terça-feira, 21 de abril de 2020

Vazios ocupados

Se está vazio, como pode estar ocupado? Detalhes turvos que nos obrigam a enxergar o que as nossas estradas empoeiradas e perturbadas não permitem que a gente faça.

Santo Agostinho, um dos maiores Filósofos da História Mundial, leu menos livros que a gente. Ele teve acesso a menos informações. Viu menos coisas. O mundo e a época nos quais ele viveu eram mais enxutos, de estruturas mais simples, com menos pessoas e dados, e, principalmente, sem quaisquer facilidades. Se, então, Santo Agostinho viveu e conviveu com menos, como ele fez tanto? Como ele, tendo lido bem menos livros do que cada um de nós, produziu tanto? Teve acesso a bem menos estruturas, e construiu tanto? É inquestionável que a obra de Santo Agostinho demonstra a própria inteligência dele colocada a serviço da Humanidade. Um Homem a serviço.

Um Homem a serviço: por isso ele fez tanto e com tão pouco. Santo Agostinho foi uma destas pessoas preenchidas de significado, de conclusões, de perguntas, de narrativas essenciais e, portanto, sem vazios ocupados. Foi um Homem que não tinha, como companhia, a vaidade, cujo sentido vem do latim vanitas, que significa vazio. A vaidade não nos permite fazer quase nada com o muito que temos, que dirá com o pouco. Ela nos preenche com um vazio que nos ocupa, que nos marca, que nos impulsiona para o nada. Como resultado, o tempo passa, e nada é feito, nada é entregue, nada é produzido, e o que é lido volta para a estante.

Vivemos numa guerra constante. Apenas não damos este nome. A simples falta de diálogo é uma guerra, mesmo silenciosa. A vaidade tem sido outra guerra constante. Queremos ser o autor de tudo, cortar a fita de tudo, assinar tudo, ver tudo, ser protagonista de tudo, sem percebermos que o tudo é inalcançável. Temos horror a ficarmos de fora de uma festa, de perdermos algo, por isso estarmos em tudo é uma garantia para a nossa ingênua existência. As ausências nos constroem, nos refazem. Fundamental valorizarmos os nossos comerciais para que os bastidores possam ser refeitos, reconstruídos e remanejados, se assim for preciso. Não há a necessidade de estarmos sempre disponíveis, à mostra, à vista, presentes. Isto é vaidade.

A ausência nos torna, muitas vezes, mais presentes do que a nossa presença. Quando queremos estar em tudo nossos rostos ficam imunes à reflexão, nossas atitudes se tornam números fixos de uma apresentação circense, e repensar acerca de nós torna-se inútil. Reflexo de uma vaidade desajustada que acreditamos ser a métrica da vida. Mas não é.

Alimentamo-nos de tradicionais motivos que nos levam à irracionalidade. Sempre o mais do mesmo. Pensar dá trabalho. Ler dói a vista. Aonde estão as figuras e as letras grandes deste livro? Percorremos os caminhos mais fáceis não por ser eficiente (e muitas vezes o é), mas por preguiça de gastarmos a sola dos nossos sapatos. Não abrimos mão da vaidade desenfreada. Por isso, mesmo que a gente leia muito, qual será a nossa obra? Qual será a nossa construção? Não há espaço para fortes construções quando a base é a vaidade. Não há consenso para o avanço quando a vaidade colabora para o retrocesso.

Santo Agostinho, portanto, mesmo tendo lido muito menos que todos nós, fez muito mais. E esta é uma ironia porque podemos imaginar o que ele não faria hoje, com a inimaginável quantidade de dados e de informações. Enquanto ele se preocupava em se desenvolver e compreender o mundo no qual habitava, muitas pessoas de hoje, que leram muito mais que ele, ou nem se lembram mais do que leram ou nada fizeram com o que leram. Ficaram mais preocupadas em divulgarem suas ações do que aprenderem com ela. Santo Agostinho foi um homem que se habituou ao pensar, e isto colaborou para que ele se tornasse um Mestre.

Quando nos habituamos ao pensar, passamos a ser estruturados sob outras bases. Saímos da estandardização, da uniformização, da busca pela felicidade com fórmulas, das falas e diálogos superficiais que buscam nos manter numa monotonia profunda. A vaidade adoecida, que foge da originalidade, nos arrasta para a mediocridade e ajuda a evidenciar a nossa alienação. É preciso pensar, questionar, buscar, discordar, indignar-se. Sem isso, os vazios ocupados alargarão porque a vaidade tratará de fazer o usucapião a respeito de nós. Pobre que somos!

imagem tirada da internet

A questão não é o tempo no qual se vive, mas sim o que você faz com ele e com tudo aquilo que está sendo oferecido. Quem tem um horizonte, tem uma estrada a percorrer. Quem tem foco, assertividade e clareza sobre o que fazer com o ofertado, não busca atalhos, não desvia o caminho, não perde tempo. Quem tem um horizonte, não permite que a vaidade se torne o principal produto da própria prateleira. Quem tem uma estrada para percorrer, não se ocupa de vazios preenchidos. Ao contrário, se ocupa do que vai em si e não faz contrato com o incerto. Não podemos buscar o que é, facilmente, compreendido. É preciso recuperarmos o “gosto pelo esforço”, como nos lembra o Filósofo Luc Ferry. E esforçar-se é apartar-se da vaidade, daquilo que esconde a minha, a sua, a nossa dificuldade.

A vaidade é um destes ocupantes dos nossos vazios. Ela acomoda-se e molda-se ao nosso tamanho de forma tão perfeita, que qualquer alfaiate de alta costura não saberá diferenciar o que somos nós do que é a vaidade. Ela nos cega e acentua nossa poeira e nossa perturbação. Nossos vazios ficam vazios de tão ocupados pela vaidade. Uma ocupação inútil e consumida, mas não por traças. Estas apressaram-se e foram embora. Mas pela ferrugem, mesmo, que infelizmente, tem oxidado a nós.

Inúmeras têm sido as oportunidades de pararmos com as guerras, mas as desperdiçamos porque estamos ocupados construindo outras guerras. E a vaidade é uma forma cruel de perpetuarmos as guerras. Enxergamos sentido nela. Caso contrário, ela não estaria extinta, mas certamente, num lugar menos privilegiado da fila.

Não estamos predispostos a todas as possibilidades do que podemos ser. É uma pena. Somos produtos para um público certo, pré-definido e treinado. Somos facilmente treináveis, manipuláveis e consumidos. Se assim não fosse, nossas preocupações estariam mais na ordem do Ser do que do Ter, do transformar-se do que do acomodar-se, do esforço do que do encosto, do som das nossas vozes do que na imposição delas.

Nossos braços estão oxidados. Estamos todos cansados e exaustos por fazermos trabalhos inócuos, vazios e sem sentido. Trabalhos vaidosos que evidenciam a nossa marca construída num estreito universo. Uma vaidade que não deixa lugar para o outro, que cala o outro, que emudece o outro, que esconde o outro. Quem é o outro? Há tempos ele não existe.

Vaidade é inerente a todos nós. Não acredito que possamos nos despojar dela. Mas podemos, sim, nos apropriar dos moldes que a limita, e assim, limitada, avançarmos para que possamos fazer o mais com menos, para que nossas leituras criem rastros iluminados e saudáveis sob os nossos pés, mesmo que as nossas estradas ainda estejam empoeiradas e com algumas luzes queimadas. É preciso darmos vozes às nossas possibilidades ilimitadas, avançarmos, sairmos do trivial, do cardápio pronto e acelerarmos. Isto dará voz aos ecos roucos que tentam sobreviver dentro de cada um de nós.

Nossos vazios ocupados de vaidade, de vazio, de oco precisam ser desocupados. Quem se habilita a começar a arrumação?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Santo Agostinho, como não poderia deixar de ser, que diz:

“Não há lugar para a sabedoria onde não há paciência.”

A vaidade impede o nosso acesso à sabedoria que, para existir, precisa de paciência. Que saibamos calar a vaidade que vai em nós para que os planos, para nós, não sejam outros. Constantemente, temos conversas nossas, vaidosas, sendo interrompidas por situações e contextos relevantes que insistem em não desistirem da gente. A vida tem sido incansável em nos relembrar o que importa.

domingo, 5 de abril de 2020

Passos alargados

Estamos diluídos na nossa construção, que se traduz e se sustenta por meio dos nossos valores. Há um muito de nós em tudo que possui a nossa digital. A nossa diluição se apresenta nas nossas medidas, nas nossas brechas e nos nossos espaçamentos.

A forma como estamos diluídos na vida, na nossa construção, pode revelar-se sob três aspectos: pessimista, realista e otimista. Não há um quarto aspecto. Ou talvez um quarto aspecto seja a mistura destes três ou a combinação deles. Mas o fato é que há uma predominância na nossa construção, na nossa diluição, na nossa forma de viver e de fazer.


Quem é o mais importante? Quem é o necessário? Quem define?

O pessimista crê na ausência de luz. Esta é a base da construção do pessimista. O otimista crê na ausência de escuridão. Esta é a base da construção do otimista. O realista crê em acionar o interruptor para que haja luz. Esta é a base da construção do realista.

São formas de se viver e versões acerca de quem somos. Valores que nos representam e que nos formam, nos diluem e modelam a nossa construção. Somos a soma de cada um de nós. Ora os três aspectos, ora um, ora dois deles, ora três. Somos os intervalos deles em cada um de nós. Não há errado, não há certo: somente formas distintas de se viver, de se enxergar o que vai, de nos fazer. Todos são importantes. Todos são necessários. Todos nos definem.

Mas por que os otimistas e os realistas são pessoas cuja sombra e água fresca estão garantidas? São pessoas que não sofrem retaliações, são bem-vindas e, mesmo quando apresentam discursos hipotéticos, hipócritas, políticos e mágicos, são alimentados pelos irracionalismos e pelos tendenciosos de plantão. Já os pessimistas, cuja crença está na escuridão, são repelidos da conversa como se fossem contagiosos e inabitáveis.

A maioria de nós se coloca como otimista e/ou realista, porque assim definimos. Mesmo que esta posição não reflita a realidade que vai em nós. É esperado da gente, por causa de uma construção social, que sejamos esperançosos, alegres, otimistas, felizes. Ser pessimista, assumir-se como tal, é como se fosse uma afronta, uma ofensa, um desserviço. O pessimista é renegado, mal visto e, muitas vezes, solitário. É mais valorizado quem se mostra feliz, apesar de não o ser muitas vezes, do que o infeliz honesto. O suposto feliz não dá trabalho para a sociedade. Já o infeliz honesto demanda muito de todos.

Na nossa Cultura de atirar os que não vão com a maioria pelas portas e janelas laterais, vamos acusando, sem exceções, os pessimistas. São pessoas que têm a parte individual atacada pelos que acham que eles deveriam estar ausentes e fora das conversas. O pessimista, que possui uma forma de diluir-se na vida de forma ácida e pouco afeita à luz, é facilmente posto de lado.

imagem tirada da internet

Perdemos a nossa capacidade de reconhecer o outro exatamente por causa da incompletude que ele tem. Mas somos todos incompletos e por fazer. Estamos todos numa esteira sendo formados. É preciso resgatarmos a nossa vontade de nos debruçarmos sobre os outros para poder conhecê-los. Porque se assim fizéssemos, a chance de compreendermos o pessimismo do outro seria grande. A chance de refletirmos sobre o otimismo do vizinho talvez nos ajudasse a nos compreender. E assim sucessivamente. Como, muitas vezes, silenciamos aqueles que não possuem eco em nossas vozes, retiramos de nós a oportunidade de avançarmos. O outro não nos interessa.

Informamos, ao mundo, quem somos por meio do que possuímos e por meio do que damos. Aquilo que nos identifica, que deveria ser o Eu, puramente, está marcado na roupa que vestimos, na universidade que cursamos, na linguagem que usamos, nas crenças que temos, nos lugares que frequentamos, nas falas que pronunciamos. Nossa referência de reconhecimento do outro está no que vai lá fora, e não há mais espaço e nem vontade para nos debruçarmos sobre quem é o outro, sobre a real identidade que ele possui. O externo nos identifica e o interno não nos interessa. Mas é justamente o interno que deveria nos interessar. É ele, e somente ele, que poderá nos explicar quem é o outro. Quem é aquele pessimista, aquele otimista, aquele realista.

E neste lugar de diálogos pré-concebidos e estabelecidos, cujo esgotamento de possibilidades é evidente por parte daqueles que excluem, os pessimistas vão somando rótulos injustos de fracassados, infelizes e precários.

Obviamente, não faço, aqui, um movimento em prol do pessimismo. Mas um convite para reflexão. O pessimista, o otimista e o realista possuem nuances, ramificações que camuflam virtudes e defeitos. É preciso atenção a isso. Mas apenas para os pessimistas esta lupa está a postos.

Um otimista é essencial porque ele sempre enxerga retas no caminho. Vê curvas ainda não trilhadas. Vê possibilidades de caminhada. É um incansável na arte da não desistência. Mas é desprezível aquele típico otimista oco, cujo pensamento mágico o faz crer que bastam meia dúzia de palavras e de pensamento positivo que tudo dará certo. Um otimista que nada constrói porque acredita em fórmulas mágicas e que acha, de forma arrogante, que detém o controle das coisas e da vida. Desconsidera o lado randômico e irregular da vida.

Um realista é essencial porque ele, dificilmente, tira os pés do chão. Sabe até os centavos que possui na conta bancária. É privado de delírios e de alucinações. É um incansável na arte de trabalhar com os fatos. É um sujeito de repertório e sem apego para descontruir o que não deu certo. Mas é desprezível aquele típico realista enfadonho que acha que tudo se resume a uma planilha de Excel e que acha que a vida se traduz em números e descritivos.

Um pessimista é essencial porque ele enxerga a escuridão que, fatalmente, virá, mas que os outros têm medo de enxergar. Vê tropeços na estrada porque sabe da fragilidade dos passos dados até aqui. Ele é o único a colocar holofotes na estagnação e no cotidiano retrógrado. É um incansável na arte de nos lembrar se pegamos o guarda-chuva, porque certamente choverá. Mas é desprezível aquele típico pessimista que se limita a repetir modelos porque “sempre foi feito assim”. Um pessimista que se encosta porque “não adianta, não dará certo”, evidenciando uma postura imobilista, o que não é saudável.

Otimista, realista, pessimista: sinônimo de quem somos. Virtudes e defeitos. Ordens e desordens. Controle e descontrole. Não há como fugirmos disso. Ao excluirmos o pessimista de nossas conversas, sem percebermos, estamos nos excluindo. Porque o pessimista somos nós, também.

Todos são urgentes numa construção pendente e atrasada. Então, por que somente o pessimista paga a conta? Por que este isolamento?

O pessimista vê coisas que ninguém vê, mas que existem. São questionadores porque possuem algo necessário: desconfiança. Não uma desconfiança vazia e má, mas uma desconfiança porque conhece a natureza humana, cuja desonestidade existe. Ele percebe os furos, aquilo que está escrito nas entrelinhas daquele contrato que todos assinam sem ler. Fala dos problemas que aquele super projeto pode oferecer. Quando todos estão comemorando algo que ainda não aconteceu, ele questiona o motivo. Por ser incompreendido, é chamado desmancha-prazeres, mas todos precisam dele. Apenas não reconhecem e o afastam.

Somos uma sociedade que acredita em felicidade de fórmulas e sem construção. Somos viciados em novidades, queremos ser inéditos e achamo-nos no direito de experimentar. Acreditamos que querer é poder. E nada disso existe. O pessimista sabe disso há tempos. E como ele nos lembra disso a todo o instante, queremos afastá-los. É terrível conviver com alguém que fica, o tempo todo, nos falando a verdade e nos lembrando do que somos feitos.

Guimarães Rosa valorizava o meio, a travessia, o trajeto. Portanto, o equilíbrio é essencial. Precisamos de todos, na medida. Nem muitos pessimistas, nem muitos otimistas, nem muitos realistas. De todos. Mas na medida. Para encontrarmos esta medida, apenas fazendo a travessia de Guimarães Rosa. Caindo. Levantando. Chorando. Andando.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de um pessimista incorrigível da nossa História, Nietzsche, autor imprescindível, que diz:

“por vezes, as pessoas não querem ouvir a verdade porque não desejam que as suas ilusões sejam destruídas.”

Este é o trabalho do pessimista: árduo, difícil, indigesto, mas de autoria necessária. Ele ajuda a destruir a ilusão, a farsa, a hipocrisia. Destrói as tábuas de salvação, os falsos apoios e oferece páginas em branco para o recomeço da escrita. Ele possui passos alargados pela lucidez. Mas é incompreendido e, na maior parte das vezes, não recebe aplausos porque todos estão sentados assistindo a um filme de ficção que pela, vigésima vez, reprisa na televisão.