que aconteceu nos serve para percebermos
a nossa realidade e não apenas pensarmos
sobre ela. Quando a nossa realidade é, verdadeiramente, percebida, criamos
autonomia e liberdade para desconstrui-la e recriá-la.
Somos todos os grupos que se
posicionaram a respeito deste tema, que é muito maior que uma partida de
futebol. Somos o grupo que apoiou, somos o grupo que não apoiou e somos o grupo
sentadinho, lá, sobre o muro, mas que a vida está fazendo o convite para
descermos e descortinarmos os nossos saberes.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com uma belíssima passagem da música Eclipse, da banda Pink Floyd, que diz:
“And everything under the sun is in tune. But the sun is eclipsed by
the moon. There is no dark side of the moon really. Matter of fact it's all dark.
”
Que significa:
“E tudo sob o sol está em
perfeita sintonia. Mas o sol está coberto pela lua. Não há um lado escuro na
lua, na realidade. Na verdade, ela é toda negra. "
Ou seja, somos aquele que mostra
e aquele que esconde. Aquele que acalma e aquele explode. Aquele que ajuda e
aquele que atrapalha. Enquanto o sol está alto, vamos nos equilibrando nas
cordas que nos são mais convenientes e sustentáveis ... para nós. O brilho do
sol, às vezes, camufla as nossas escolhas seja para o grupo a, b, c ou d. E
assim, vamos aparentando quem não somos e acreditando em inverdades contadas
por nós mesmos.
O brilho do sol sugere uma falsa
perfeição, um ofuscamento que dificulta enxergar a qual grupo o outro pertence
porque nem nós mesmos sabemos aonde estamos, muitas vezes. Mas ao chegar da
Lua, com sua monótona palheta de cores acinzentadas, tudo é esclarecido e posto
sobre a mesa. As cordas para nos equilibrarmos são as mesmas para todos e o
ofuscamento do sol, que dificultava a nossa visão, já não existe mais. A visão
é clara e podemos nos enxergar, como verdadeiramente somos. E nesta hora,
saberemos, com absoluta clareza, a qual grupo pertencemos.
E ao descobrimos quem verdadeiramente
somos, que a gente não se acovarde, mas também não fique satisfeito. Porque os
satisfeitos e os covardes são sempre os primeiros a se retirarem. Que sejamos o
meio do caminho, para que possamos valorizar a nossa travessia, como disse
Guimarães Rosa, e assim, chegarmos firmes a um lugar que terá sido construído
por nós mesmos, por meio de acertos que, agora, não mais nos incomodarão.